domingo, 29 de junho de 2014

HARRY, O AMIGO DE TONTO





http://www.imdb.com/title/tt0071598/

RESENHA: HARRY, O AMIGO DE TONTO 

FICHA TÉCNICA:
DIR: Paul Mazursky / EUA / 1974
Elenco: Art Carney, Ellen Burstyn, Larry Hagman e Tonto.

Qual o papel do idoso na sociedade contemporânea? Talvez seja esta a principal questão suscitada pelo filme Harry and Tonto. Outros filmes também tentaram responder este questionamento, por exemplo, Umberto D (Vittorio de Sica, 1952), e mais recentemente Estamos Todos Bem (Giuseppe Tornatore, 1990). Enquanto o primeiro nos apresenta uma velhice crua e que nos choca pelo distanciamento da câmera semidocumental do neorrealista De Sica, o segundo nos comove com um apelo sentimental de um pai em busca dos filhos. Já Harry and Tonto pode ser classificado como estando no meio termo entre os dois, embora Tornatore provavelmente tenha “bebido na fonte” do filme de 74, pois ambos são um road movie da terceira idade.
Interessante nos atentarmos para o fato de que um filme com olhar para o idoso tenha sido produzido pouco depois do auge da contracultura com o verão do amor de 67, o movimento estudantil de 68, o Woodstook de 69 e o movimento hippie, talvez prenunciando a derrocada dos sonhos utópicos seiscentistas ou, como bem definiu Lennon, a constatação de que “o sonho acabou”.
Art Carney, vencedor do Oscar de melhor ator por este filme, é um professor aposentado de literatura com 70 anos de idade, fã de Shakespeare que o recita em momentos de tensão. Tem como amigo inseparável um gato alaranjado a que chama de Tonto, nome do personagem indígena que acompanha o Cavaleiro Solitário em seriado televisivo (e recentemente em longa da Disney estrelado por Johnny Depp). O gato é a sua razão de viver e motivo da peregrinação que Harry realiza ao longo do filme. Além de Tonto, um amigo polonês judeu crítico do capitalismo e sua casa são o que restam de suas “raízes”, além é claro, da família: filhos, netos, nora.
Logo nas primeiras tomadas vemos vários idosos andando pelas ruas de Nova York ou sentados conversando nas praças. Ao contrário do que poderíamos supor, mesmo os que estão sentados não sugerem passividade, algo que iremos constatar com o protagonista.
                    Ao longo do filme, Harry vai perdendo literalmente suas referências, começando pela casa que foi demolida, na verdade todo o conjunto residencial, para dar lugar a um estacionamento. Apesar de perdas serem um clichê em filmes para idosos, a maneira como a câmera corta de uma cena a outra e as reações de Harry denotam outro olhar: sua postura diante dos problemas, ora paciente e às vezes aparentemente descompromissado, colocam como um personagem sábio. Mas não aquela sabedoria sóbria, com uma visão estereotipada de que todo velho é bom e tem ensinamentos a nos legar. Harry não busca dar “lição de moral” em ninguém, o que ele quer é estar em paz, sem que para isso tenha que morrer.
          Sua família é como qualquer outra: o filho solteirão falido, imaturo emocionalmente e que aparentemente não fez nada de significativo ao longo da vida, a filha que passou por três casamentos e que só gosta do pai quando discute com ele, o mais velho que quer que o pai more com ele, mas é casado e, como sempre acontece, sua esposa rejeita o sogro, o neto estressado e o outro que faz uma terapia do silêncio comunicando-se apenas através da escrita. Enfim, nenhuma novidade em se tratando de família.
          Ao iniciar um trajeto rodoviário com a carteira vencida há mais de quinze anos e, ao se encontrar com um vendedor, uma prostituta, um religioso, um índio (este encontro se dá na cadeia), uma adolescente menor de idade fugindo de casa e, o próprio neto que o procura não só para dizer que acabou com o silêncio, mas para acompanhá-lo, Harry não julga ninguém e coleciona inúmeras pequenas aventuras que qualquer um poderia enfrentar, mas onde não há lugar para pessimismo e tristeza, pelo menos não para ele. Esta talvez seja a grande “sacada”: ao contrário dos outros filmes citados nesta resenha, em Hanry and Tonto a vida nos é apresentada como deveria ser enfrentada: sem pessimismo e tristezas, mas também sem um otimismo exagerado, principalmente com a experiência de quem já enfrentou muita coisa. Assim fica fácil entender por que naturalmente os jovens se apegam com Harry; afinal de contas, permitir que uma jovem menor de idade e fugindo de casa e o neto viajem em seu carro para viver em uma comunidade de jovens não é para qualquer um. Apenas alguém que se encontra em situação similar, apesar da idade, poderia ter a consciência e o não receio em aceitar a premissa de que para se cobrar responsabilidade é necessário que se conceda a liberdade.
Para Harry, tomar tais decisões não era difícil, mesmo que para isso tenha orientado o neto da seguinte forma: “Não se esqueça, prometa-me telefonar para sua mãe todos os dias”.
          Se há uma mensagem ou uma reflexão para a pergunta do inicio deste texto, talvez seja um clichê: a vida, mesmo na terceira idade, pode sempre ser um recomeço, seja através de uma nova moradia, a possibilidade de um novo amor, novos amigos (pessoas ou animais) e um novo trabalho. Harry que o diga e demonstre.
          Na cena final, caminhando pela praia, observa um garoto que está construindo um enorme castelo de areia. Diante da intromissão do “velho” o garoto mostra a língua. Harry não se zanga, sorri retribuindo a malcriação. Ele sabe muito bem os significados da língua para fora e daquele castelo de areia.

          Ao contrário do pessimismo dos filmes com esta temática, este aqui pode e deve ser indicado a todos aqueles que se consideram de terceira idade e também para aqueles que irão chegar lá.