SE MEU APARTAMENTO FALASSE (THE APARTMENT) / 1960
Dir: Billy Wilder / 121'
Elenco: Jack Lemmon / Shirley MacLaine / Fred MacMurray
Neste final de semana
estive em uma rede de cinema para assistir pela primeira vez na telona a
obra-prima do genial Billy Wilder, Se meu
apartamento falasse / The apartment. Infelizmente o título em português
sugere uma comédia romântica; trata-se, isto sim, de um drama muito distante da tradução em
português que está mais próxima de um filme da Disney.
Apesar da excelente ideia desta rede de cinemas em exibir
clássicos antigos, os filmes estão muito mal divulgados e em horários
terríveis. Uma sessão no sábado depois das 23 horas, outra no domingo por volta
de meio-dia e na quarta de noite. Quando comprei o ingresso, havia quatro
comprados, dois para um casal e dois avulsos. Disse para minha companheira,
“preste atenção, assim que este casal vir que o
filme é em preto e branco irá embora”.
Impressionante minha previsão, em menos de cinco minutos de exibição, ela se
virou para mim e disse: “Tem razão. Eles já foram embora.” Uma pena o
preconceito e a ignorância das pessoas. Quando têm
a oportunidade de ver algo que realmente vale à pena são afastadas, como sempre, pela “aparência”. Mesmo sendo sem cores, o preto e
branco estava em boa condição, pois provavelmente a cópia foi remasterizada.
Entretanto, se for para exibir clássicos do cinema, vamos divulgar melhor com
cartazes e horários mais acessíveis. Fica aqui a sugestão.
Vamos ao que interessa: C.C.Baxter é um executivo de uma
seguradora em Nova York que empresta seu apartamento a todos os principais
chefes para que o utilizem para encontros com suas amantes. Quanto mais aumenta
sua rede de clientes, mais ele vai subindo profissionalmente com promoções, até
chegar próximo do principal executivo e chefe do RH da empresa. Entretanto,
seus sonhos de ascensão social e prestígio caem por terra quando ele descobre
que a mulher por quem se apaixonou, a ascensorista Fran Kubelick, é justamente a amante do seu chefe e “protetor”.
Esta trama aparentemente simples se transforma em arte nas
mãos de Wilder. Quando este faleceu em 2002, com 95 anos de idade, foi apontado por muitos críticos como o fim do
cinema de autor em Hollywood. Todos os grandes diretores norte-americanos ou dissidentes da Europa (como
Wilder, que era austríaco e se refugiou nos EUA
com a ascensão do Nazismo) trabalhavam em Hollywood nos grandes estúdios com
uma mescla de cinema comercial com cinema de autor. Wilder talvez tenha sido o
principal cineasta da sua geração que conseguiu criar em vários gêneros (drama,
comédia, romance, suspense) uma marca pessoal em seus filmes, agradando em
cheio à crítica especializada, mas ao mesmo tempo sabendo comunicar-se com o
grande público e atender ao mercado e aos interesses econômicos dos grandes estúdios.
Convenhamos, para atingir todos estes requisitos tinha que ter muito talento e
isto ele tinha de sobra. Atualmente, o cinema
norte-americano é dividido entre os filmes estritamente comerciais e os ditos
independentes; estes últimos podem agradar parte
significativa da crítica, mas, além de apresentarem muitos protagonistas como
párias e “coitadinhos” da sociedade, não
conseguem dialogar com o grande público, algo em
que Wilder reinava absoluto, principalmente com seus filmes das décadas de 40,
50 e 60. Por outro lado, o “cinemão” comercial atual não permite nenhuma
“marca” específica dos seus realizadores, o dito “autor” é mais uma peça na
engrenagem e o cinema voltado para o público adulto vai cada vez mais perdendo
espaço para o público infantil e adolescente e pior, infantilizado que o cinema
norte-americano criou. E quando
as produções são voltadas para um público diferenciado só são exibidas em salas
restritas. Assim, quando um casal vai a um cinema e descobre que se trata de um
filme antigo (que é sinônimo de antiquado para este público) não tem condições
de ao menos se dar uma chance para apreciar o que o cinema produziu e pode
ainda produzir de bom, pois o que é clássico é simplesmente atemporal e é este
justamente o caso de The Apartment.
O filme não se tornou o que
é apenas pelo seu diretor e os roteiristas (o próprio Wilder e seu parceiro
I.L. Diamond) ou pelos cinco Oscars ganhos. Ele tem, além disto, uma excelente direção de arte (por exemplo, o local de trabalho lembra as obras de
Orwell com seu clima de opressão), uma bela e encantadora trilha sonora, o
talento e a beleza diferenciada de Shirley MacLaine, mas principalmente tem
Jack Lemmon, em minha humilde opinião, o maior ator de todos os tempos.
Ao longo do tempo, vi e revi este filme várias vezes, desde
a adolescência até a maturidade e também li muitas críticas e em várias delas Baxter é identificado como um rato, um crápula, um ambicioso. Discordo,
ele é simplesmente humano, difícil de ser definido e muito menos qualificado de
maneira maniqueísta, ou é bom e mocinho ou é vilão e egoísta. Quando a
trama começa ele já tem o seu clube de clientes e observamos que está bastante
desapontado com o que vem ocorrendo (atrasos na entrega do apartamento,
reclamações dos vizinhos, ser obrigado a ficar ao relento em noites com
temperatura abaixo de zero, tendo que deitar em bancos do Central Park, etc).
Nem mesmo as constantes promessas de promoção parecem motivá-lo
suficientemente, ele está mais para um personagem à “beira de um ataque de
nervos” do que interessado pelo que pode vir a acontecer com seu futuro
profissional. Agora se coloque no lugar do personagem:
você é solteiro, tem disponibilidade para oferecer seu apartamento ao seu chefe e aos
demais executivos; de repente, um desses executivos o
procura e lhe pede “um favor”, você percebe que pode ser beneficiado e,
evidentemente, corresponde positivamente ao
pedido. E se não o fizesse? Até que ponto, nesta
sociedade extremamente competitiva e predatória (aqui apenas um dos aspectos
atuais da trama, apesar dos seus 55 anos), você pode se dar ao “luxo” de negar
um “favor” a um superior? Então temos uma das críticas que o filme sofreu
quando do seu lançamento: ser irônico e cínico ao retratar a sociedade
norte-americana e seu modo de vida como eticamente imoral, baseada na mentira,
desde o seio familiar, em que executivos enviam
cartões de Natal com esposa e filhos e fazem
da traição um estilo de vida, até o trabalho, onde profissionais competentes e
com muito tempo de casa são preteridos por outros
que têm disponibilidade para oferecer favores
muito bem vindos e aceitos.
Em um dos brilhantes diálogos do filme (Wilder caprichava
em muitas falas de seus filmes) um dos executivos responde à sua amante quando é
questionado se levava outras mulheres ao apartamento: “É claro que não, sou
muito bem casado!”. Sem dúvida que os conservadores não gostavam nem um pouco
de ver na tela grande a eterna hipocrisia social. Mas o filme tem o mérito de apresentar tais situações com leveza, o
que erroneamente levou muitos a classificarem a obra como uma comédia romântica.
Outra cena brilhante é a da
festa de fim de ano entre os empregados: a sisudez de outros momentos agora é substituída por uma espécie de festim romano, próximo
de um bacanal, onde apenas nossos protagonistas parecem estar deslocados. Mais uma vez a crítica: uma sociedade infeliz e
melancólica que utiliza momentos fugazes, como festas em empresas, para mostrar
a aparência de felicidade e alegria. No meio da balbúrdia, a descoberta de que Fran, a mulher que Baxter
idealizava, era, na verdade, uma das amantes que
frequentavam seu apartamento:
“O espelho está
quebrado!”
“Sim. Sei que está. Gosto
assim. Me faz parecer do jeito que me sinto.”
O espelho quebrado como
metáfora do sentimento, da dor da perda, das
promessas do filme. Baxter com sua promessa de promoção no trabalho, Fran com a
eterna promessa do divórcio por parte do amante.
Quem são de fato estes personagens? Vejo Baxter como um homem
extremamente solitário e melancólico que se sente feliz ao ter uma suicida como
companhia para não ter que passar mais um Natal sem ninguém ao lado. Um
personagem que quanto mais cresce profissionalmente, mais se angustia e mais
necessidade sente de estar bem com alguém, no caso, do seu “objeto” a ser
conquistado, sempre fruto de sua idealização: a de uma mulher que seria cheia
de virtudes. A alegria que sente ao se aproximar dela, mesmo que nas condições
mais adversas, transforma seu estado de espírito e seu humor e é justamente
nesta transformação que vemos o talento insuperável do genial Jack Lemmon, sua
capacidade invejável de interpretar o homem comum com todas suas nuances,
adaptando e recriando objetos e situações do cotidiano, como na clássica cena
do macarrão sendo escorrido por uma raquete de tênis.
Já a personagem de MacLaine também se encontra angustiada e deprimida e insiste em manter
uma ligação com alguém que sabe que a está
enganando. Aqui o filme reforça a tese das mulheres que se apaixonam por homens
errados e que pensam apenas no amor. Ou seja, também pensando e agindo a partir
de idealizações pré-concebidas e valores transmitidos ao longo do tempo.
Uma das qualidades é não apresentá-los como “coitadinhos”,
vitimados pelo destino ou como seres sem escrúpulos;
são, isto sim, pessoas com eventuais falhas e
virtudes. Pode-se considerar a persuasão e a força social e coercitiva daqueles
que detêm o poder (no caso os grandes executivos) sobre os mais fracos (no
caso, os funcionários), mas não se pode rotular Baxter e Fran como ingênuos ou
crápulas.
O filme “brinca” com os desejos estereotipados de homens e
mulheres: dos homens, a ascensão social não
importa a que preço, das mulheres, a conquista
do grande amor, mesmo sendo um amor proibido.
Mas ambos não são suficientes para se alcançar a felicidade. A maior conquista
acaba sendo a de si mesmo, este é um dos “recados” do filme.
Na época de sua produção, em
1960, não eram todos os personagens de filmes norte-americanos ricos e bem sucedidos como são atualmente.
Assim, Baxter e Fran são parecidos conosco, torcemos por eles, pois lutam por
ser felizes, sofrem, se aproximam, se
distanciam, se reencontram das formas mais improváveis e é justamente esta
aproximação que transforma este filme em uma beleza singular, classificado por
alguns como um dos filmes mais humanistas de todos os tempos. Concordo
plenamente!
Muito boa análise,isso me obriga a assistir pela enésima vez um filme que sempre gostei.
ResponderExcluirMarcelo, acho que você disse tudo sobre esse filme. Não me lembrava da beleza dos diálogos, talvez porque na época esse brilho fosse comum. Hollywood ainda tinha sob contrato grandes escritores. Ponto importante, esse da "embalagem" do filme, que vinha sob o rótulo de "romântico" (e até a música contribuía para isso). Era o tempo da Doris Day e do Rock Hudson - e a expectativa era de mais um melzinho na tela... Felizmente não foi só isso.
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