segunda-feira, 26 de novembro de 2012

PEIXE GRANDE E SUAS HISTÓRIAS MARAVILHOSAS



PEIXE GRANDE / BIG FISH

Produção: EUA / 2003

Direção: Tim Burton

Elenco: Ewan McGregor / Albert Finney / Jessica Lange

Duração: 125 min.

Sinopse: Durante toda sua vida, Edward Bloom tem sido um homem de grandes sonhos, paixões e histórias inesquecíveis. Em seus últimos anos de vida ele continua sendo um grande mistério para seu filho William. Agora, na tentativa de conhecer seu pai de verdade, Will começa a juntar as peças para montar uma ideia real de seu pai através de flashbacks de suas histórias maravilhosas.

 

          Após assistir ao filme de Tim Burton, li o livro que o originou: Peixe Grande de Daniel Wallace, publicado nos EUA em 1998. No livro o personagem interpretado por Finney nos delicia com passagens suprimidas na adaptação cinematográfica. Cito uma delas:

          “_ Acredito em quê?_ ele me pergunta, fitando-me com aqueles olhos, aqueles olhinhos azuis, acuando-me. Então eu digo.

          _ No Céu _ digo.

          _ Se acredito no Céu?

          _ E em Deus, e tudo o mais _ digo por que não sei. Não sei se ele acredita em Deus, ou na vida após a morte ou na possibilidade de todos nós voltarmos como outra pessoa ou outra coisa. Também não sei se ele acredita no Inferno, ou em Anjos, ou nos Campos Elíseos ou no Monstro do Lago Ness. Nunca conversamos sobre esses assuntos quando ele estava bom. (...)

          _ Que pergunta _ ele diz, com uma voz forte. _ Não sei se posso dizer que acredito ou que não acredito. Mas isso me faz lembrar, e me interrompa se já tiver contado antes, do dia em que Jesus estava guardando os portões para São Pedro. Bem, Jesus está dando uma mãozinha para ele quando um homem vem arrastando os pés pelo caminho do Céu.

          “O que foi que você fez para entrar no Reino do Céu?” Jesus pergunta a ele.

          E o homem diz: “Bem, não muito na verdade. Sou apenas um pobre carpinteiro que levou uma vida sossegada. A única coisa notável de minha vida foi meu filho.”

          “Seu filho?” Jesus diz interessando-se.

          “Sim, ele foi um filho incrível,” o homem diz. “Teve um nascimento inteiramente fora do comum e mais tarde sofreu uma grande transformação. Também se tornou muito conhecido em todo mundo e é amado por muitos até hoje.”

          Cristo olha para o homem, dá um abraço apertado nele e diz: “Pai, Pai!”

          E o velho o abraça de volta e diz: “Pinóquio?”

          Ele chia, eu sorrio, sacudindo a cabeça. (Peixe Grande, de Daniel Wallace, Ed. Rocco, pág.77/78, 2008).

          O traço pessoal de Burton permanece, quase dez anos depois, como um show de imagens que valorizam e até mesmo complementam o romance de Wallace. Para alguns críticos, o filme supera o livro. Não vamos entrar em um sistema comparativo, mas isto sim procurar mergulhar na história que é, na chamada literária, uma fábula do amor entre pai e filho.

          O pai é a fantasia e o emocional acima de todas as coisas, o filho é o caráter pragmático, lógico e real sobre tudo que o cerca. Em um mundo tão distante e ao mesmo tempo tão próximo, como podemos concluir ao término do filme, a relação entre pai e filho que floresce deste antagonismo é traumática e conflituosa, principalmente para Will, que, prestes a se tornar pai pela primeira vez, sente uma necessidade ainda maior de saber quem de fato é e foi seu pai.

          Conversando com sua nora, Edward diz que o filho “é capaz de contar uma história com todos os fatos, mas sem sabor.” Edward é na verdade, um grande “contador de histórias” e seu personagem me reporta à celebre cena de O homem que matou o facínora, de John Ford, onde um jornalista inescrupuloso(?) diz: “Quando a lenda se torna mais importante que o fato, publique-se a lenda.”

          Ao longo do tempo e da história, foi justamente este caráter inusitado e mítico o que sobrou dos “grandes fatos e personagens históricos”. Na grande maioria das vezes, é esta interpretação fantasiosa que move nossa história, construindo nosso imaginário sobre uma realidade que de fato não nos pertence, pois nem ao menos ocorreu. Como disse Will, “ao contar a história do meu pai é impossível separar os fatos da ficção, o homem do mito”.

          Edward viveu em dois mundos: o real, com a mulher (esposa) que amava e o filho, e o da fantasia, aquele em que ele se deparou com uma série de personagens bizarros como o gigante inofensivo que amedrontava sua cidade, os personagens do circo como o proprietário que se transforma em lobisomem e que, ao mesmo tempo o remunera não com o material, mas sim com o espiritual, isto é, informações mensais sobre a amada de Edward e futura esposa, Sandra. A exploração de três anos de trabalho apenas para receber notícias da amada, longe de ser uma agressão, transforma-se em sublime e, porque não dizer bela manifestação de amor, tal como aquela cantada em verso e prosa pelos menestréis medievais no mítico amor cortês.

          Um aspecto fascinante na relação entre pai e filho é que, ao contrário do segundo, que cresceu e, mesmo ainda jovem encontrava-se velho em espírito, para continuar acompanhando as histórias de seu pai, este permaneceu um eterno menino, quando criança Will mantinha com o pai uma sintonia de paridade para com seus sentimentos, mas, ao crescer, o pai não o acompanhou, por assim dizer, permanecendo como sempre foi, contando as mesmas fantasiosas histórias da infância. Fantasias que, ao serem montadas por Will, se apresentam muito mais verossímeis do que se poderia imaginar.

          O personagem de Edward é fascinante, emocionante e cativante, ao contrário de Will, que com sua constante busca pela lógica e verdade dos fatos acaba, isto sim, se distanciando ainda mais da beleza da vida, tão bem encarnada por seu pai. Ao impregnar de romantismo seus atos e atitudes, como quando da coragem em enfrentar o gigante desconhecido e até então ameaçador (como o Davi e Golias bíblicos) ou quando se preocupa em reconstruir sem benefício próprio a cidade de Espectrum, Edward leva o filho gradativamente a conhecê-lo melhor, e aqui suas histórias maravilhosas nos fornecem interpretações onde tudo aquilo que foi narrado e mostrado é de fato real, ou onde o que menos importa são os fatos em si, mas sim como os interpretamos e vivenciamos em nossas vidas. Ao contrário do filho, que se apresenta frágil, cansado e enfadonho antes mesmo de se tornar pai, Edward mesmo moribundo é a vitalidade em pessoa.

          Somente no leito de morte do pai, Will irá de fato conhecê-lo e, neste sentido interagir plenamente com o pai, como fazia quando era criança. Nesta cena, o filho entra no mundo mítico do pai e imagina (algo até então impensável em seu mundo material) como seria a morte do pai, onde este é levado no colo por ele até um rio, onde todos aqueles que o acompanharam ao longo de toda a vida estão presentes e, após uma rápida despedida, ao entrar em contato com a água transforma-se no enorme e maravilhoso Peixe Grande do feliz título. É nesta morte imaginada e narrada pelo filho em que temos não apenas o passamento de Edward, mas o nascimento de um homem que, como uma criança, se redescobre: após narrar e vivenciar a morte do pai, Will continua a transmitir oralmente ao seu filho as histórias do pai e, por sua vez, seu filho ainda garoto já as transmite aos colegas.

O filme abarca assim a importância do relato oral em sociedades capitalistas que estão ignorando a enorme importância da história de vida de pessoas e grupos sociais. A emoção em se saber contar bem uma história não pode nunca ser suprimida ou relegada a segundo plano. A forte carga emocional na narrativa tanto literária como cinematográfica de Peixe Grande nos mostra que as novas tecnologias e a forte presença das redes sociais podem caracterizar um distanciamento ainda maior nas relações interpessoais. A arte de bem contar uma história, apropriar-se de uma identidade cultural rica através da transmissão oral do conhecimento de geração a geração continuam sendo importantes armas na luta contra a alienação que impera em muitos círculos sociais e mediáticos.

Como finaliza Will em sua narrativa: “Um homem conta tantas vezes sua história, que se torna uma. Elas vivem após sua morte. E desse modo, ele se torna imortal”.

Belo filme de Burton!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Para os que me visitam,

a indicação de um blog pra lá de interessante...



http://eduardojunior.wordpress.com/


Mas acho que a vida é isso mesmo, um dia é bom e o outro é uma porcaria. Não dá pra ser feliz o tempo todo. Por sinal, desconfio de felicidades instantâneas e constantes. Soa meio falso. Gente de carne e osso é alegre e triste. É inconstante. Porque a vida é uma montanha-russa. E eu adoro andar nela. Por isso vivo sempre na fila do parque. ~ Clarissa Corrêa

domingo, 2 de setembro de 2012

O SOL É PARA TODOS


O SOL É PARA TODOS
 
 
 
 

 

TO KILL A MOCKINGBIRD / O SOL É PARA TODOS

Produção: EUA / 1962

Direção: Robert Mulligan

Elenco: Gregory Peck / Robert Duvall

Duração: 129 min.

 

Sinopse: Jean Louise Finch (Mary Badham) recorda que em 1932, quando tinha seis anos, Macomb, no Alabama, já era um lugarejo velho. Nesta época Tom Robinson (Brock Peters), um jovem negro, foi acusado de estuprar Mayella Violet Ewell (Collin Wilcox Paxton), uma jovem branca. Seu pai, Atticus Finch (Gregory Peck), um advogado extremamente íntegro, concordou em defendê-lo e, apesar de boa parte da cidade ser contra sua posição, ele decidiu ir adiante e fazer de tudo para absolver o réu.

 

 

Não me recordo da primeira vez que assisti a este filme, provavelmente era garoto e, com certeza gostei muito, pois passados vários anos, eu lecionando em uma escola particular montei um projeto a respeito da utilização do vídeo em sala de aula, algo que na época ainda não era muito habitual. Como temática escolhi a questão racial norte-americana. Um dos filmes selecionados por mim foi este maravilhoso libelo à liberdade, que na verdade vai muito além da questão racial. Tal aspecto apenas reveste este filme, que gradativamente se revela muito mais poderoso, pois nos leva ao âmago de algo muito mais importante: o humanismo presente em nossos atos e condutas morais. As imagens e diálogos precisos nos remetem à seguinte reflexão: vale a pena ser bom? O que é ser bom? Será que para sermos bons, íntegros e honestos temos que lutar e por que não dizer perder? Quando lutamos por nossos princípios, ideais e valores somos sempre vencedores, independentemente do resultado final? Para Atticus Finch, o protagonista, a resposta para todas estas perguntas é sim.

            Quando me interessei em incluir este filme em meu projeto procurei ler o livro de Harper Lee, vencedor do Pulitzer em 1961, To kill a Mockingbird , um belo título que infelizmente foi substituído em sua versão para o português.. Ao ler o livro me apaixonei ainda mais pela história, com a facilidade da autora em colocar em uma única trama a reflexão a respeito de tantos temas: o mundo da infância com suas fantasias e incompreensões, a gradativa transformação para o mundo dos adultos com toda sua violência e sofrimento, a miséria e ignorância presentes em uma sociedade que vivia as conseqüências da grande crise de 29, o racismo, preconceito e intolerância, e acima de tudo: ética e valores morais sólidos diante de um mundo com tantas resistências em se tornar justo e livre.

            A trilha sonora de Elmer Bernstein é uma das mais belas do cinema. A cena de abertura também é de uma delicadeza e encantamento raramente vistos. Desfila diante de nossos olhos uma série de objetos: uma bola de gude, um pião, um relógio, bonecos de madeira, etc. Ao mesmo tempo uma mão de criança faz em um caderno o desenho de um pássaro, o tal do sabiá do título, de repente um rasgo e estamos nas primeiras imagens de Maycomb, a velha cidade sulista. Ouvimos é claro, o som dos pássaros e a voz da agora mulher, Scout ou Jean Loise,  filha de Atticus, e narradora da história. A abertura na verdade é uma síntese da trama, daí a sua mérito e beleza. A direção é sensível, um pleonasmo, em se tratando de Robert Mulligan, a reconstituição de época precisa, com um brilhante trabalho de direção de arte além da maravilhosa fotografia em preto e branco.

            Maycomb é uma cidade monótona, onde as pessoas não têm muito que fazer e nem comprar, como diz Scout, para ela a sensação é a de que o dia tem uma duração muito maior do que 24 horas, fato este que realmente pode ser comprovado pela imagem da cidade como também pelo fato de ser criança e como tal, o tempo ter outra duração, diferentemente do chamado “mundo dos adultos.” Ela tem seis anos e seu irmão, Jem, dez. São órfãos de mãe e vivem com o pai e a empregada Cal. Ao final do filme se passaram cerca de dois a três anos e podemos observar que os dois irmãos já não são as crianças do início da trama, pois os acontecimentos que se desenrolaram na cidade e que os atingiram diretamente acabaram por trazer mudanças significativas em suas formações. Atticus é advogado e provavelmente por sua retidão de caráter é chamado pelo Juiz da pequena cidade a defender um negro acusado de estupro contra uma moça branca. Mesmo quem não leu o livro e que está assistindo o filme pela primeira vez, sabe que o negro é inocente e que, com certeza, Atticus irá sofrer na pele as conseqüências de sua decisão. Enquanto isso, os dois irmãos vivem em um mundo de fantasias, criando personagens ameaçadores na vizinhança, como o famoso Boo Radley, um sujeito que segundo eles, vivia acorrentado no porão de sua casa e que, ao final da trama irá se revelar a todos, originando o título original. Se junta a eles o garoto Dill, um menino com quase sete anos que se vangloria do pai que, entretanto, é ausente em sua formação. Este menino aparece durante as férias e fica na casa de uma tia, vizinha de Atticus. Cada vez que ele surge, observamos com mais detalhes a passagem do tempo e as mudanças em nossos personagens.

            O personagem de Atticus é fascinante. Em vários momentos ele demonstra não só em sua fala, mas também em seus atos e olhares sua profunda convicção em fazer aquilo que acreditava ser o correto. Dá-nos maravilhosos exemplos de como se educar crianças, estando sempre presente e valorizando a todo o momento a fala dos filhos, ele não os pune, mas os leva a observar suas falhas e erros. Gregory Peck, que ganhou um Oscar por esse papel, declarou várias vezes que foi o personagem que mais se identificou com ele, isto porque ele era um ator atuante nos movimentos civis da sociedade americana. Mas, retomando a questão educacional, Atticus permite, por exemplo, que sua filha o chame pelo nome e não de pai, em outra cena, quando o filho se recusa a descer de sua casa na árvore para comer, ele apenas diz “Você quem sabe.” Ou seja, sua autoridade não é imposta, percebemos desde o início que estamos diante de um personagem incompatível em uma sociedade sulista, conservadora e autoritária em sua essência, isto se torna ainda mais evidente não só através da conduta de outros personagens, como também pelo fato de estarmos nos referindo ao início dos anos 30.

            Seu filho Jem reclama que Atticus não aceita jogar futebol, ele não se conforma com os argumentos do pai que diz estar “velho”, mas passa realmente a aceitar esta possibilidade, a de que tem um pai, digamos “superado”. Até que um dia, Atticus mata com grande distância um cachorro com raiva e Jem fica sabendo pelo xerife que ele é o melhor atirador da cidade. Esta questão é muito pertinente para o universo infantil, o pai que é visto como herói passa em um determinado momento a ser questionado: “será que meu pai é realmente aquilo que eu acho que ele é?” O olhar de admiração e surpresa do filho após a morte do cão, ilustra como nunca a reconquista do posto de herói por parte de Atticus, mas sem que para isso ele se vangloriasse, nisto esta uma das virtudes de um grande educador, deixar com que o outro adquira sua própria percepção. Naquele momento Jem aprendeu o que é responsabilidade. A arma também é muito importante na trama, pois fundamenta o título original do livro/filme: Atticus diz aos filhos que quando recebeu do pai uma espingarda, este o orientou que era pecado matar um sabiá. Questionado pela filha, sua resposta é a seguinte:

            “Acho que porque é a única coisa que os sábias fazem é cantar para o nosso deleite. Não mexem no jardim, não fazem ninho no milharal. Eles simplesmente cantam muito para nós.”

            Temos outras cenas onde o pai demonstra todo seu afeto, carinho e responsabilidade em bem educar os filhos.

            Quando Scout briga na escola, sua orientação é a seguinte:

            “Se você aprender um truque vai se dar melhor com todo mundo. Você nunca entende realmente uma pessoa até ver as coisas do ponto de vista dela. Até estar na pele dela e sentir o que ela sente.”

            “Eu apenas estou defendendo um negro, Tom Robinson. Andam falando pela cidade que eu não deveria defender este homem.”

            A garota insiste:

            “Se não deveria porque o defende?”

            “Por várias razões... a principal é que se não o defendesse eu não andaria de cabeça erguida. E não teria direito de dizer a você ou ao Jem para não fazerem algo.”

            Isto é Humanismo.

            As crianças por sua vez assimilam rapidamente os ensinamentos do pai e percebemos que o medo infantil da escuridão da noite com suas sombras e ruídos de animais e do vento, cedem lugar a violência do mundo adulto:

            “Há muita coisa feia neste mundo filho, queria poder mantê-las todas longe de você. Nunca é possível.”

            Quando Atticus é obrigado a passar a noite na frente da cadeia para evitar o linchamento de seu cliente, acaba sendo salvo pelos próprios filhos que se recusam a voltar para casa e deixar o pai naquela situação, Jem, o mais velho age com profunda coragem enquanto Scout, faz uso da inocência infantil que está com os dias contados para ela.

            A conduta de Atticus é política, ele aplica preceitos da não violência de Gandhi e de Luther King. Ele recebe um cuspe na cara, mas não revida, ele perde no tribunal, seus filhos são agredidos, mas... Ele desmascara seus delatores, ele tem dignidade moral para criticar a sociedade em que vive, ele é reconhecido como um homem de bem como na arrepiante cena do final do julgamento, onde todos os negros se levantam e o reverendo, líder da comunidade afrodescendente, diz a Scout:

            “Srta. Jean Louise levante-se. O seu pai está passando.”

            Sem dúvida o mundo seria muito melhor se tivéssemos mais Atticus Finch por perto, não só para educar nossas crianças como para enfrentar as injustiças que sofremos todos os dias, em todos os momentos, nas mais variadas situações e, por uma quantidade cada vez maior de pessoas.

A DANÇA DOS VAMPIROS


        A DANÇA DOS VAMPIROS
 
 
 
 

 



THE FEARLESS VAMPIRE KILLERS / A DANÇA DOS VAMPIROS

Produção: EUA / Inglaterra / 1967

Direção: Romana Polanski

Elenco: Roman Polanski, Jack MacGowran, Sharon Tate

Duração: 108 min.

Sinopse: Abronsius (Jack MacGowran) é um professor universitário especialista em vampiros que decide ir até a Transilvânia, no coração da Europa Central, acompanhado de seu fiel discípulo Alfred (Roman Polanski), que infelizmente é bem medroso. Abronsius tem como objetivo aprender sobre vampiros e combatê-los, se possível, mas os fatos tomam um rumo inesperado.

Por volta do final dos 70 e início dos 80 fui apresentado a um filme que mudou minha concepção a respeito dos filmes de terror, talvez pela primeira vez em minha vida me deparei em uma obra artística com aquilo que chamamos de paródia. O filme A dança dos Vampiros era muito elogiado pela crítica, mas eu imaginava se tratar de um filme com muitos sustos. Mas logo percebi que estava diante de algo diferente e, o que poderia ser um insulto para um garoto fanático pelo gênero terror, acabou representando para mim uma grande e agradável surpresa.

            Só depois li e conheci melhor o trabalho de Polanski, mas ainda hoje acho estranho que um realizador soturno como ele, um sujeito que criou O bebê de Rosemary e Repulsa ao sexo, tenha concebido uma comédia, e o pior, que talvez tenha aberto mão de um grande talento como comediante para ficar apenas atrás das câmeras, afinal, como ignorar e deixar de rir com a careta irresistível protagonizada por Polanski na cena em que pelo buraco da fechadura, o atabalhoado Alfred vê estarrecido ao invés da estonteante Sharon Tate, o olhar raivoso e cheio de sangue escorrendo do conde Drácula em pessoa?

            Tudo funciona neste filme: atores, direção, trilha sonora, direção de arte. Na abertura, uma gota de sangue escorre pelo letreiro do elenco e produção, e a trilha sonora segue em uma mesma batida transmitindo a falsa sensação que em breve estaremos diante de uma sucessão de cenas aterrorizantes, mas assim que finda a apresentação somos agraciados com uma cena em primeiro plano da imensidão de montes de neve que contrastam com o vermelho, fruto de desejo dos vampiros. Logo somos apresentados aos personagens: o Dr. Ambrosius, especialista em vampiros, mas que é ridicularizado pelo meio acadêmico em que atuava, e seu fiel escudeiro, o auxiliar Alfred (interpretado por Polanski). Ao vermos o Dr. congelado e ridiculamente levado para ser aquecido em uma taverna, percebemos com mais clareza que não estamos diante de um filme de horror clássico e tradicional, mas sim diante de uma enorme e divertida gozação ao gênero. Dr. Ambrosius é um personagem quixotesco com sua crença em vampiros e Alfred seria a encarnação de Sancho Pança, mas com seu medo excessivo e sua paixão pela “garota do conde” acaba também por perder seu senso de razão nos levando a acompanhar com um sorriso permanente no rosto suas enormes trapalhadas ao longo de todo o filme. Os personagens coadjuvantes como a taverneiro e sua esposa também são grotescos, feios e bizarros. O ridículo está sempre presente, como característica daquilo que deve se enquadrar o filme: a paródia.

            Acredito que Polanski tenha idealizado seu filme como uma grande história em quadrinhos, tive a sensação em vários momentos de estar diante de personagens de um desenho e não de um filme,- os cenários, a natureza inóspita, o castelo e a taverna facilitam esta visão. Em outra leitura, observo uma homenagem aos filmes do cinema mudo, às comédias clássicas como as de Chaplin, por exemplo, com o predomínio da pantomima. Tal como aquelas produções, os diálogos são o que menos importa em A dança dos Vampiros. Há uma cena em particular que lembra Tempos Modernos, onde o personagem do Dr. Ambrosius fica entalado em uma janela que dava entrada à cripta onde estão os vampiros, tal como o personagem de Chaplin que vê seu encarregado também entalado nas engrenagens de uma maquina, Alfred demora séculos até tirar o Dr. daquela incômoda e perigosa situação.

            Assisti a Dança dos Vampiros em vários momentos de minha vida: na infância, na adolescência, na juventude e na minha maturidade, é claro que em cada uma destas exibições observei algo diferente. Na infância, o humor que se volta ao cinema mudo predominava. Na adolescência, a temática voltada à sexualidade passa a ser o eixo. Como ignorar, no início dos anos 80 o vampiro homossexual em uma época ainda conservadora e muito distante das atuais Paradas Gays? E neste aspecto é muito interessante observar o contexto em que o filme foi produzido: 1967. Contracultura predominando: luta pelos direitos civis nos EUA, Power Flower, protestos contra a guerra do Vietnã e às vésperas do maio de 68 com o movimento estudantil querendo inverter toda a ordem e forma de poder e, é claro o Woodstook de 69. Ou seja, em uma época em que todas as instituições estavam sendo ridicularizadas. Polanski com seu talento não poderia produzir um filme clássico e conservador a respeito de vampiros. Assim, nosso vampiro gay está muito longe de ser um nobre da Transilvânia ou outra esquecida região do Leste Europeu, estamos isto sim, muito provavelmente diante de um jovem de San Francisco exercitando as várias facetas de sua sexualidade e consumindo drogas.

            O filme não é apenas famoso por Polanski, na verdade mais famoso que ele é a presença de sua ex-mulher, a maravilhosa Sharon Tate, que teve sua beleza relegada a segundo plano devido sua morte estranha, violenta e trágica. Sua presença neste filme representou uma guinada em minhas concepções a cerca daquilo que eu procurava em um filme de horror. O tema do vampirismo sempre teve uma alta dosagem de sensualidade e erotismo, mas para um garoto, as mulheres seminuas que apareciam nos filmes da Hammer eram meras coadjuvantes, estávamos muito mais interessados no Conde Drácula e sua mordida. Mas, quando adolescente vi Sharon Tate pedindo permissão a Polanski para tomar banho em seu banheiro, com seus seios subindo e descendo de hesitação, percebi pela primeira vez que mulheres ruivas, seios e bocas, passavam a representar muito mais que o olhar hipnótico de um homem que se travestia de vampiro. Depois disso, os filmes de terror nunca mais foram os mesmos.

            Em A dança dos Vampiros, a vida deve ser vista como uma grande paródia onde a realidade não deve ser levada tão a sério para que, se não pudermos ser felizes como gostaríamos, possamos então, ser menos infelizes. Bela diversão!

O HOMEM ELEFANTE


O HOMEM ELEFANTE
 
 

 



 

O HOMEM ELEFANTE / THE ELEPHANT MAN

Produção: EUA / Inglaterra / 1980

Direção: David Lynch

Elenco: Anthony Hopkins / John Hurt / Anne Bancroft

Duração: 123 min.

 

Sinopse: No século XIX, John Merrick (John Hurt) é um londrino conhecido como Homem Elefante. Apesar de ser tratado como retardado e de virar atração de circo por ter o rosto totalmente deformado, Merrick é muito inteligente e sensível. Quem descobre isso é o Dr. Frederick Treves (Anthony Hopkins), que o leva para um hospital para estudá-lo. Apesar de ter se mostrado brilhante, ele continua sofrendo preconceitos por causa de suas deformidades. / http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/o-homem-elefante/id/8453

 

 

                A resenha desta obra-prima do cinema não irá se alongar na questão patológica deste personagem, tampouco se preocupar com o que é real ou próximo da realidade,_ uma vez que o filme baseia-se em um personagem verídico_ com aquilo que foi deliberadamente modificado na obra de David Linch. Para quem quiser maiores informações, sugiro o excelente artigo de Edélcio de Jesus Sardano, Reflexões em Torno de “O Homem Elefante”. (em http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/85/201-211.pdf).

Pretendo realizar uma abordagem centrada na questão estética do que é belo e feio e tentar compreender um pouco a situação de nosso protagonista no contexto histórico em que viveu.

                As analogias são óbvias: desde o chavão segundo o qual “as aparências enganam”, até a visão deformada que temos a respeito do outro, isto independentemente de classe social, como pode ser observado ao longo do filme.

                A atualidade desta obra é inegável em um momento em que os meios educacionais valorizam e defendem a inclusão de toda criança com qualquer problema de saúde nas escolas e que, ao mesmo tempo, os programas televisivos buscam de forma desenfreada exibir como uma de suas principais atrações um show de aberrações, tais como os freak shows que tanto sucesso faziam no século XIX, tanto na Europa como nos EUA.   

                Lynch procurou na fotografia em preto e branco retratar o clima opressivo da Inglaterra vitoriana no auge de sua Revolução Industrial. As cenas oníricas das personagens, mescladas com chaminés e o violento serviço braçal nas fábricas, assustam e, ao mesmo tempo, nos deixam uma reflexão: estamos em condições de emitir juízos de valor sobre o que é belo e feio? Sobre o que nos aproxima e o que nos gera repulsa? A partir dos planos de cena de Lynch, podemos afirmar que tal reflexão não se prende apenas ao contexto histórico em que se passa a trama, mas está muito presente nas sociedades contemporâneas.

                A classe operária para David Lynch é feia por natureza, no filme nos é apresentada como seres barulhentos, mal educados e maldosos; são os feios, sujos e malvados, de Ettore Scola transferidos para a Inglaterra do final do século XIX. Por outro lado, a burguesia não fica atrás. Apesar de sua aparente boa educação, o desrespeito para com o outro e principalmente com os despossuídos e marginalizados é evidente, mais ainda quando nosso protagonista transforma-se em atração para esta classe social. Assim, o filme não traça uma visão bucólica e vitimizada do pobre e não glorifica os ricos, embora a personagem de Anne Bancroft faça com que nos deixemos seduzir pelos burgueses filantrópicos. Por outro lado, a preocupação da rainha e a intercessão do poder público para com o homem elefante é um convite a refletirmos sobre o assistencialismo ainda hoje fortemente presente nas sociedades, principalmente quando o/os envolvido/s passam a ter destaque na mídia.

                Em sua espetacular obra História da Feiúra, Umberto Eco, citando Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos, constrói um conceito para o que é belo/feio: “(...) no belo, o ser humano se coloca como medida de perfeição, (...) adora nele a si mesmo. (...) No fundo, o homem se espelha nas coisas, considera belo tudo o que lhe devolve a sua imagem. (...) O feio é entendido como sinal e sintoma da degenerescência (...). Cada indício de esgotamento, de peso, de senilidade, de cansaço, toda espécie de falta de liberdade, como a convulsão, como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a forma da dissolução, da decomposição (...) tudo provoca a mesma reação: o juízo de valor ‘feio’. (...). (...) O que odeia aí o ser humano? Não há dúvida: o declínio de seu tipo”. (in obra citada, ed. Record, 2007, pág. 15).

                Na mesma obra, Eco nos apresenta uma enorme quantidade de sinônimos para o que é considerado belo e aquilo que representa o feio:

                “(...) enquanto se considera belo aquilo que é bonito, gracioso, prazenteiro, atraente, agradável, garboso, delicioso, fascinante, harmônico, maravilhoso, delicado, leve, encantador, magnífico, estupendo, excelso, excepcional, fabuloso, legendário, fantástico, mágico, admirável, apreciável, espetacular, esplêndido, sublime, soberbo; é feio aquilo que é repelente, horrendo, asqueroso, desagradável, grotesco, abominável, vomitante, odioso, indecente, imundo, sujo, obsceno, repugnante, assustador, abjeto, monstruoso, horrível, hórrido, horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo, monstruoso, revoltante, repulsivo, desgostante, aflitivo, nauseabundo, fétido, apavorante, ignóbil, desgracioso, desprezível, pesado, indecente, deformado, disforme, desfigurado. (in Obra citada, pág. 18/19).

                Partindo de tais definições, nosso protagonista tem todas as características daquilo que é feio  presentes em sua aparência física. Entretanto aqui nos deparamos com a primeira contradição: ao mesmo tempo ele é inteligente, amável, sensível e educado. Como, então, pode ser considerado feio?

                Na cena da estação de trem quando é acuado pela turba, ele se faz ouvir naquela que é a frase alusiva ao cartaz do filme: “Eu não sou um animal! Eu sou um ser humano! Eu... sou... um homem!

                A fala, a comunicação, este instrumento essencial em nossa evolução é seu cartão de visitas para a sociedade industrial que o discrimina e o repele afastando-o de qualquer possibilidade de inclusão a partir de seu aspecto físico. Esta sua capacidade de interação social acaba, pelo menos parcialmente, em libertá-lo da sua alienação.

                Foi provavelmente a partir da Revolução Industrial que tivemos a construção de conceitos estéticos tal como os concebemos nos dias contemporâneos. Assim, mais do que a exposição de uma imagem, temos a partir de meados do século XIX a exploração desta imagem: o que era considerado feio e sinônimo de repulsa passa a ser também concebido como valor mercadológico. Ao contrário da Idade Média, que repelia e escondia seus leprosos, a sociedade industrial expõe os seus feios através de espetáculos bizarros objetivando o lucro, estudando-os a partir de pesquisas médicas e cientificas,_ pois estamos na época do cientificismo com Darwin e, em breve da psique de Freud e,_ também no alvorecer da mídia que busca nos excessos de toda ordem se firmar perante a opinião pública. Ou seja, é no nascimento desta sociedade industrial que temos a consolidação dos padrões estéticos que continuam presentes em nossos dias.  

                A exploração, a discriminação, a exclusão social presentes no filme O Homem Elefante continuam em nossas sociedades voltadas ao consumo. A construção daquilo que é belo ou feio atingiu seu ápice com o advento do Nazismo, onde os padrões estéticos de uma pretensa beleza/feiúra nos levaram ao genocídio de vários povos. (A este respeito indico o maravilhoso documentário  A Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen, 1992).   

                                 

                Talvez o maior paradoxo do filme seja o fato de que esta mesma sociedade que discrimina e abomina aquilo que é “o declínio do seu tipo”, como disse Nietsche, não consegue enxergar que a industrialização que se consolida como carro chefe do capitalismo está muito distante do conceito de beleza, e, neste sentido, as imagens de Lynch com as fábricas, os sons, o trabalho, a fumaça, a partir de uma assustadora fotografia em preto e branco, insistem em nos mostrar que estamos diante de algo ainda mais horrendo que o Homem Elefante, pois, ao contrário deste, que tinha uma dimensão verdadeiramente humana _ e aqui vale lembrar as cenas em que o protagonista narra Shakespeare e passagens bíblicas, a Revolução Industrial consolidou o que é sinônimo de feio através da exploração e coisificação do homem, espetacularmente retratadas nas obras de Charles Dickens, William Blake, Edgar Allan Poe, etc, que nos mostraram que a Inglaterra vitoriana (a mesma do Homem Elefante) está bem ao nosso alcance, basta para isso esticarmos um pouco nosso pescoço para fora de nossas casas.

VERÃO DE 42


VERÃO DE 42
 
 
 
 
 

 

SUMMER OF’ 42 / HOUVE UMA VEZ UM VERÃO / VERÃO DE 42

Produção: EUA / 1971

Direção: Robert Mulligan

Elenco: Gary Grimes / Jennifer O’Neill

Duração: 104 min.

 

Sinopse: Aos quinze anos de idade, Hermie (Gary Grimes) vai passar as férias na praia. Durante esta viagem, ele procura respostas para suas dúvidas sobre a vida, a guerra, o amor e o sexo. Com a cabeça repleta de interrogações e sonhos, Hermie conhece uma mulher mais velha (Jennifer O'Neill) e fica apaixonado. Começa assim, uma intensa relação onde Hermie busca aprofundar seu conhecimento sobre o mundo. E ela, por sua vez, busca no jovem adolescente, o amor ausente de seu marido que partiu para a Guerra.

 
              Fui um garoto de sorte. Assisti a este filme pela primeira vez quando tinha a mesma idade que o protagonista: quinze anos. Inevitável a ligação que nos uniu, pois apesar da história se passar em um tempo e espaço muito distante, trata de uma temática universal. Talvez seja a melhor obra cinematográfica a respeito da iniciação sexual de um jovem, bem como a dificuldade em se entrar na chamada vida adulta. Como fazer com que um tema tão realista, seja “leve”, agradável de ver e ao mesmo tempo não seja didático? A receita para Robert Mulligan é a de nos inundar de sensibilidade. Raramente vi nas telas uma dosagem tão equilibrada de simplicidade e sensibilidade para tratar de temas difíceis: como este da juventude ou do racismo como em O sol é para todos. Assim como não deve ser fácil levar as pessoas ao riso, não deve ser fácil também saber emocionar sem ser piegas, e isto Mulligan soube fazer como ninguém: Tratar de amor e sexualidade sem ser apelativo, vulgar ou moralista.
            É com tristeza que observo na grade dos canais televisivos que filmes que nos anos 80 eram exibidos em horário nobre, hoje são simplesmente ignorados pelos canais abertos e até fechados. Por volta de 1983/84, aos domingos a TV Globo exibia filmes com legendas, se não me engano chamava-se Cine Clube ou algo parecido, eram filmes não tão comerciais, pequenos clássicos, principalmente dramas, alguns inclusive, nem foram lançados em vídeo. Foi em uma dessas exibições que vi Verão de 42; é trágico ser saudosista, mas a comparação com o nível dos filmes que são exibidos hoje, no mesmo canal, mesmo horário e dia, é inegável a constatação que nosso país irá perpetuar ainda mais sua ignorância. Antes tínhamos Mulligan, Coppola, Stevenson e hoje temos Stallone e outros “clássicos” da pancadaria.
            O filme de Mulligan nos fala de algo que realmente vale a pena pensar, imaginar, sonhar e colocar em prática: o amor. Mas, não apenas de homem (garoto) e mulher, o filme transcende tal sentimento, pois após fazer amor com Hermie (e neste caso o termo correto é realmente “fazer amor”), Dorothy deixa uma carta onde diz que um dia nosso protagonista irá entender o que se passou e, quando a história é narrada por ele já adulto, constatamos que naquele verão de 42, um Hermie havia deixado de existir. E é justamente este o sentimento que temos ao ver este filme, o de perceber que o amor que surge tão inesperadamente e que pode ser tão fugaz, tem a capacidade de nos transformar de uma maneira tão radical que podemos inclusive afirmar que “deixamos de existir”. Como disse Herman Hesse, é necessário destruir um mundo para que um novo possa renascer. Assim, assistimos à morte da infância e ao nascimento do mundo adulto, só que com toda a crueza e dor que tal mundo representa, no caso do filme, simbolizado pela morte do marido de Dorothy na II Grande Guerra.

            Lembro-me que no dia seguinte à sua exibição na TV, o assunto na escola era Verão de 42. Afinal de contas, como ignorar a cena da farmácia em uma época em que a AIDS mostrava a que veio e a mídia e a escola reforçava o pânico, exigindo a necessidade de prevenção, e os outros temas, então?              Mas, vamos aos personagens: Hermie é só confusão, não consegue distinguir amor, sexo e paixão. Seu outro amigo é o mais espertinho, pensa apenas em sua primeira relação amorosa e conta com as informações de seu irmão mais velho que até o presenteou com uma camisinha, e o outro garoto é mero figurante, está totalmente alheio a tudo que se passa ao redor, fugindo de tudo, inclusive do cinema em companhia de uma garota. Os três garotos representam a posição de praticamente todos os jovens: o mais “saidinho” e desinibido, o tímido, mas que usa sua introspecção para agir e o alienado, que quer simplesmente fugir. Mas, de um modo geral, o que prevalece é a brutal ignorância não só de informações e conhecimentos, mas principalmente quanto a sentimentos, que são muito difíceis de serem ”controlados” e administrados em qualquer fase da vida, mas nesta época em particular são ainda mais difíceis. Em vários momentos eles buscam apoio em um livro que utilizam como bíblia e receita para toda a ignorância. O protagonista, Hermie, por exemplo, desconhecia que preservativo era para ser usado apenas uma vez e pede ao amigo que “empreste” sua camisinha. Em outra cena hilária, ambos levam para um encontro amoroso _ que se torna a primeira transa do amigo de Hermie_ uma cópia com as etapas que tinham que passar até efetuarem a relação sexual. Diálogo:

            “Em que fase está?”

            “Na seis.”

            “Mas já é preliminar?” (demonstrando grande surpresa)

            “Só que ela já está na nove.”

            Na cena que antecede este encontro, quando ambos estão estudando o livro, outro divertidíssimo e ao mesmo tempo, reflexivo diálogo entre ambos:

            “Siga o que dizem aqui e se dará bem.”

            “Não quero só dormir com ela, eu a respeito.”

            “Tudo bem respeitá-la, mas ela não o respeitará se não tentar transar. É verdade, meu irmão me disse. Elas são assim, querem que tente, mesmo se depois não deixam. Pois mesmo não deixando, elas querem que tente.”

            Simplesmente brilhante. Hermie faz a tradicional confusão machista entre amor e sexo. Ou seja, a mulher que amamos e nos apaixonamos não é necessariamente aquela que iremos levar para a cama. Com o tempo, esta concepção foi se alterando e muito, para o bem de uma vida sexual mais saudável.·.

A respeito da ignorância dos personagens sobre a sexualidade, interessante observarmos que os pais não são apresentados no filme, o máximo é ouvirmos a voz da mãe de Hermie em duas ocasiões. O recado está dado: os pais estão em um mundo à parte, um mundo distante daquele que se desenrola na vida de seus filhos. Hoje, em que pese o excesso de informação, o jovem ainda não assimilou tais informações, ou seja, eles não as retêm, não as transformam em conhecimento. Talvez porque são informações desvinculadas de afeto. Pode ser que mesmo depois de tanto tempo, ainda estejamos em vários aspectos próximos daqueles jovens do verão de 42.

            Voltando para a cena da primeira transa do amigo de Hermie, temos mais uma vez a delicadeza, pois quando Hermie e sua “namoradinha” se aproximam e observam os amigos transando nada nos é mostrado, a não ser a fisionomia transtornada de ambos diante de algo que desconheciam por completo, nenhum barulho ouvimos, muito menos gemidos, esta é a diferença de um filme de Mulligan para outro cineasta que poderia vulgarizar a cena, com sons ou cenas de nudez, que são totalmente desnecessárias, o maior impacto está justamente na reação de quem está vendo o que está acontecendo, e é justamente este impacto que o diretor quer nos mostrar.

            A fotografia do filme estimula o clima de romantismo: as várias cenas da praia, a casa de madeira de Dorothy no penhasco, o som do mar na cena mais importante... A iluminação é clara, suave, instigando certo ar de inocência. Nas primeiras cenas, a musa de nosso protagonista nos é apresentada como uma “coroa” que aparenta de vinte e dois a vinte e cinco anos de idade, para os garotos realmente uma “coroa”. A princípio Dorothy nos é mostrada à distância, como que em sonho, em câmera lenta. Ela é focalizada de longe, conforme aumenta o sentimento de Hermie bem como a possibilidade de aproximação entre ambos é que ela deixa de ser aquele algo tão distante e o plano de Mulligan nos aproxima de seu rosto. Podemos perceber então que a razão da paixão não é infundada, ela é muito bonita, mas não utiliza a beleza para demonstrar soberba, mas sim para transmitir simpatia com seu lindo sorriso. O marido que vai para a guerra não é focalizado, ele é visto apenas de perfil ou de costas, não há close de seu rosto, é um personagem que não interessa a Hermie e, portanto também deve ser ignorado por nós, uma vez que a câmera nos mostra apenas aquilo que é visto pelo nosso protagonista. Quando Dorothy despede-se do marido temos então o início do Verão de 42.

            Dorothy vê com simpatia a aproximação do garoto, ela está só. Percebemos desde o início que é recém-casada, habitando na ilha há pouco tempo. Hermie torna-se seu ajudante, auxiliar de pequenos afazeres domésticos que tenta a todo custo demonstrar mais idade afastando-se dos amigos e passando a se vestir de maneira mais cuidadosa. Ele a admira, a respeita e se satisfaz em estar próximo. Sua paixão é tão idealizada que sua sexualidade é sufocada diante dela. Entretanto na cena muito engraçada da escada ele treme de corpo e alma observando de perto detalhes do corpo feminino fruto de sua paixão. Tudo está lá diante de um palmo dos seus olhos: as pernas perfeitas, as nádegas em um shorts diminuto... Dorothy não faz a menor força em ser sensual, não tem interesse em seduzi-lo ou provocá-lo, daí nasce o encanto da cena, trata-se de um momento natural, espontâneo, tanto para Hermie como para Dorothy.

            Já a cena de sexo entre eles é uma das mais belas expressões de amor captadas através de uma câmera:

            Dorothy acabou de receber o telegrama anunciando a morte do marido quando chega Hermie, que lê a notícia, mas demora a encontrá-la. Ela aparece e nada diz, não é mais a exuberância da beleza, mas é isto sim o retrato da dor em seus mais íntimos e delicados detalhes. Hermie sabe disso, percebe isto, mas não consegue dizer nada a não ser acompanhar os movimentos de sua musa. Ela vai até a vitrola e coloca o disco com a trilha do filme, a maravilhosa música de Michael Legrand. Aproxima-se dele, e encosta a cabeça em seus ombros, ele a abraça timidamente, cada gesto é simples, contido, não há exageros nem precipitação. A sensualidade está no close de seus pés que estão descalços, eles começam a dançar lentamente até o término da música. A câmera começa a dar close no rosto de Hermie que está chorando, as lágrimas escorrem pelo seu rosto e neste momento temos o nascimento de um homem. Não foi a relação sexual que se aproximava que representou o rito de iniciação para a vida adulta, mas sim o seu choro, sua capacidade em captar e interagir com a dor alheia.

            A música termina, ela pega em sua mão e o leva para o quarto, não há diálogo, as palavras são inúteis. Hermie é guiado por ela, ele simplesmente a acompanha, se deixa levar por algo muito mais forte que ele, algo que ele não tinha idéia que existisse. Eles se beijam, ela se vira para ele e começa a tirar sua roupa, se despe não para um amante, mas para si mesma. Procura a ternura de um abraço, um toque que faça com que ela se sinta viva. Ela busca naquele momento amar para poder demonstrar para si própria que não está morta. Não ouvimos gemidos, não há imagens de sexo, vemos os objetos do quarto como o abajur e principalmente, ouvimos o som do mar, todo o simbolismo das ondas que vão e vem, assim como a vida daqueles dois personagens que nunca mais seria a mesma depois daquele momento. O amor entre eles é repleto de carinho, de demonstrações de afeto, mas não é capaz de trazer a alegria perdida para Dorothy, muito menos a conquista da mulher amada para Hermie, é apenas e tão somente a possibilidade de mantê-los vivos diante da incompreensão da vida.

            Dorothy se levanta e sai do quarto, pouco depois Hermie faz o mesmo, a câmera está fora da casa da madeira. Agora somos nós que vemos Hermie através da câmera de Mulligan, o acompanhamos atravessar todo o interior da casa e sair na sacada onde observa Dorothy de costas para ele. É apenas neste momento que ela diz algo: “Boa noite”. Sabemos que eles não se tornariam a ver o que é constatado nas cenas seguintes com a carta que ela deixa para Hermie, onde diz que um dia ele irá entender o que aconteceu naquela noite e que ela iria rezar muito para que ele fosse uma pessoa livre de tristezas.

            Em um show realizado em 1970, Sérgio Endrigo disse que era criticado porque suas músicas de amor eram tristes. Ele respondeu dizendo que “o amor se canta quando se está com um grande problema para se resolver, quando há desilusão, quando se está feliz no amor se é feliz e basta não que o amor seja uma coisa estúpida, mas...”.

 Em Verão de 42, tive a mesma sensação. Por que o que fica mais forte em nossa memória são os momentos de tristeza?

            É justamente isto que os românticos ainda não souberam responder.