segunda-feira, 11 de maio de 2020

AKIRA KUROSAWA (1910 – 1998): FILMES: VIVER (1952) / O BARBA RUIVA (1965)


VIVER: Kanji Watanabe (Takashi Shimura) é um veterano burocrata que há décadas trabalha diariamente na Prefeitura carimbando documentos. Ao descobrir que está com câncer no estômago, ele decide dar um sentido à sua até então desperdiçada vida.




O BARBA RUIVA: Um jovem e arrogante médico (Yuzo Kayama) chega a uma clínica de um velho médico apelidado de Barba Ruiva (Toshiro Mifune). Rebela-se contra a austeridade do lugar, mas, aos poucos, compreende porquê ele quer atender os pobres e necessitados.
          
          “Quero fazer filmes, filmes belos. Persigo esse objetivo há mais de 50 anos. (...), mas ainda não captei totalmente o que é um filme. (...) Quero que todos apreciem a beleza do cinema. Minha esperança é fazer um filme belo e maravilhoso. Quero transmitir de modo objetivo o que penso durante o filme para que todas as pessoas no mundo todo apreciem. Um filme projetado na tela permite que as pessoas no mundo todo compartilhem a vida dos personagens do filme. Dividir sofrimento e tristeza ajuda as pessoas a se entenderem. É um papel importante do filme. É a melhor coisa sobre os filmes. É através da beleza de um filme que se conquista isso. As pessoas apreciam a beleza no mundo todo. Através da beleza, podemos.... Se a beleza de um filme é apreciada então pode entender um ao outro. Esse é o tipo de filme que quero fazer. (...) Não se trata de passar uma mensagem”. (Doc. Uma mensagem de Kurosawa / 2000).
          Pode-se afirmar que o mestre japonês alcançou plenamente seus objetivos e esperanças. Seus filmes são atemporais, universais e sintetizam o mundo globalizado. Trata-se de um feito se considerarmos que ele advém de uma cultura, pelo menos em grande parte do século XX, muito diferenciada do chamado mundo Ocidental. Entretanto, em seus filmes tivemos: a criação do chamado gênero policial tal como o conhecemos hoje; adaptações muito particulares de Shakespeare, cineasta com o maior número de refilmagens no mundo, inovação em técnicas de filmagem entre elas formas de iluminação, forte presença de elementos naturais como a chuva e o sol, etc. Influenciado por John Ford e os westerns norte-americanos, serviu também de inspiração para o próprio western. Também foi parâmetro para os cineastas da nova geração de Hollywood como Copolla, Spielberg e Lucas. Esse último inclusive citando Kurosawa e seus filmes de samurais como influenciadores da saga que revolucionou o cinema contemporâneo que é Guerra nas Estrelas. Mas, sem dúvida a beleza nos filmes de Kurosawa é justamente compreendida pelo humanismo latente em suas tramas. A seguir, uma resenha (repleta de spoillers) de dois de seus filmes que comprovam esta tese: Viver de 1952 com Takashi Shimura um dos seus atores favoritos e O Barba Ruiva com seu principal ator Toshiro Mifune. Viver, obra posterior do aclamado Roshmon, em que o mestre nos apresenta uma história contemporânea do Japão pós II Guerra Mundial e O Barba Ruiva, último grande filme de sua primeira fase, que só seria retomada em 1975 com o sucesso de Dersu Uzala e o início de seus filmes coloridos.
          Cronologicamente, iniciamos por Viver. O filme tem dois momentos diferenciados: no primeiro, acompanhamos os últimos cinco meses de vida de um chefe de seção de uma repartição pública municipal. Há um narrador com pouco, mas precisas falas. Sabemos tratar-se de um burocrata que irá se arrepender pelos 30 anos de serviços prestados sem ter uma única falta, está com câncer e por ora, não sabe que irá morrer e, finalizando, após 5 meses da consulta médica morre. A surpresa da narrativa fica por conta da segunda fase do filme, em que Kurosawa utiliza o expediente de sucesso de Roshmon e apresenta pequenos flashbacks narrados por seus colegas de trabalho. Estas memórias ocorrem no velório ritualístico nipônico e vão nos revelando os últimos momentos do novo personagem e, o mais interessante, as diferentes e aparentemente desconectadas narrativas, celebram ao final a construção de um novo Watanabe, até então desconhecido por todos que o conheceram.
          A atuação de Takashi Shimura é emblemática: contido na maioria das cenas, com uma voz quase inaudível até explosões de sentimentos, revelados principalmente em suas expressões faciais como o close em seus olhos arregalados ou o olhar vago e perdido em suas comiserações, traduzidas por ele mesmo em mais de uma cena, o que dói não é o estômago enfermo, mas sim a angústia representada pela mão fechada junto ao peito.
          Sabemos a princípio por um parente e depois pelo próprio protagonista, que este tornou-se viúvo muito jovem e optou por ser um dedicado pai e funcionário público, renunciando mão de prazeres pessoais. Agora, no crepúsculo da vida, surge o arrependimento das coisas que poderiam ser realizadas ao longo de uma vida, no entanto, ficaram ao longo do caminho. Pior do que a velhice em si é a consciência da finitude que o transforma em um ser perplexo diante do aguardado, mas ao mesmo tempo assustador compromisso com a morte. O filme dialoga com o Neorrealismo italiano, particularmente Umberto D (Vittorio de Sica / 1952) e o mais recente Harry, o amigo de Tonto de 1974 e resenhado neste blog. Entretanto, a visão de Kurosawa é abrangente: a velhice e a presença constante da finitude não são os únicos tópicos a nos envolver. Podemos citar outros momentos reflexivos:
·       “Pense em você. Seu filho irá crescer e não irá se preocupar com você. Depois que casar então, irá lhe esquecer”. Estas palavras ditas a ele logo no início da viuvez, passam a ecoar em sua mente. Na convivência com o filho e a nora constata que não se relacionam como deveriam e que ambos estão mais preocupados com o que ele irá receber de prêmio após se aposentar. O protagonista toma ciência que é apenas e tão somente uma moeda de troca e sua importância é apenas material;
·       O Estado e o poder público não cumprem com o seu papel social: a politicagem e o jogo de interesses afastam funcionários dos seus reais objetivos. A burocracia estatal repele o cidadão. A Democracia é uma ilusão nesta engrenagem do poder;
·       A ação individual pode (e deve) ocorrer seja qual for a motivação, nesse caso, a aproximação da morte. Aguardar uma motivação coletiva pode não ser o melhor caminho. Sua ação deve ocorrer independentemente da aprovação ou não dos seus pares, objetivos individuais alcançados podem ou não gerarem transformações sociais.
Duas cenas são particularmente belas, ambas relatos de seus colegas de trabalho que a partir de flashbacks concluem que Watanabe tinha consciência da aproximação da morte: na primeira quando questionado sobre como se sentia sendo tratado como idiota nas repartições públicas em defesa de sua causa, sua resposta foi “não tenho tempo para odiar” e a segunda, enquanto caminha pela ponte observa o céu e admirado afirma o quanto é bonito o pôr do sol e que nunca havia reparado nisso, mas finaliza “Agora, não tenho mais tempo”.
          Fosse um filme comercial a ação final do protagonista que dá sentido à toda sua existência seria um exemplo a ser seguido por todos. Seus funcionários e colegas de profissão sentiram-se humilhados no velório quando diante de representantes da comunidade atendidos por Watanabe constataram a inutilidade de seus trabalhos. Embriagados com saquê propuseram a transformação: “Agora vamos trabalhar para atender a população”! O comodismo, covardia e acomodação entretanto falam mais alto: do alto da obra edificada através do esforço individual de Watanabe, o único funcionário que foi de fato sensibilizado, constata entristecido que a mudança cultural e coletiva ainda é um sonho distante.
          Apesar do tom melancólico e aparentemente pessimista, o filme carrega uma aura de perseverança e resiliência por parte do protagonista raramente presenciada no cinema e é justamente neste aspecto que a beleza tão procurada por Kurosawa é realçada.
    Assim como Hitchcock, Kurosawa procurava ter um controle total sobre suas obras. Desde o roteiro, - a maioria eram seus - até o acompanhamento da trilha sonora, fotografia, etc. Nesse sentido, ele tinha uma predileção pela edição. Filmava com várias câmeras desse modo o artista nunca sabia o que de fato seria colocado no filme. Para ele, editar era uma tarefa agradável e prazerosa. A matéria-prima não estava na filmagem em si, mas na edição. Entretanto, ela nunca a realizava como acontece geralmente, no término das filmagens. Como uma de suas técnicas, sempre que possível ele mostrava as filmagens para a sua equipe. Esse processo explica e justifica a necessidade em se passar dias gravando uma mesma cena e, ao mesmo tempo que acaba por unir e guiar a equipe de filmagem durante toda a produção. Nesse aspecto, Kurosawa não tinha dúvidas, quando uma cena parecia confusa ou entediante aos expectadores devia ser excluída, cortada do filme.
No documentário Uma mensagem de Kurosawa / 2000, ele afirma: “Dirigir inclui guiar atores, filmagem, iluminação, sonoplastia, direção de arte, trilha sonora, edição e dublagem. Embora todos sejam classificados como tarefas separadas todos se misturam em minha mente. É impossível pensar em cada um separado dos outros”.
No filme O Barba Ruiva podemos acompanhar algumas das técnicas de filmagem do mestre japonês: o hospital que existiu no século XIX foi recriado em detalhes para as filmagens que duraram dois anos. Ao vermos o filme nos sentimos como se fizéssemos parte daquele cenário tamanha a precisão dos detalhes. O trabalho da direção de arte é excepcional.
O filme tem em seu cunho social seu maior destaque. Apesar do título fazer alusão a um personagem e a trama também consolidar ações individuais desse personagem, a abrangência social é maior do que em Viver. O hospital público onde trabalha e chefia o “Barba Ruiva” é na verdade um microcosmos da sociedade. Temos a paciente com distúrbios mentais e há uma ala de isolamento apenas para ela por pertencer a um grupo social mais elevado e, a grande parte dos pacientes, a “ralé”, os pobres incapazes de terem um tratamento melhor mesmo com todo empenho e dedicação do dr. Barba Ruiva. Apesar de pecar ao mostrar a medicina como uma espécie de “sacerdócio” profissional, o filme contrapõe o profissionalismo e sua ausência em um mesmo espaço.
A princípio, somos levados a crer através de um dos seus funcionários, que Barba Ruiva é um tirano. Gradativamente, conforme o roteiro se desenvolve, constatamos que há um enorme senso de justiça nas ações daquele que coordena o hospital. Não apenas justiça, mas também uma série de sábias ações geradoras de mudança comportamental no personagem que faz o médico arrogante e prepotente que, mesmo inexperiente acredita tudo saber por ter estudado em sua formação pelo “método holandês”. Kurosawa nos apresenta no choque entre estes dois médicos a dualidade entre uma medicina humanista preocupada com o ser em sua totalidade e outra que é distante do paciente e apenas tecnicista. Por sua vez, Barba Ruiva não é um protagonista carregado de uma aura de santidade e é justamente esse fato que enobrece sua humanidade: ele chantageia o governador, espanca cafetões em um bordel – “Eu não vou matar, apenas quebrar alguns ossos”, utiliza todos os expedientes necessários para alcançar o objetivo de conseguir manter seu hospital e atender sua clientela pobre e necessitada.
A trama e o roteiro nos apresentam a história de vida de alguns personagens que se apresentam diante do expectador despidos de falsos pudores. Em uma dessas cenas, Barba Ruiva diz ao médico novato que a medicina se volta para as misérias humanas e a ignorância talvez seja a maior doença a ser enfrentada.
Do garotinho que rouba o hospital para comer à garota de 12 anos retirada à força do bordel, da ausência do Estado que corta investimentos em saúde, Kurosawa relata o drama das pessoas comuns. O hospital poderia ser uma repartição pública ou uma escola, o que se sobrepõem a tudo e a todos é o dilema do homem diante das misérias humanas.
Ainda sobre a prática de dirigir Kurosawa disse: “(...) construir é fácil e coisas práticas podem ser ensinadas. Mas o talento não pode ser ensinado. Ensinar o que é o cinema também é muito difícil. Aqueles que não entendem isso, não conseguem aprender. Explicar o que é o cinema em palavras abstratas é algo que não sou capaz de fazer”. (Doc. Uma mensagem de Kurosawa / 2000).
O velho mestre não precisou ensinar o que é o cinema através de palavras. Basta assistirmos a seus filmes para compreendermos toda a magnitude da sétima arte.