domingo, 27 de julho de 2014

O SENHOR DA GUERRA


http://portifoliovirtualsalesiano.blogspot.com.br/2012/02/resenha-o-senhor-da-guerra-1965.html


O SENHOR DA GUERRA / THE WAR LORD
Produção: EUA / 1965
Direção: Franklin Schaffner
Elenco: Charlton Heston / Richard Boone / Maurice Evans / Rosemary Forsyth
Duração: 122 min / Adaptado para o cinema a partir de romance e peça de Leslie Stevens.

          Sinopse: Chrysagon (Heston) é um nobre guerreiro que recebe do duque da Normandia a posse de um território (feudo) que sofre frequentes ataques dos frísios, e onde os camponeses, embora cristianizados, conservam-se fiéis aos antigos cultos celtas. Pouco depois de se fixar em seu feudo, este senhor feudal faz valer seu direito de passar a primeira noite de núpcias com uma camponesa que está prestes a se casar com um dos seus servos. Entretanto, ao se apaixonar pela noiva, Crrysagon recusa-se a devolvê-la ao noivo, o que gera a ira dos camponeses, que se unem aos invasores bárbaros em uma tentativa de tomar o castelo e o feudo.
          Trata-se de uma das melhores adaptações para o cinema do mundo medieval (século XI), que consegue, além de uma trama envolvente e com bastante ação, ser elucidativa das relações sociais, políticas, religiosas e ideológicas da Europa dominada pela religião católica e pelos nobres cavaleiros, mas ao mesmo tempo carregada de conflitos internos.
          
            Nesta resenha considero importante identificar os principais grupos sociais envolvidos:

Normandos: habitantes da Normandia, antiga província do noroeste da França, originalmente o lar das tribos celtas (gauleses), que se estabeleceram na Britânia, Inglaterra, Gales, França e Irlanda. Em 1066 (século em que transcorre a trama), o duque Guilherme da Normandia conquista a Inglaterra tornando-se Guilherme I; são os cristãos do filme;
          
          Frísios: tribo do noroeste da Europa, parte do reino Franco (atual Holanda);no filme, invadem a França pelo mar do Norte; são os chamados bárbaros pagãos pelos cristãos normandos;
         
         Druidas: povos pagãos, antigos sacerdotes bretões e gauleses; não possuíam templos; acreditavam na imortalidade da alma e em seres da natureza, se reuniam nas florestas e bosques. São os servos (camponeses) que sofrem no filme um processo de aculturação cristã, mas que procuram mesmo assim manter suas origens e tradições culturais e religiosas.

Contextualização histórica: a partir do reinado de Guilherme I, desenvolveu-se o processo de feudalização de vários territórios europeus. Este Feudalismo consistia na concessão de terras a nobres (vassalos) que em troca deste beneficio passam a dever obrigações a seus senhores (chamados suseranos). Por sua vez, estes senhores passaram a ter cada vez mais vassalos com um processo contínuo de conquistas de terras, trocas de favores e formação de exércitos. Este processo passou com o tempo a fortalecer o poder dos senhores, que passavam a ter um número cada vez maior de vassalos, processo este que acabou por limitar e enfraquecer o poder centralizado dos reis.
          Ao longo do filme podemos observar, em algumas cenas em que a câmera amplia o seu plano, como era o interior “clássico” de um feudo, com a divisão do trabalho pelos camponeses em suas roças e nas terras do senhor. Também são mostradas as moradias destes trabalhadores que dependiam, na ausência de um governo forte e centralizado, da ajuda e proteção do exército do de seu Senhor. Trata-se de um mundo onde as relações de solidariedade são amplas e muito mais concretas do que as existentes nas atuais sociedades capitalistas. Em seu depoimento no livro Ano 1000 ano 2000, na pista dos nossos medos (Ed. Unesp, 1998), o brilhante historiador Georges Duby assim caracteriza a sociedade feudal na transição do milênio, período de O Senhor da Guerra: “(...) Como as sociedades africanas, as medievais eram sociedades de solidariedade. O homem estava inserido em grupos: o grupo familiar, o da aldeia, o senhorio, que era um organismo de exação, mas também de segurança social. Quando sobrevinha um período de fome, o senhor abria seus celeiros para alimentar os pobres. Esse era seu dever e ele estava convencido disso. Esses mecanismos de ajuda mútua evitaram, nessas sociedades a miséria terrível que conhecemos hoje. Existia o medo da penúria repentina, mas não havia a exclusão de uma parte da sociedade lançada ao desespero. Era gente muito pobre, mas unida. Os mecanismos de solidariedade comuns a todas as sociedades tradicionais desempenhavam plenamente seu papel, como atualmente na África Negra. Os ricos tinham o dever de dar e o cristianismo estimulava esse dever de ajudar os outros.” (obra citada, pág.28).
          Ainda dentro do feudo, outro local de destaque é o castelo e sua fortificação. A torre, elemento mais alto e ao mesmo tempo de maior segurança. A tomada da torre e do castelo simbolizavam a perda do poder do Senhor. Assim, é justamente na defesa deste espaço com a utilização desde bestas e catapultas como elementos modernos de luta até o lançamento de óleo fervendo que observamos os recursos tecnológicos de guerra disponíveis na época. As armaduras, que tinham o valor de verdadeiras fortunas, ainda não gozavam de todo o aparato que estamos acostumados a ver, com elmos trabalhados e muito mais incrementadas (o que só seria possível séculos depois), assim como as armas, basicamente arcos, flechas e espadas, uma vez que ainda estamos séculos distantes da invenção da pólvora.
          O filme está centrado na figura do Senhor da guerra e nenhum ator foi capaz até hoje de melhor representar e literalmente incorporar personagens históricos como Charlton Heston (Moisés, Judah Ben Hur, El Cid apenas para citar alguns). Aqui ele nos apresenta um ser gótico, sombrio e que busca com sua paixão superar ou ao menos controlar seu passado e destino trágico (a morte do pai, vitima dos “bárbaros” frísios). A trama também enaltece suas virtudes de justiça, tendo como contraponto a arrogância e prepotência do irmão. Apesar destas características, não se pretende transformá-lo em herói, algo tão clichê nos filmes recentes hollywoodianos. Respeitam-se aqui os preceitos históricos ao se retratar uma sociedade extremamente hierarquizada e estanque. Assim, o personagem de Heston está em cima de seu altivo cavalo em todas as tomadas em que está em contato com seus servos, dirigindo-se a eles de cima para baixo. Ele não utiliza seu poder como forma de ostentação, mas nunca o transfere a outrem ou deixa de exercê-lo. Em uma cena, refere-se aos camponeses da seguinte forma: “Para mim, são como animais”.
          Outro personagem que merece destaque é o padre do feudo. Aqui há certa liberdade artística (trata-se de um filme de ficção que contextualiza um período histórico) ao representar um personagem um tanto quanto “abestalhado” e bastante hesitante ao longo da trama, características estas que destoam do enorme poder e prestígio que a Igreja católica apresentava no período. O padre nos é mostrado como alguém que tem a difícil tarefa de ser um elemento conciliador de duas culturas, isto é, ao mesmo tempo em que busca agradar ao seu senhor cristão e realizar um processo de catequese junto aos servos pagãos, por outro lado sabe que pela força e imposição não irá obter êxito. A figura do padre é bastante simpática, mas historicamente imprecisa. Sabemos que o poder da igreja não foi fruto do diálogo e diplomacia, mas de completa imposição e subordinação de uma cultura sobre outra, nem que para isso fosse necessário (o que ocorria com frequência) o expediente da violência. Então a representação de um membro do clero bonachão e vacilante talvez seja o principal “furo” histórico do filme.          Mesmo assim, há algumas passagens em que este poder clerical se manifesta, como na cena em que o padre e o irmão do Senhor discutem e este diz: “Eu sou um cavaleiro”, enquanto a resposta do padre qualifica sua posição naquela sociedade iletrada: “E eu sei escrever”. E foi justamente esta escrita que chegou até nós; foi a partir do relato de monges copistas e membros do clero que os historiados puderam, com os devidos filtros, escrever a história medieval.
          Outro historiador, este brasileiro, nos apresenta a estruturação social clássica do período medieval, estrutura esta que é reproduzida com precisão pelo filme:
          “Para que o guerreiro possa defender o religioso e o trabalhador, é necessário que o primeiro interceda junto a Deus pelo sucesso, e que o segundo lhe forneça os meios materiais para tal; para que o religioso possa pedir a proteção divina para a sociedade, é necessário que o guerreiro o defenda, e que o trabalhador o sustente; e para que o trabalhador consiga realizar sua tarefa produtiva, é necessário que o guerreiro o proteja dos perigos terrestres e que o religioso o salve do desagrado divino”. (em Guerra e guerreiros na Idade Média, Cyro Rezende Filho, Editora Contexto, pág.74).
          Embora seja considerado um épico histórico, O Senhor da Guerra desenvolve em sua trama uma história de amor, e para entender o que isto representava neste período mais uma vez temos que recorrer ao que se pensava a este respeito. O conceito de amor como vários outros é uma construção histórica, fruto de uma correlação de pensamentos que expressam sua significação. Assim, somente compreendendo como o amor e a imagem de masculino e feminino eram representados somos capazes de interagir com aquela sociedade e suas particularidades, que ora se aproximam e ora se distanciam de nossos valores e conceitos atuais.
          Na literatura religiosa medieval, os padres destacaram algumas ideias a respeito da mulher. Foram desenvolvidos dois conceitos: de um lado, o da mulher má por natureza e do outro o da mulher perfeita. A história de Adão e Eva foi retomada. Muitos pensadores não acreditavam que Eva, assim como Adão, tivesse sido criada à imagem de Deus. Preferiam considerá-la criação de Adão. Assim sendo, o homem seria dotado da imagem divina, enquanto a mulher apresentaria apenas semelhança divina.
          Uma peça teatral escrita entre 1150 e 1170 nos mostra a forte influência religiosa. Nesta peça, Adão é apresentado como se fosse vassalo de Deus. O Paraíso, nesse sentido, simboliza o feudo. Eva aparece como vassala de Adão e apenas como segunda vassala do Criador.
          Satã tenta iludir Adão sem obter sucesso. Ele permanece fiel a Deus como um vassalo deve manter-se fiel ao Seu Senhor. Satã então seduz Eva. Ao fazê-lo, tentou romper a hierarquia reinante no Paraíso para estabelecer, entre a mulher e o homem, e ao mesmo tempo entre o homem e Deus, a igualdade, isto é, a desordem. Seduzida, Eva levou Adão ao pecado. Deus, como um Senhor Feudal exemplar, expulsou os dois do Paraíso e confiscou o feudo cedido a Adão. Este, magoado e cheio de rancor, culpou a mulher. A confissão da pecadora para o público que assistia à encenação deveria confirmar a inferioridade do sexo feminino. O homem, bom vassalo, conseguiu resistir ao mal. A mulher, a parte débil da natureza humana, ao mesmo tempo seduzida e sedutora, foi a causa da perdição de ambos. Hoje o mito de Adão e Eva tem novas roupagens que procuram interpretar a mulher como sendo criada de uma parte lateral do homem (a costela), logo ela está ao seu lado para acompanha-lo em uma igualdade de direitos e deveres. Mas não era esta a configuração da mulher no mundo medieval. Vejamos outra definição para o sexo feminino:
          “Toda mulher se alegra ao pensar no pecado e ao praticá-lo. Nenhuma é boa, se alguém assim acha. Porque a mulher boa é coisa ruim e quase nada de bom existe nela” (monge do século XII).
          Assim, o desejo, que é obra do diabo, destrói o homem. A mulher, inspiradora do desejo, é por excelência agente do mal, causa do desespero, da morte, da danação eterna do sexo masculino.
          Novamente os historiadores Philippe Aries e Georges Duby nos apresentam a mentalidade dominante a respeito das mulheres no período retratado em O Senhor da Guerra, “A mulher não pode viver sem o homem, deve estar no poder de um homem (...) Por natureza, pela natureza de seu corpo, ela é obrigada ao pudor, ao retiro; deve preservar-se; deve, sobretudo, ser colocada sob o governo dos homens, desde o nascimento até a morte, porque seu corpo é perigoso. Em perigo, e fonte de perigo: por ele, o homem perde sua honra, por ele corre o risco de ser desencaminhado, por essa armadilha tanto mais perigosa quanto esta mais preparada para seduzir (autores citados, em História da Vida Privada, vol. II, pág.518, Cia das Letras).
          A partir das informações acima, façamos um exercício de imaginar qual seria a reação social para um fato inusitado: um senhor feudal, um nobre, requerer o direito senhorial de passar a primeira noite com sua serva (até este fato, algo socialmente aceito), mas recusar devolvê-la ao noivo, querer ele se casar e viver com esta mulher. Tal situação evidentemente não só abalaria esta sociedade como provocaria uma total desestruturação de toda a ordem; seria portanto algo impensável e totalmente inaceitável por todos os grupos sociais (clero, nobreza e servos).
          A relação entre os dois personagens, serva e senhor, são elucidativas para melhor entendermos as noções do que era considerado público e privado nessa sociedade, onde o desejo, que é algo pessoal e intimo, torna-se público.
          Na cena da posse sexual da noiva, o Senhor Feudal não quer, em seu intimo, possuí-la pela força, pela violência, conforme o costume (o que é público), mas sim quer conquistá-la, ser capaz de seduzi-la, pois está apaixonado por ela. Assim, devido à enorme diferença social entre eles, ele é obrigado a usar um expediente que é público (o costume) para poder aproximar-se e concretizar seu desejo que é intimo (privado).
          Esta paixão, entretanto, torna-se recíproca: a camponesa não só aceita o “amor cortês” do Senhor como também é agente ativa nesta relação:
          “Eu também estou enfeitiçada”, respondendo e ao mesmo tempo correspondendo à paixão recebida.
          “Dizem que é uma coisa sagrada conquistar o coração de um homem”.
          Evidentemente que tal situação torna-se explosiva quando temos tantos interesses em jogo. A função e o objetivo do Senhor Feudal vassalo de outro senhor eram manter e estabelecer a paz nas terras do seu Senhor e é justamente a relação amorosa dos protagonistas que faz desmoronar toda uma ordem social pré-estabelecida não pelos homens, mas, pelo que se acreditava,  pelo próprio Deus.
          “(...) quando pela homenagem alguém se tornava vassalus de um sênior, estabelecia-se um pseudo parentesco entre pai e filho. Entre eles devia haver respeito e fidelidade. O vassalo, filho simbólico geralmente mais jovem, precisa de terra e camponeses; o Senhor Feudal, pai simbólico, geralmente mais experiente, precisa de guerreiros. Segundo o bispo Fulbert de Chartres (século XI) entre outras coisas, o vassalo deve ser ‘Honesto para que não prejudique os direitos de justiça do seu Senhor ou outras prerrogativas que interessem à honra a que pode pretender. Útil, para que não cause prejuízo aos bens do seu Senhor.’ (em Hilário Franco Júnior – O Feudalismo, Ed. Brasiliense, pág.45/46). Ou seja, fica evidente pela passagem acima que o Senhor da Guerra não cumpre com seu papel e as consequências são desastrosas para todos.
          Finalizando, este filme deve ser visto e revisto, principalmente por aqueles que gostam da História, não apenas como entretenimento, algo que em nenhum momento o filme deixa de ser, mas o que é melhor, como um instrumento que consegue ao mesmo tempo transmitir toda uma gama de informações sobre um período que aparentemente está muito distante de nós, mas que a partir de um olhar mais atento e apurado interage com nossa maneira de pensar e ver o mundo.

MEU AMIGO HARVEY























HARVEY / MEU AMIGO HARVEY
Produção: EUA / 1950
Direção: Henry Koster
Elenco: James Stewart / Josephine Hull
Duração: 104 min

Alguns anos atrás Spielberg anunciou que faria uma refilmagem deste clássico. Para alegria de muitos o projeto foi arquivado. Embora com certeza possamos afirmar que seria um filme inferior ao original, creio que foi uma pena. Ter esta história no século XXI com uma nova roupagem seria fascinante, principalmente para as novas gerações. Meses atrás fiz o teste, coloquei o filme para meu filho de nove anos e ele adorou, mesmo tendo que ler legendas e assistir em preto e branco.
          Trata-se de uma fábula baseada em uma peça de Mary Chase, ganhadora do Pulitzer. Nos anos 40, a peça foi encenada em Londres, tendo como atores principais os mesmos que anos depois participaram da montagem cinematográfica: o inesquecível James Stewart, aqui em um papel que o marcou no cinema, e Josephine Hull, vencedora do Oscar de coadjuvante como irmã de Stewart.
               A trama é simples e singela: um homem de meia idade, Elwood P. Dowd, tem como amigo imaginário um coelho de dois metros de altura que só ele vê e que o acompanha em todos os lugares que frequenta, principalmente o bar do “Charlie”. Ele não apenas vê como se comunica com o coelho. Este, por sua vez, além de ser o melhor amigo de Elwood o aconselha e lhe dá ideias e ensinamentos. Destes diálogos aparentemente imaginários ficamos na dúvida se a sabedoria que El apresenta é fruto de sua mente ou se realmente há “outro ser” que é despertado sempre que necessário.
          Nos extras, há um depoimento de Stewart de 1990 onde ele narra a experiência teatral de seis meses em Londres. Aos sábados havia uma matinê para crianças. Elas iam ao teatro levadas pelos pais na expectativa de verem o enorme coelho. No primeiro ato ele observava que elas se mexiam apreensivas nas cadeiras e cochichavam com os genitores; no segundo ato sempre havia uma criança que não resistia, se levantava e dizia: “Onde está o coelho?” Fico imaginando a decepção delas por não verem o personagem em carne e osso. Em outro momento do seu depoimento, Stewart cita que, após o filme, quando andava pela rua era parado pelas pessoas que lhe perguntavam se o coelho estava ao seu lado. A principio ele pensou ser gozação, mas depois notou que as pessoas levavam a sério a pergunta. Também recebeu várias cartas onde os comentários eram “sabe, eu gostaria de ter um amigo como você”, ou “às vezes meu amigo interior me ajuda a tomar decisões”. Embora crianças menores com certeza tenham se decepcionado, as maiores e principalmente as “bem maiores” identificaram-se com Harvey, talvez porque ele esteja muito mais próximo de nós do que imaginamos.
          Li em algumas resenhas e sinopses que Stewart faz o personagem de um “beberrão” e de um “lunático. Trata-se de uma visão distorcida e por demais simplista. Um olhar um pouco mais atento e observamos que as constantes incursões de Elwood ao bar do Charlie em nenhum momento o transformam em um alcoólatra e tampouco ter um amigo imaginário, mesmo sendo um coelho gigante, o qualificam a ser alienado. Quem assim o rotula não foi capaz de captar a essência da trama.
          Há uma frase dita pelo protagonista que talvez consiga explicitar o que foi citado acima: “Lutei trinta e cinco anos com a realidade e estou feliz por finalmente vencê-la”.
          Esta frase genial sintetiza o filme. Se você que está lendo esta resenha já se satisfez com este comentário, pare por aqui e vá correndo ver este filme, que inclusive já foi lançado em blu-ray no Brasil, mas... tem mais. Em determinado momento, ouvimos o seguinte: “Há anos minha mãe me disse: ‘Neste mundo, Wood, você tem que ser muito esperto ou muito gentil’. Fui esperto por anos, mas recomendo a gentileza”. Entretanto, ser gentil não foi suficiente, uma vez que a irmã de Wood decide trancafiá-lo em um hospício, pois as “esquisitices” do irmão estão afastando suas amigas, acabando com sua vida social e o pior, dificultando seu trabalho em encontrar um pretendente à mão de sua desajeitada e, politicamente correto falando, pouco bonita filha.
          As confusões e desdobramentos decorrentes desta decisão é o recheio da trama, mas o mais importante e significativo são os momentos de puro lirismo e poesia quando Wood se encontra com aqueles que gostam dele, aqueles que o vêem  com desconfiança e os que simplesmente não o levam a serio. Wood não tem inimigos. Faz amizades com todos independentemente de classe social: um juiz, a esposa do médico proprietário do hospício, o funcionário que vai sempre atrás dele com a camisa de força, o taxista, seus familiares e até um simples porteiro. Para todos estes personagens ele entrega um cartão com seu nome e endereço e os convida para irem jantar em sua casa, para desespero da irmã, esta sim cada vez mais próxima de um ataque de “nervos”.
          Há outro momento, que transcrevo abaixo, em que a personagem da enfermeira procura saber no bar do Charlie quem é aquele sujeito que tanto espanto e fascínio provoca nas pessoas. Enquanto o médico procura causas freudianas para explicar a loucura de Wood, ela opta por seguir em outra direção:
          “E o que o Sr. faz, Sr. Down?”   
“Harvey e eu ficamos em bares, tomamos um ou dois drinks, ouvimos músicas do jukebox. E após pouco tempo, todos olham para mim e sorriem.
          Eles dizem: ‘Nós não sabemos o seu nome, mas você é muito simpático’.
          Harvey e eu ficamos muito enternecidos nestes momentos especiais. Nós chegamos como estranhos e logo já temos amigos. Eles se sentam à nossa mesa, bebem conosco, falam conosco e nos contam as grandes, horríveis coisas que fizeram e as grandes, maravilhosas coisas que vão fazer. Falam das suas esperanças e dos seus arrependimentos, dos seus amores e dos seus ódios; e tudo é muito importante, pois ninguém vai a um bar contar algo banal.
          E aí... apresento Harvey a eles, e ele é maior e melhor do que tudo que eles me contam.
          E quando vão embora estão muito impressionados.
          As mesmas pessoas raramente voltam, mas isto... é a inveja, querida.
          Mesmo nos melhores de nós, há um pouco de inveja. Uma pena, não é?”
          Wood sabe ouvir, tem paciência, não ignora o estranho e diferente, tem o seu coração aberto a todos, por isto é simpático e justamente por isso as pessoas o transformam em confidente. Reparem que elas contam aquilo que fizeram de horrível, pois o que irão fazer de bom e maravilhoso é sempre o porvir, mas Wood não as julga. Enquanto nós, que vivemos sempre presos na realidade há muito subjugada por nosso protagonista, julgamos e condenamos os frequentadores de bares, ouvimos dele justamente o contrário daquilo que imaginamos: “ninguém vai a um bar contar algo banal”. É justamente esta sua sensibilidade de artista que o aliena do mundo da razão. Mas, basta lembrarmos de O Alienista de Machado de Assis para constatarmos que ver e conversar com um coelho de dois metros de altura pode não ser loucura.
Voltar ao bar e a conversar com Edwood é demonstrar que compactuam com a loucura, é perder o senso da realidade. Aceitar o coelho gigante é aceitar ser livre em todos os sentidos e é justamente isto que as pessoas não conseguem ser: livres da realidade. É esta a inveja a que se refere nosso simpático Elwood P. Down.



domingo, 29 de junho de 2014

HARRY, O AMIGO DE TONTO





http://www.imdb.com/title/tt0071598/

RESENHA: HARRY, O AMIGO DE TONTO 

FICHA TÉCNICA:
DIR: Paul Mazursky / EUA / 1974
Elenco: Art Carney, Ellen Burstyn, Larry Hagman e Tonto.

Qual o papel do idoso na sociedade contemporânea? Talvez seja esta a principal questão suscitada pelo filme Harry and Tonto. Outros filmes também tentaram responder este questionamento, por exemplo, Umberto D (Vittorio de Sica, 1952), e mais recentemente Estamos Todos Bem (Giuseppe Tornatore, 1990). Enquanto o primeiro nos apresenta uma velhice crua e que nos choca pelo distanciamento da câmera semidocumental do neorrealista De Sica, o segundo nos comove com um apelo sentimental de um pai em busca dos filhos. Já Harry and Tonto pode ser classificado como estando no meio termo entre os dois, embora Tornatore provavelmente tenha “bebido na fonte” do filme de 74, pois ambos são um road movie da terceira idade.
Interessante nos atentarmos para o fato de que um filme com olhar para o idoso tenha sido produzido pouco depois do auge da contracultura com o verão do amor de 67, o movimento estudantil de 68, o Woodstook de 69 e o movimento hippie, talvez prenunciando a derrocada dos sonhos utópicos seiscentistas ou, como bem definiu Lennon, a constatação de que “o sonho acabou”.
Art Carney, vencedor do Oscar de melhor ator por este filme, é um professor aposentado de literatura com 70 anos de idade, fã de Shakespeare que o recita em momentos de tensão. Tem como amigo inseparável um gato alaranjado a que chama de Tonto, nome do personagem indígena que acompanha o Cavaleiro Solitário em seriado televisivo (e recentemente em longa da Disney estrelado por Johnny Depp). O gato é a sua razão de viver e motivo da peregrinação que Harry realiza ao longo do filme. Além de Tonto, um amigo polonês judeu crítico do capitalismo e sua casa são o que restam de suas “raízes”, além é claro, da família: filhos, netos, nora.
Logo nas primeiras tomadas vemos vários idosos andando pelas ruas de Nova York ou sentados conversando nas praças. Ao contrário do que poderíamos supor, mesmo os que estão sentados não sugerem passividade, algo que iremos constatar com o protagonista.
                    Ao longo do filme, Harry vai perdendo literalmente suas referências, começando pela casa que foi demolida, na verdade todo o conjunto residencial, para dar lugar a um estacionamento. Apesar de perdas serem um clichê em filmes para idosos, a maneira como a câmera corta de uma cena a outra e as reações de Harry denotam outro olhar: sua postura diante dos problemas, ora paciente e às vezes aparentemente descompromissado, colocam como um personagem sábio. Mas não aquela sabedoria sóbria, com uma visão estereotipada de que todo velho é bom e tem ensinamentos a nos legar. Harry não busca dar “lição de moral” em ninguém, o que ele quer é estar em paz, sem que para isso tenha que morrer.
          Sua família é como qualquer outra: o filho solteirão falido, imaturo emocionalmente e que aparentemente não fez nada de significativo ao longo da vida, a filha que passou por três casamentos e que só gosta do pai quando discute com ele, o mais velho que quer que o pai more com ele, mas é casado e, como sempre acontece, sua esposa rejeita o sogro, o neto estressado e o outro que faz uma terapia do silêncio comunicando-se apenas através da escrita. Enfim, nenhuma novidade em se tratando de família.
          Ao iniciar um trajeto rodoviário com a carteira vencida há mais de quinze anos e, ao se encontrar com um vendedor, uma prostituta, um religioso, um índio (este encontro se dá na cadeia), uma adolescente menor de idade fugindo de casa e, o próprio neto que o procura não só para dizer que acabou com o silêncio, mas para acompanhá-lo, Harry não julga ninguém e coleciona inúmeras pequenas aventuras que qualquer um poderia enfrentar, mas onde não há lugar para pessimismo e tristeza, pelo menos não para ele. Esta talvez seja a grande “sacada”: ao contrário dos outros filmes citados nesta resenha, em Hanry and Tonto a vida nos é apresentada como deveria ser enfrentada: sem pessimismo e tristezas, mas também sem um otimismo exagerado, principalmente com a experiência de quem já enfrentou muita coisa. Assim fica fácil entender por que naturalmente os jovens se apegam com Harry; afinal de contas, permitir que uma jovem menor de idade e fugindo de casa e o neto viajem em seu carro para viver em uma comunidade de jovens não é para qualquer um. Apenas alguém que se encontra em situação similar, apesar da idade, poderia ter a consciência e o não receio em aceitar a premissa de que para se cobrar responsabilidade é necessário que se conceda a liberdade.
Para Harry, tomar tais decisões não era difícil, mesmo que para isso tenha orientado o neto da seguinte forma: “Não se esqueça, prometa-me telefonar para sua mãe todos os dias”.
          Se há uma mensagem ou uma reflexão para a pergunta do inicio deste texto, talvez seja um clichê: a vida, mesmo na terceira idade, pode sempre ser um recomeço, seja através de uma nova moradia, a possibilidade de um novo amor, novos amigos (pessoas ou animais) e um novo trabalho. Harry que o diga e demonstre.
          Na cena final, caminhando pela praia, observa um garoto que está construindo um enorme castelo de areia. Diante da intromissão do “velho” o garoto mostra a língua. Harry não se zanga, sorri retribuindo a malcriação. Ele sabe muito bem os significados da língua para fora e daquele castelo de areia.

          Ao contrário do pessimismo dos filmes com esta temática, este aqui pode e deve ser indicado a todos aqueles que se consideram de terceira idade e também para aqueles que irão chegar lá.