VIVER: Kanji
Watanabe (Takashi Shimura) é um veterano burocrata que há décadas trabalha
diariamente na Prefeitura carimbando documentos. Ao descobrir que está com
câncer no estômago, ele decide dar um sentido à sua até então desperdiçada
vida.
O BARBA RUIVA: Um
jovem e arrogante médico (Yuzo Kayama) chega a uma clínica de um velho médico apelidado de Barba
Ruiva (Toshiro Mifune). Rebela-se contra
a austeridade do lugar, mas, aos poucos, compreende porquê ele quer atender os pobres e
necessitados.
“Quero fazer filmes,
filmes belos. Persigo esse objetivo há mais de 50 anos. (...), mas ainda não
captei totalmente o que é um filme. (...) Quero que todos apreciem a beleza do
cinema. Minha esperança é fazer um filme belo e maravilhoso. Quero transmitir
de modo objetivo o que penso durante o filme para que todas as pessoas no mundo
todo apreciem. Um filme projetado na tela permite que as pessoas no mundo todo
compartilhem a vida dos personagens do filme. Dividir sofrimento e tristeza
ajuda as pessoas a se entenderem. É um papel importante do filme. É a melhor
coisa sobre os filmes. É através da beleza de um filme que se conquista isso. As
pessoas apreciam a beleza no mundo todo. Através da beleza, podemos.... Se a
beleza de um filme é apreciada então pode entender um ao outro. Esse é o tipo
de filme que quero fazer. (...) Não se trata de passar uma mensagem”. (Doc.
Uma mensagem de Kurosawa / 2000).
Pode-se afirmar que o
mestre japonês alcançou plenamente seus objetivos e esperanças. Seus filmes são
atemporais, universais e sintetizam o mundo globalizado. Trata-se
de um feito se considerarmos que ele advém de uma
cultura, pelo menos em grande parte do século XX, muito diferenciada do chamado
mundo Ocidental. Entretanto, em seus filmes tivemos: a criação do chamado
gênero policial tal como o conhecemos hoje;
adaptações muito particulares de Shakespeare, cineasta com o maior número de
refilmagens no mundo, inovação em técnicas de filmagem entre elas formas
de iluminação, forte presença de elementos naturais como a chuva e o sol, etc.
Influenciado por John Ford e os westerns norte-americanos, serviu também de
inspiração para o próprio western. Também foi parâmetro para os cineastas da
nova geração de Hollywood como Copolla, Spielberg e Lucas. Esse último inclusive citando Kurosawa e seus filmes de samurais como influenciadores
da saga que revolucionou o cinema contemporâneo que é Guerra nas Estrelas. Mas, sem dúvida a beleza nos filmes de
Kurosawa é justamente compreendida pelo humanismo latente em suas tramas. A
seguir, uma resenha (repleta de spoillers) de dois de seus filmes que comprovam
esta tese: Viver de 1952 com Takashi
Shimura um dos seus atores favoritos e O Barba
Ruiva com seu principal ator Toshiro Mifune. Viver, obra posterior do aclamado Roshmon, em que o mestre
nos apresenta uma história contemporânea do Japão pós II Guerra Mundial e O Barba Ruiva, último grande filme de
sua primeira fase, que só seria retomada em 1975 com
o sucesso de Dersu Uzala e o início de seus filmes coloridos.
Cronologicamente, iniciamos por Viver. O filme tem dois momentos diferenciados: no primeiro,
acompanhamos os últimos cinco meses de vida de um chefe de seção de uma
repartição pública municipal. Há um narrador com pouco, mas precisas falas.
Sabemos tratar-se de um burocrata que irá se arrepender pelos 30 anos de
serviços prestados sem ter uma única falta, está com câncer e por ora, não sabe
que irá morrer e, finalizando, após 5 meses da consulta médica morre. A
surpresa da narrativa fica por conta da segunda fase do
filme, em que Kurosawa utiliza o expediente de sucesso de Roshmon e apresenta pequenos flashbacks
narrados por seus colegas de trabalho. Estas memórias ocorrem no velório
ritualístico nipônico e vão nos revelando os últimos momentos do novo
personagem e, o mais interessante, as diferentes e aparentemente desconectadas
narrativas, celebram ao final a construção de um novo Watanabe, até então
desconhecido por todos que o conheceram.
A atuação de Takashi Shimura é emblemática: contido na
maioria das cenas, com uma voz quase inaudível até explosões de sentimentos, revelados
principalmente em suas expressões faciais como o close em seus olhos
arregalados ou o olhar vago e perdido em suas comiserações, traduzidas por ele
mesmo em mais de uma cena, o que dói não é o estômago enfermo, mas sim a
angústia representada pela mão fechada junto ao peito.
Sabemos a princípio por um parente e depois pelo próprio
protagonista, que este tornou-se viúvo muito jovem e optou por ser um dedicado
pai e funcionário público, renunciando mão de
prazeres pessoais. Agora, no crepúsculo da vida, surge o arrependimento das
coisas que poderiam ser realizadas ao longo de uma vida, no entanto, ficaram ao longo do caminho. Pior do que a velhice
em si é a consciência da finitude que o transforma em um ser perplexo diante do
aguardado, mas ao mesmo tempo assustador compromisso com a morte. O filme
dialoga com o Neorrealismo italiano, particularmente Umberto D (Vittorio de Sica / 1952) e o mais recente Harry, o amigo de Tonto de 1974 e
resenhado neste blog. Entretanto, a visão de Kurosawa é abrangente: a velhice e
a presença constante da finitude não são os únicos tópicos a nos envolver.
Podemos citar outros momentos reflexivos:
· “Pense em você. Seu
filho irá crescer e não irá se preocupar com você. Depois que casar então, irá
lhe esquecer”. Estas palavras ditas a ele logo no início da viuvez, passam a
ecoar em sua mente. Na convivência com o filho e a nora constata que não se
relacionam como deveriam e que ambos estão mais preocupados com o que ele irá
receber de prêmio após se aposentar. O protagonista toma ciência que é apenas e
tão somente uma moeda de troca e sua importância é apenas material;
· O Estado e o poder
público não cumprem com o seu papel social: a politicagem e o jogo de
interesses afastam funcionários dos seus reais objetivos. A burocracia estatal
repele o cidadão. A Democracia é uma ilusão nesta engrenagem do poder;
· A ação individual pode
(e deve) ocorrer seja qual for a motivação, nesse caso, a aproximação da morte.
Aguardar uma motivação coletiva pode não ser o melhor caminho. Sua ação deve
ocorrer independentemente da aprovação ou não dos seus pares, objetivos
individuais alcançados podem ou não gerarem transformações sociais.
Duas
cenas são particularmente belas, ambas relatos de seus colegas de trabalho que
a partir de flashbacks concluem que
Watanabe tinha consciência da aproximação da morte: na primeira quando
questionado sobre como se sentia sendo tratado como idiota nas repartições
públicas em defesa de sua causa, sua resposta foi “não tenho tempo para odiar”
e a segunda, enquanto caminha pela ponte observa o céu e admirado afirma o
quanto é bonito o pôr do sol e que
nunca havia reparado nisso, mas finaliza “Agora, não tenho mais tempo”.
Fosse um filme comercial a ação final
do protagonista que dá sentido à toda sua existência seria um exemplo a ser
seguido por todos. Seus funcionários e colegas de profissão sentiram-se
humilhados no velório quando diante de representantes da comunidade atendidos
por Watanabe constataram a inutilidade de seus trabalhos. Embriagados com saquê
propuseram a transformação: “Agora vamos trabalhar para atender a população”! O
comodismo, covardia e acomodação entretanto falam mais alto: do alto da obra
edificada através do esforço individual de Watanabe, o único funcionário que foi
de fato sensibilizado, constata entristecido que a mudança cultural e coletiva
ainda é um sonho distante.
Apesar do tom melancólico e
aparentemente pessimista, o filme carrega uma aura de perseverança e
resiliência por parte do protagonista raramente presenciada no cinema e é
justamente neste aspecto que a beleza tão procurada por Kurosawa é realçada.
Assim como Hitchcock, Kurosawa procurava ter
um controle total sobre suas obras. Desde o roteiro, - a maioria eram seus -
até o acompanhamento da trilha sonora, fotografia, etc. Nesse sentido, ele
tinha uma predileção pela edição. Filmava com várias câmeras desse modo o
artista nunca sabia o que de fato seria colocado no filme. Para ele, editar era
uma tarefa agradável e prazerosa. A matéria-prima não estava na filmagem em si,
mas na edição. Entretanto, ela nunca a realizava como acontece geralmente, no
término das filmagens. Como uma de suas técnicas, sempre que possível ele
mostrava as filmagens para a sua equipe. Esse processo explica e justifica a
necessidade em se passar dias gravando uma mesma cena e, ao mesmo tempo que
acaba por unir e guiar a equipe de filmagem durante toda a produção. Nesse aspecto,
Kurosawa não tinha dúvidas, quando uma cena parecia confusa ou entediante aos
expectadores devia ser excluída, cortada do filme.
No
documentário Uma mensagem de Kurosawa /
2000, ele afirma:
“Dirigir inclui guiar atores, filmagem, iluminação, sonoplastia, direção de
arte, trilha sonora, edição e dublagem. Embora todos sejam classificados como
tarefas separadas todos se misturam em minha mente. É impossível pensar em cada
um separado dos outros”.
No filme O Barba Ruiva podemos acompanhar algumas das técnicas de filmagem do
mestre japonês: o hospital que existiu no século XIX foi recriado em detalhes
para as filmagens que duraram dois anos. Ao vermos o filme nos sentimos como se
fizéssemos parte daquele cenário tamanha a precisão
dos detalhes. O trabalho da direção de arte é excepcional.
O filme tem em seu cunho social seu maior
destaque. Apesar do título fazer alusão a um personagem e a trama também
consolidar ações individuais desse personagem,
a abrangência social é maior do que em Viver.
O hospital público onde trabalha e chefia o “Barba Ruiva” é na verdade um
microcosmos da sociedade. Temos a paciente com distúrbios mentais e há uma ala de isolamento apenas para ela por pertencer a um
grupo social mais elevado e, a grande parte dos pacientes, a “ralé”, os pobres
incapazes de terem um tratamento melhor mesmo com todo empenho e dedicação do
dr. Barba Ruiva. Apesar de pecar ao mostrar a medicina como uma espécie de
“sacerdócio” profissional, o filme contrapõe o profissionalismo e sua ausência
em um mesmo espaço.
A princípio, somos levados a crer através de um
dos seus funcionários, que Barba Ruiva é um tirano. Gradativamente,
conforme o roteiro se desenvolve, constatamos que há
um enorme senso de justiça nas ações daquele que coordena o hospital. Não
apenas justiça, mas também uma série de sábias ações geradoras de mudança comportamental no personagem que faz o médico
arrogante e prepotente que, mesmo inexperiente acredita tudo saber por ter
estudado em sua formação pelo “método holandês”. Kurosawa nos apresenta no
choque entre estes dois médicos a dualidade entre uma medicina humanista
preocupada com o ser em sua totalidade e outra que é distante do paciente e
apenas tecnicista. Por sua vez, Barba Ruiva não é um protagonista carregado
de uma aura de santidade e é justamente esse fato que enobrece sua humanidade:
ele chantageia o governador, espanca cafetões em um bordel – “Eu não vou matar,
apenas quebrar alguns ossos”, utiliza todos os expedientes necessários para alcançar o objetivo de conseguir manter seu hospital e
atender sua clientela pobre e necessitada.
A trama e o roteiro nos apresentam a história de
vida de alguns personagens que se apresentam diante do expectador despidos de
falsos pudores. Em uma dessas cenas, Barba Ruiva diz ao
médico novato que a medicina se volta para as misérias humanas e a ignorância
talvez seja a maior doença a ser enfrentada.
Do garotinho que rouba o hospital para comer à
garota de 12 anos retirada à força do bordel, da ausência do Estado que corta
investimentos em saúde, Kurosawa relata o drama das pessoas comuns. O hospital
poderia ser uma repartição pública ou uma escola, o que se sobrepõem a tudo e a
todos é o dilema do homem diante das misérias humanas.
Ainda sobre a prática de dirigir Kurosawa disse:
“(...) construir é fácil e coisas práticas podem ser ensinadas. Mas o talento
não pode ser ensinado. Ensinar o que é o cinema também é muito difícil. Aqueles
que não entendem isso, não conseguem aprender. Explicar o que é o cinema em
palavras abstratas é algo que não sou capaz de fazer”. (Doc. Uma mensagem de Kurosawa /
2000).
O velho mestre não precisou ensinar o que é o
cinema através de palavras. Basta assistirmos a seus filmes para compreendermos
toda a magnitude da sétima arte.
VIVER: Kanji
Watanabe (Takashi Shimura) é um veterano burocrata que há décadas trabalha
diariamente na Prefeitura carimbando documentos. Ao descobrir que está com
câncer no estômago, ele decide dar um sentido à sua até então desperdiçada
vida.
O BARBA RUIVA: Um
jovem e arrogante médico (Yuzo Kayama) chega a uma clínica de um velho médico apelidado de Barba
Ruiva (Toshiro Mifune). Rebela-se contra
a austeridade do lugar, mas, aos poucos, compreende porquê ele quer atender os pobres e
necessitados.
“Quero fazer filmes,
filmes belos. Persigo esse objetivo há mais de 50 anos. (...), mas ainda não
captei totalmente o que é um filme. (...) Quero que todos apreciem a beleza do
cinema. Minha esperança é fazer um filme belo e maravilhoso. Quero transmitir
de modo objetivo o que penso durante o filme para que todas as pessoas no mundo
todo apreciem. Um filme projetado na tela permite que as pessoas no mundo todo
compartilhem a vida dos personagens do filme. Dividir sofrimento e tristeza
ajuda as pessoas a se entenderem. É um papel importante do filme. É a melhor
coisa sobre os filmes. É através da beleza de um filme que se conquista isso. As
pessoas apreciam a beleza no mundo todo. Através da beleza, podemos.... Se a
beleza de um filme é apreciada então pode entender um ao outro. Esse é o tipo
de filme que quero fazer. (...) Não se trata de passar uma mensagem”. (Doc.
Uma mensagem de Kurosawa / 2000).
Pode-se afirmar que o
mestre japonês alcançou plenamente seus objetivos e esperanças. Seus filmes são
atemporais, universais e sintetizam o mundo globalizado. Trata-se
de um feito se considerarmos que ele advém de uma
cultura, pelo menos em grande parte do século XX, muito diferenciada do chamado
mundo Ocidental. Entretanto, em seus filmes tivemos: a criação do chamado
gênero policial tal como o conhecemos hoje;
adaptações muito particulares de Shakespeare, cineasta com o maior número de
refilmagens no mundo, inovação em técnicas de filmagem entre elas formas
de iluminação, forte presença de elementos naturais como a chuva e o sol, etc.
Influenciado por John Ford e os westerns norte-americanos, serviu também de
inspiração para o próprio western. Também foi parâmetro para os cineastas da
nova geração de Hollywood como Copolla, Spielberg e Lucas. Esse último inclusive citando Kurosawa e seus filmes de samurais como influenciadores
da saga que revolucionou o cinema contemporâneo que é Guerra nas Estrelas. Mas, sem dúvida a beleza nos filmes de
Kurosawa é justamente compreendida pelo humanismo latente em suas tramas. A
seguir, uma resenha (repleta de spoillers) de dois de seus filmes que comprovam
esta tese: Viver de 1952 com Takashi
Shimura um dos seus atores favoritos e O Barba
Ruiva com seu principal ator Toshiro Mifune. Viver, obra posterior do aclamado Roshmon, em que o mestre
nos apresenta uma história contemporânea do Japão pós II Guerra Mundial e O Barba Ruiva, último grande filme de
sua primeira fase, que só seria retomada em 1975 com
o sucesso de Dersu Uzala e o início de seus filmes coloridos.
Cronologicamente, iniciamos por Viver. O filme tem dois momentos diferenciados: no primeiro,
acompanhamos os últimos cinco meses de vida de um chefe de seção de uma
repartição pública municipal. Há um narrador com pouco, mas precisas falas.
Sabemos tratar-se de um burocrata que irá se arrepender pelos 30 anos de
serviços prestados sem ter uma única falta, está com câncer e por ora, não sabe
que irá morrer e, finalizando, após 5 meses da consulta médica morre. A
surpresa da narrativa fica por conta da segunda fase do
filme, em que Kurosawa utiliza o expediente de sucesso de Roshmon e apresenta pequenos flashbacks
narrados por seus colegas de trabalho. Estas memórias ocorrem no velório
ritualístico nipônico e vão nos revelando os últimos momentos do novo
personagem e, o mais interessante, as diferentes e aparentemente desconectadas
narrativas, celebram ao final a construção de um novo Watanabe, até então
desconhecido por todos que o conheceram.
A atuação de Takashi Shimura é emblemática: contido na
maioria das cenas, com uma voz quase inaudível até explosões de sentimentos, revelados
principalmente em suas expressões faciais como o close em seus olhos
arregalados ou o olhar vago e perdido em suas comiserações, traduzidas por ele
mesmo em mais de uma cena, o que dói não é o estômago enfermo, mas sim a
angústia representada pela mão fechada junto ao peito.
Sabemos a princípio por um parente e depois pelo próprio
protagonista, que este tornou-se viúvo muito jovem e optou por ser um dedicado
pai e funcionário público, renunciando mão de
prazeres pessoais. Agora, no crepúsculo da vida, surge o arrependimento das
coisas que poderiam ser realizadas ao longo de uma vida, no entanto, ficaram ao longo do caminho. Pior do que a velhice
em si é a consciência da finitude que o transforma em um ser perplexo diante do
aguardado, mas ao mesmo tempo assustador compromisso com a morte. O filme
dialoga com o Neorrealismo italiano, particularmente Umberto D (Vittorio de Sica / 1952) e o mais recente Harry, o amigo de Tonto de 1974 e
resenhado neste blog. Entretanto, a visão de Kurosawa é abrangente: a velhice e
a presença constante da finitude não são os únicos tópicos a nos envolver.
Podemos citar outros momentos reflexivos:
· “Pense em você. Seu
filho irá crescer e não irá se preocupar com você. Depois que casar então, irá
lhe esquecer”. Estas palavras ditas a ele logo no início da viuvez, passam a
ecoar em sua mente. Na convivência com o filho e a nora constata que não se
relacionam como deveriam e que ambos estão mais preocupados com o que ele irá
receber de prêmio após se aposentar. O protagonista toma ciência que é apenas e
tão somente uma moeda de troca e sua importância é apenas material;
· O Estado e o poder
público não cumprem com o seu papel social: a politicagem e o jogo de
interesses afastam funcionários dos seus reais objetivos. A burocracia estatal
repele o cidadão. A Democracia é uma ilusão nesta engrenagem do poder;
· A ação individual pode
(e deve) ocorrer seja qual for a motivação, nesse caso, a aproximação da morte.
Aguardar uma motivação coletiva pode não ser o melhor caminho. Sua ação deve
ocorrer independentemente da aprovação ou não dos seus pares, objetivos
individuais alcançados podem ou não gerarem transformações sociais.
Duas
cenas são particularmente belas, ambas relatos de seus colegas de trabalho que
a partir de flashbacks concluem que
Watanabe tinha consciência da aproximação da morte: na primeira quando
questionado sobre como se sentia sendo tratado como idiota nas repartições
públicas em defesa de sua causa, sua resposta foi “não tenho tempo para odiar”
e a segunda, enquanto caminha pela ponte observa o céu e admirado afirma o
quanto é bonito o pôr do sol e que
nunca havia reparado nisso, mas finaliza “Agora, não tenho mais tempo”.
Fosse um filme comercial a ação final
do protagonista que dá sentido à toda sua existência seria um exemplo a ser
seguido por todos. Seus funcionários e colegas de profissão sentiram-se
humilhados no velório quando diante de representantes da comunidade atendidos
por Watanabe constataram a inutilidade de seus trabalhos. Embriagados com saquê
propuseram a transformação: “Agora vamos trabalhar para atender a população”! O
comodismo, covardia e acomodação entretanto falam mais alto: do alto da obra
edificada através do esforço individual de Watanabe, o único funcionário que foi
de fato sensibilizado, constata entristecido que a mudança cultural e coletiva
ainda é um sonho distante.
Apesar do tom melancólico e
aparentemente pessimista, o filme carrega uma aura de perseverança e
resiliência por parte do protagonista raramente presenciada no cinema e é
justamente neste aspecto que a beleza tão procurada por Kurosawa é realçada.
Assim como Hitchcock, Kurosawa procurava ter
um controle total sobre suas obras. Desde o roteiro, - a maioria eram seus -
até o acompanhamento da trilha sonora, fotografia, etc. Nesse sentido, ele
tinha uma predileção pela edição. Filmava com várias câmeras desse modo o
artista nunca sabia o que de fato seria colocado no filme. Para ele, editar era
uma tarefa agradável e prazerosa. A matéria-prima não estava na filmagem em si,
mas na edição. Entretanto, ela nunca a realizava como acontece geralmente, no
término das filmagens. Como uma de suas técnicas, sempre que possível ele
mostrava as filmagens para a sua equipe. Esse processo explica e justifica a
necessidade em se passar dias gravando uma mesma cena e, ao mesmo tempo que
acaba por unir e guiar a equipe de filmagem durante toda a produção. Nesse aspecto,
Kurosawa não tinha dúvidas, quando uma cena parecia confusa ou entediante aos
expectadores devia ser excluída, cortada do filme.
No
documentário Uma mensagem de Kurosawa /
2000, ele afirma:
“Dirigir inclui guiar atores, filmagem, iluminação, sonoplastia, direção de
arte, trilha sonora, edição e dublagem. Embora todos sejam classificados como
tarefas separadas todos se misturam em minha mente. É impossível pensar em cada
um separado dos outros”.
No filme O Barba Ruiva podemos acompanhar algumas das técnicas de filmagem do
mestre japonês: o hospital que existiu no século XIX foi recriado em detalhes
para as filmagens que duraram dois anos. Ao vermos o filme nos sentimos como se
fizéssemos parte daquele cenário tamanha a precisão
dos detalhes. O trabalho da direção de arte é excepcional.
O filme tem em seu cunho social seu maior
destaque. Apesar do título fazer alusão a um personagem e a trama também
consolidar ações individuais desse personagem,
a abrangência social é maior do que em Viver.
O hospital público onde trabalha e chefia o “Barba Ruiva” é na verdade um
microcosmos da sociedade. Temos a paciente com distúrbios mentais e há uma ala de isolamento apenas para ela por pertencer a um
grupo social mais elevado e, a grande parte dos pacientes, a “ralé”, os pobres
incapazes de terem um tratamento melhor mesmo com todo empenho e dedicação do
dr. Barba Ruiva. Apesar de pecar ao mostrar a medicina como uma espécie de
“sacerdócio” profissional, o filme contrapõe o profissionalismo e sua ausência
em um mesmo espaço.
A princípio, somos levados a crer através de um
dos seus funcionários, que Barba Ruiva é um tirano. Gradativamente,
conforme o roteiro se desenvolve, constatamos que há
um enorme senso de justiça nas ações daquele que coordena o hospital. Não
apenas justiça, mas também uma série de sábias ações geradoras de mudança comportamental no personagem que faz o médico
arrogante e prepotente que, mesmo inexperiente acredita tudo saber por ter
estudado em sua formação pelo “método holandês”. Kurosawa nos apresenta no
choque entre estes dois médicos a dualidade entre uma medicina humanista
preocupada com o ser em sua totalidade e outra que é distante do paciente e
apenas tecnicista. Por sua vez, Barba Ruiva não é um protagonista carregado
de uma aura de santidade e é justamente esse fato que enobrece sua humanidade:
ele chantageia o governador, espanca cafetões em um bordel – “Eu não vou matar,
apenas quebrar alguns ossos”, utiliza todos os expedientes necessários para alcançar o objetivo de conseguir manter seu hospital e
atender sua clientela pobre e necessitada.
A trama e o roteiro nos apresentam a história de
vida de alguns personagens que se apresentam diante do expectador despidos de
falsos pudores. Em uma dessas cenas, Barba Ruiva diz ao
médico novato que a medicina se volta para as misérias humanas e a ignorância
talvez seja a maior doença a ser enfrentada.
Do garotinho que rouba o hospital para comer à
garota de 12 anos retirada à força do bordel, da ausência do Estado que corta
investimentos em saúde, Kurosawa relata o drama das pessoas comuns. O hospital
poderia ser uma repartição pública ou uma escola, o que se sobrepõem a tudo e a
todos é o dilema do homem diante das misérias humanas.
Ainda sobre a prática de dirigir Kurosawa disse:
“(...) construir é fácil e coisas práticas podem ser ensinadas. Mas o talento
não pode ser ensinado. Ensinar o que é o cinema também é muito difícil. Aqueles
que não entendem isso, não conseguem aprender. Explicar o que é o cinema em
palavras abstratas é algo que não sou capaz de fazer”. (Doc. Uma mensagem de Kurosawa /
2000).
O velho mestre não precisou ensinar o que é o
cinema através de palavras. Basta assistirmos a seus filmes para compreendermos
toda a magnitude da sétima arte.
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