domingo, 1 de março de 2015

SE MEU APARTAMENTO FALASSE (THE APARTMENT)




SE MEU APARTAMENTO FALASSE (THE APARTMENT) / 1960
Dir: Billy Wilder / 121'
Elenco: Jack Lemmon / Shirley MacLaine / Fred MacMurray
          
             Neste final de semana estive em uma rede de cinema para assistir pela primeira vez na telona a obra-prima do genial Billy Wilder, Se meu apartamento falasse / The apartment. Infelizmente o título em português sugere uma comédia romântica; trata-se, isto sim, de um drama muito distante da tradução em português que está mais próxima de um filme da Disney.
          Apesar da excelente ideia desta rede de cinemas em exibir clássicos antigos, os filmes estão muito mal divulgados e em horários terríveis. Uma sessão no sábado depois das 23 horas, outra no domingo por volta de meio-dia e na quarta de noite. Quando comprei o ingresso, havia quatro comprados, dois para um casal e dois avulsos. Disse para minha companheira, “preste atenção, assim que este casal vir que o filme é em preto e branco irá embora”. Impressionante minha previsão, em menos de cinco minutos de exibição, ela se virou para mim e disse: “Tem razão. Eles já foram embora.” Uma pena o preconceito e a ignorância das pessoas. Quando têm a oportunidade de ver algo que realmente vale à pena são afastadas, como sempre, pela “aparência”. Mesmo sendo sem cores, o preto e branco estava em boa condição, pois provavelmente a cópia foi remasterizada. Entretanto, se for para exibir clássicos do cinema, vamos divulgar melhor com cartazes e horários mais acessíveis. Fica aqui a sugestão.
          Vamos ao que interessa: C.C.Baxter é um executivo de uma seguradora em Nova York que empresta seu apartamento a todos os principais chefes para que o utilizem para encontros com suas amantes. Quanto mais aumenta sua rede de clientes, mais ele vai subindo profissionalmente com promoções, até chegar próximo do principal executivo e chefe do RH da empresa. Entretanto, seus sonhos de ascensão social e prestígio caem por terra quando ele descobre que a mulher por quem se apaixonou, a ascensorista Fran Kubelick, é justamente a amante do seu chefe e “protetor”.
          Esta trama aparentemente simples se transforma em arte nas mãos de Wilder. Quando este faleceu em 2002, com 95 anos de idade, foi apontado por muitos críticos como o fim do cinema de autor em Hollywood. Todos os grandes diretores norte-americanos ou dissidentes da Europa (como Wilder, que era austríaco e se refugiou nos EUA com a ascensão do Nazismo) trabalhavam em Hollywood nos grandes estúdios com uma mescla de cinema comercial com cinema de autor. Wilder talvez tenha sido o principal cineasta da sua geração que conseguiu criar em vários gêneros (drama, comédia, romance, suspense) uma marca pessoal em seus filmes, agradando em cheio à crítica especializada, mas ao mesmo tempo sabendo comunicar-se com o grande público e atender ao mercado e aos interesses econômicos dos grandes estúdios. Convenhamos, para atingir todos estes requisitos tinha que ter muito talento e isto ele tinha de sobra. Atualmente, o cinema norte-americano é dividido entre os filmes estritamente comerciais e os ditos independentes; estes últimos podem agradar parte significativa da crítica, mas, além de apresentarem muitos protagonistas como párias e “coitadinhos” da sociedade, não conseguem dialogar com o grande público, algo em que Wilder reinava absoluto, principalmente com seus filmes das décadas de 40, 50 e 60. Por outro lado, o “cinemão” comercial atual não permite nenhuma “marca” específica dos seus realizadores, o dito “autor” é mais uma peça na engrenagem e o cinema voltado para o público adulto vai cada vez mais perdendo espaço para o público infantil e adolescente e pior, infantilizado que o cinema norte-americano criou. E quando as produções são voltadas para um público diferenciado só são exibidas em salas restritas. Assim, quando um casal vai a um cinema e descobre que se trata de um filme antigo (que é sinônimo de antiquado para este público) não tem condições de ao menos se dar uma chance para apreciar o que o cinema produziu e pode ainda produzir de bom, pois o que é clássico é simplesmente atemporal e é este justamente o caso de The Apartment.
          O filme não se tornou o que é apenas pelo seu diretor e os roteiristas (o próprio Wilder e seu parceiro I.L. Diamond) ou pelos cinco Oscars ganhos. Ele tem, além disto, uma excelente direção de arte (por exemplo, o local de trabalho lembra as obras de Orwell com seu clima de opressão), uma bela e encantadora trilha sonora, o talento e a beleza diferenciada de Shirley MacLaine, mas principalmente tem Jack Lemmon, em minha humilde opinião, o maior ator de todos os tempos.
          Ao longo do tempo, vi e revi este filme várias vezes, desde a adolescência até a maturidade e também li muitas críticas e em várias delas Baxter é identificado como um rato, um crápula, um ambicioso. Discordo, ele é simplesmente humano, difícil de ser definido e muito menos qualificado de maneira maniqueísta, ou é bom e mocinho ou é vilão e egoísta. Quando a trama começa ele já tem o seu clube de clientes e observamos que está bastante desapontado com o que vem ocorrendo (atrasos na entrega do apartamento, reclamações dos vizinhos, ser obrigado a ficar ao relento em noites com temperatura abaixo de zero, tendo que deitar em bancos do Central Park, etc). Nem mesmo as constantes promessas de promoção parecem motivá-lo suficientemente, ele está mais para um personagem à “beira de um ataque de nervos” do que interessado pelo que pode vir a acontecer com seu futuro profissional. Agora se coloque no lugar do personagem: você é solteiro, tem disponibilidade para oferecer seu apartamento ao seu chefe e aos demais executivos; de repente, um desses executivos o procura e lhe pede “um favor”, você percebe que pode ser beneficiado e, evidentemente, corresponde positivamente ao pedido. E se não o fizesse? Até que ponto, nesta sociedade extremamente competitiva e predatória (aqui apenas um dos aspectos atuais da trama, apesar dos seus 55 anos), você pode se dar ao “luxo” de negar um “favor” a um superior? Então temos uma das críticas que o filme sofreu quando do seu lançamento: ser irônico e cínico ao retratar a sociedade norte-americana e seu modo de vida como eticamente imoral, baseada na mentira, desde o seio familiar, em que executivos enviam cartões de Natal com esposa e filhos e fazem da traição um estilo de vida, até o trabalho, onde profissionais competentes e com muito tempo de casa são preteridos por outros que têm disponibilidade para oferecer favores muito bem vindos e aceitos.
          Em um dos brilhantes diálogos do filme (Wilder caprichava em muitas falas de seus filmes) um dos executivos responde à sua amante quando é questionado se levava outras mulheres ao apartamento: “É claro que não, sou muito bem casado!”. Sem dúvida que os conservadores não gostavam nem um pouco de ver na tela grande a eterna hipocrisia social. Mas o filme tem o mérito de apresentar tais situações com leveza, o que erroneamente levou muitos a classificarem a obra como uma comédia romântica.
          Outra cena brilhante é a da festa de fim de ano entre os empregados: a sisudez de outros momentos agora é substituída por uma espécie de festim romano, próximo de um bacanal, onde apenas nossos protagonistas parecem estar deslocados. Mais uma vez a crítica: uma sociedade infeliz e melancólica que utiliza momentos fugazes, como festas em empresas, para mostrar a aparência de felicidade e alegria. No meio da balbúrdia, a descoberta de que Fran, a mulher que Baxter idealizava, era, na verdade, uma das amantes que frequentavam seu apartamento:
          “O espelho está quebrado!”
          “Sim. Sei que está. Gosto assim. Me faz parecer do jeito que me sinto.”
          O espelho quebrado como metáfora do sentimento, da dor da perda, das promessas do filme. Baxter com sua promessa de promoção no trabalho, Fran com a eterna promessa do divórcio por parte do amante.
          Quem são de fato estes personagens? Vejo Baxter como um homem extremamente solitário e melancólico que se sente feliz ao ter uma suicida como companhia para não ter que passar mais um Natal sem ninguém ao lado. Um personagem que quanto mais cresce profissionalmente, mais se angustia e mais necessidade sente de estar bem com alguém, no caso, do seu “objeto” a ser conquistado, sempre fruto de sua idealização: a de uma mulher que seria cheia de virtudes. A alegria que sente ao se aproximar dela, mesmo que nas condições mais adversas, transforma seu estado de espírito e seu humor e é justamente nesta transformação que vemos o talento insuperável do genial Jack Lemmon, sua capacidade invejável de interpretar o homem comum com todas suas nuances, adaptando e recriando objetos e situações do cotidiano, como na clássica cena do macarrão sendo escorrido por uma raquete de tênis.
          Já a personagem de MacLaine também se encontra angustiada e deprimida e insiste em manter uma ligação com alguém que sabe que a está enganando. Aqui o filme reforça a tese das mulheres que se apaixonam por homens errados e que pensam apenas no amor. Ou seja, também pensando e agindo a partir de idealizações pré-concebidas e valores transmitidos ao longo do tempo.
          Uma das qualidades é não apresentá-los como “coitadinhos”, vitimados pelo destino ou como seres sem escrúpulos; são, isto sim, pessoas com eventuais falhas e virtudes. Pode-se considerar a persuasão e a força social e coercitiva daqueles que detêm o poder (no caso os grandes executivos) sobre os mais fracos (no caso, os funcionários), mas não se pode rotular Baxter e Fran como ingênuos ou crápulas.
          O filme “brinca” com os desejos estereotipados de homens e mulheres: dos homens, a ascensão social não importa a que preço, das mulheres, a conquista do grande amor, mesmo sendo um amor proibido. Mas ambos não são suficientes para se alcançar a felicidade. A maior conquista acaba sendo a de si mesmo, este é um dos “recados” do filme.

          Na época de sua produção, em 1960, não eram todos os personagens de filmes norte-americanos ricos e bem sucedidos como são atualmente. Assim, Baxter e Fran são parecidos conosco, torcemos por eles, pois lutam por ser felizes, sofrem, se aproximam, se distanciam, se reencontram das formas mais improváveis e é justamente esta aproximação que transforma este filme em uma beleza singular, classificado por alguns como um dos filmes mais humanistas de todos os tempos. Concordo plenamente!