terça-feira, 20 de outubro de 2015

RESENHA TEMPOS MODERNOS


TEMPOS MODERNOS / MODERN TIMES
Produção: EUA / 1936
Direção: Charles Chaplin
Elenco: Charles Chaplin / Paulette Goddard
Duração: 83 min.

            Tempos Modernos é o ápice criativo do maior gênio que o cinema conheceu. Todo seu conhecimento, sua técnica, caráter inovador e domínio da arte que o consagrou estão presentes de maneira total e absoluta: a pantomima levada ao extremo, o forte e absoluto reinado do drama social, o apelo ao sentimental e a irreverência e ironia de Chaplin em sua primeira participação sonora transformaram Tempos Modernos em um clássico absoluto às vésperas de completar seu octogésimo aniversário.
          Este filme foi fundamental para a consolidação do cineasta como um anti-herói por parte da conservadora sociedade norte-americana. Enquanto o grande público e a crítica o transformavam em um ícone do cinema, os políticos e os representantes das elites econômicas do país o enxergavam como uma eventual ameaça. Tal fato confirmou-se em 1940 quando do lançamento de outro clássico: O Grande Ditador. Em uma época em que os EUA não desejavam se posicionar em relação à II Grande Guerra, um Hitler ridicularizado por Carlitos não era nem um pouco bem visto. O ditador nazista ainda não era o “inimigo da América” _ não nos esqueçamos de que ao longo da década de 30, o nazismo e seu líder eram bem vistos por setores da sociedade norte-americana: a eugenia e ideia de superioridade racial estavam enraizadas principalmente no sul dos EUA, grandes empresas e corporações eram parceiras comerciais e o governo norte-americano via a princípio com bons olhos um aliado econômico em uma época em que havia a ameaça do stalinismo na Europa (ver notas *).
Assim, após o lançamento do filme no início da guerra Chaplin passou a ser persona non grata ao establishment. Tal fato gerou uma verdadeira perseguição pessoal ao artista, que sofreu acusações e investigações pela HUAC - Comissão para Investigação de Atividades Antiamericanas - e posteriormente pela famosa comissão do senado do republicano Joseph McCarthy, na qual vários norte-americanos acusados de serem comunistas ou simpatizantes de tais ideais tiveram que se explicar perante os senadores, a famosa “caça às bruxas”. Tal situação levou Chaplin a um exílio voluntário na Suíça, no início dos anos 50, que só foi quebrado em 1972 quando a Academia de Hollywood resolveu, de maneira envergonhada, homenageá-lo e premiá-lo com um Oscar honorário.
          Além das questões políticas, Chaplin ousou: criticou de maneira jocosa, irônica e por vezes cínica, o que a sociedade norte-americana defende até hoje como o que tem de mais valioso, que são seus princípios de liberdade, trabalho e ascensão social, o famoso American way of life. Nascido de uma família pobre, filho de atores mambembes do cenário londrino, o artista representava justamente o protótipo dos valores norte-americanos, ou seja, alguém que “veio de baixo” e com seu esforço, competência e habilidade alcançou o topo da escala social. Entretanto, mesmo sendo fruto desta sociedade que o acolheu, ao contrário de tantos que se renderam ao modelo hegemônico e aceitaram imposições sobre seu estilo, Chaplin utiliza a linguagem cinematográfica para criar através do seu personagem denominado de vagabundo a imagem de um herói urbano.
          Em uma sociedade em que o sucesso é ícone de ascensão social, onde supostamente as oportunidades de conquista profissional e financeira são para todos, onde “o céu é o limite” para se obter os bens materiais,  transformar um “vagabundo” em herói, sem dúvida alguma não poderia colocá-lo como uma unanimidade. Para muitos, o simpático Carlitos era uma ameaça.
          A arte cênica ao longo do tempo sempre foi vista como um importante elemento de conscientização e transformação social. Da Antiguidade temos o legado das famosas tragédias gregas. As comédias sempre tiveram um apelo muito grande junto ao público, do teatro às apresentações de ruas, dos circos etc. Chaplin insere neste contexto a nova linguagem do cinema para ocupar este espaço, a das “fotos em movimento”: ao rir das agruras cotidianas do personagem criado por Chaplin, as plateias se identificavam com seu dia a dia, principalmente em uma época de reconstrução do país com a quebra da bolsa de valores em Nova York (1929), onde a crise do capitalismo escancara ainda mais as contradições daquela sociedade criada pelos sonhos de consumo.
          Os traumas de sua infância, com pai alcoólatra, mãe internada em manicômio, abandono e miséria transformaram-no em um artista que, ao invés de renegar seu passado, colocou tais situações como protagonista em suas tramas. Sua arte e seu estilo eram um meio que o levava a depurar seus sentimentos mais íntimos, afastar seus fantasmas e colocar o homem comum_ sempre se metendo em confusões e sem dinheiro, mas cheio de afeto_ como o centro do universo: o humanismo chapliniano. E é justamente disto que estamos tratando quando analisamos Tempos Modernos: não é uma suposta ideologia que deve rotular sua obra. Chaplin critica o patrão, mas também apresenta o operário em algumas situações que estão longe de caracterizá-lo apenas como vítima. Evidentemente que a crítica maior e mais contundente é sobre o capital e por uma razão bem simples, não é a máquina que representa o retrocesso, mas sim o mau uso deste instrumento que transforma pessoas em não pessoas. Como humanista que era, a dissecação do trabalho em uma linha de montagem desumaniza o homem, e é justamente este processo que será duramente criticado pelo artista naquilo que ele tinha de melhor em sua arte: o humor!
          Em Tempos Modernos, logo na apresentação a primeira imagem é a de um relógio com os ponteiros em movimento. Anuncia-se aqui o tempo das fábricas, das indústrias, o predomínio da medida cronológica monitorando as sociedades industriais e pós-industriais, pois ainda é justamente este tempo ao qual nos reportamos e nos submetemos na chamada pós-modernidade atual. Ao contrário de outros momentos históricos em que a religiosidade e a vida agrária eram controladas pelo tempo da Igreja Católica Ocidental através do badalar dos sinos, assim como a presença de relógios sem a existência de ponteiros para os minutos, a partir da Revolução Industrial (final do século XVIII e séc. XIX) o tempo deixa de ser “lento” e passa a seguir o ritmo da linha de montagem. A indústria e sua organização tornam-se um modelo que molda várias instituições, até mesmo as escolas, que passam a ter uma estrutura similar, inclusive com os sinais tais como os de uma fábrica. A linha de montagem estabelece não apenas o ritmo do dinheiro como também o movimento da própria vida. É esta pressa, esta rapidez que leva o trabalhador à completa neurose que irá determinar o sentido de sua própria subsistência. Trata-se de um homem máquina, ou a visão do homem enquanto continuidade desta engrenagem em que o elemento humano perde a sua qualidade de ser e transforma-se em um fim em si mesmo, ou a partir dos estudos de Marx, em um alienado, isto é, “(...) quando o ser humano se afasta de sua natureza, (...) não controla sua atividade essencial, pois os objetos que produz (as mercadorias) passam a adquirir existência independente do seu poder e contrária aos seus interesses. Estado do indivíduo que não mais se pertence, que não detém o controle de si mesmo ou que se vê privado de seus direitos fundamentais, passando a ser considerado uma "coisa". Falta de percepção de si mesmo”. (Iniciação à Filosofia, Marilena Chauí, ed. Ática, 2012, pág. 363).
          Historicamente, ao deixar de ser um artesão que acompanha todas as etapas da produção, o operário da nascente indústria anula sua criatividade, submete-se ao controle completo e absoluto do capital. É este ser fragmentado e sem poder sobre os seus próprios corpo e mente _ satirizado nas cenas em que a linha de montagem é desligada para o almoço e no processo repetitivo que bloqueia qualquer lampejo de criação_ que Chaplin coloca este homem em sua real posição: a de um ser em profundo processo de desumanização.
          A genialidade de Chaplin manifesta-se naquela que talvez seja a cena mais engraçada e, ao mesmo tempo, mais trágica, surreal e assustadora: o momento em que um comerciante tenta vender ao proprietário da indústria uma máquina que iria colocar na boca do operário o alimento. Seu objetivo seria o de reduzir o tempo de almoço e consequentemente agilizar a produção. Ao divulgar seu produto, o comerciante enaltece suas qualidades dizendo: “Veja, o operário não faz nada, a máquina faz tudo”. Estes são os Tempos Modernos...

         O paradoxo em uma sociedade que enaltece a liberdade acima de todo e qualquer valor é o personagem de Chaplin fazer de tudo ao longo do filme para voltar à prisão, onde por ter “sem querer” evitado uma fuga em massa, nosso simpático protagonista passa a ter um tratamento diferenciado e privilegiado. Assim, ao ganhar sua liberdade, o vagabundo faz de tudo para perdê-la, voltar a ser preso é seu objetivo maior. Nestas cenas, vemos então o humor irônico de seu criador em plena forma: de que adianta ser livre em uma sociedade que nos aprisiona?
          Em seus filmes, os personagens que representam o poder e o Estado são constantemente humilhados, os guardas e a polícia em si, suas maiores vítimas. Chutar a bunda de um policial era um exercício metafísico. Nestas cenas o poder coercitivo do Estado e sua autoridade são duramente criticados. Em Tempos Modernos, a viatura policial mais parece um ônibus, um coletivo, pois para com frequência para prender bêbados, desocupados e acima de tudo pobres. Através do riso torna-se muito fácil identificar quem são os “cidadãos”, quem os defende e contra quem. Há uma sequência esplêndida onde o vagabundo e sua amiga estão sentados na calçada de um bonito bairro residencial, então um homem bem vestido sai para trabalhar e sua esposa dona-de-casa despede-se do marido com entusiasmo. O vagabundo imita os gestos exagerados da mulher e imagina como seria maravilhoso viver em uma casa como aquela. O seu sonho encerra-se com a chegada de um guarda prestes a prendê-los por vadiagem. A cena a seguir na loja de departamentos nos apresenta também o contraste entre a sociedade de ostentação, que é para poucos, com a realidade de muitos que, além do preconceito e humilhação, ainda enfrentam a forte repressão policial (como na cena em que Chaplin sem querer balança uma bandeira caída de um caminhão – provavelmente vermelha – e é preso como líder grevista e quando o pai desempregado é morto em uma manifestação).


          Não é apenas o capital que merece críticas; em um momento tão difícil como aquele, a conquista do emprego era uma realização. Assim, quando no final do filme nosso protagonista consegue este feito, no mesmo dia_ para sua decepção e de seu encarregado_ as máquinas novamente são paradas e mais uma vez inicia-se uma greve. Os dois trabalhadores demonstram claramente a insatisfação diante daquele quadro. Aqui, o trabalhador é colocado entre um patrão opressor e um sindicato incapaz de realizar uma leitura adequada do momento.
          Recentemente ouvi no rádio a entrevista de um importante representante do sindicato patronal defendendo a lei de terceirização que foi aprovada na Câmara dos Deputados e segue para o Senado Federal. Infelizmente não me recordo de seu nome, mas entre outras coisas chegou a dizer que era um absurdo o trabalhador ter uma hora para o almoço, que muitos não utilizam este tempo e que poderiam, por exemplo, fazer como nos EUA, onde o operário come um lanche em quinze minutos, podendo assim sair antes do término de sua jornada de trabalho. Ao ouvir tamanho absurdo, foi imediata a relação com a famosa cena de um coitado e atabalhoado Carlitos tendo que comer rapidamente através de uma máquina que colocava o alimento em sua boca.
          Também em pleno 2015, a linha de montagem continua funcionando tal como aquela imortalizada no filme, a repressão policial faz parte dos principais Estados de Direito ditos democráticos no mundo e não apenas das ditaduras denominadas de direita ou esquerda, relógios de ponto, hoje eletrônicos,  baseados na biometria são instalados em instituições de ensino público, como se o trabalho intelectual de um profissional da educação pudesse ser mensurado e quantificado. É possível controlar o tempo de um trabalho criativo como o de um professor? Quando até mesmo sobre um trabalho essencialmente mental se busca o controle e a consequente alienação, devemos nos perguntar se Charles Chaplin era de fato um comediante ou se estava muito além desta denominação quase quarenta anos depois de sua morte.
          Façamos um exercício: se estivesse vivo, se fosse brasileiro e filmasse Tempos Modernos em 2015, evidentemente com algumas atualizações, como Chaplin seria visto por importantes setores de nossa sociedade?
          Será que seria rotulado de comunista? Esquerdista? Ou pior: será que teria que ouvir Vai pra Cuba! ?
          Evitar apontar erros, falhas que existem em todos os sistemas econômicos e políticos existentes levam as pessoas a ter opiniões fechadas. Muitos setores de nossa sociedade pretendem fechar os olhos para situações em que o capital e sua estrutura são incapazes de resolver o que Chaplin apontava com fina ironia oitenta anos atrás. Longe de uma pregação revolucionária ou da substituição de um sistema por outro, Chaplin nos diz com Tempos Modernos que o capitalismo está muito longe de ser o melhor dos mundos e que não querer ver que há diferenças sociais gritantes e absurdas é um erro maior do que aquele cometido pela igreja católica ao condenar Galileu Galilei. Infelizmente ainda sustenta-se em nosso país o discurso da cordialidade do brasileiro e de uma total ausência de conflitos sociais; para estes, denunciar a desigualdade é algo não patriótico e capaz de incitar o ódio e uma luta de classes. É este discurso antiquado, baseado no medo e na ignorância _ mas, ao mesmo tempo oportunista_ de importantes setores sociais respaldado pelos mais importantes veículos de comunicação de massa, que nos afasta de nossos reais problemas. Para estes grupos, Charles Chaplin, o maior gênio da mais importante arte do século XX, o cinema, deve ser visto apenas e tão somente como um comediante e seus filmes, assistidos apenas como entretenimento. Ou seja, rir e não pensar.
          Chaplin não cria em Carlitos uma consciência de classe, mas faz de seu personagem central o protótipo do homem desconcertado diante do mundo que o cerca. Se Euclides da Cunha caracterizou o sertanejo como um forte, Chaplin com seu personagem recria a famosa obra de Dali a persistência da memória de 1931 onde surge uma nova visão de homem: a da resistência e resiliência e, acima de tudo, a coragem e o otimismo diante de tantas incertezas. A emocionante cena final é um convite a tudo isso.


         

NOTAS (*)

quinta-feira, 16 de julho de 2015

PASSAGEM PARA A ÍNDIA



PASSAGEM PARA A ÍNDIA / A PASSAGE TO INDIA
Produção: EUA / INGLATERRA / 1984
Direção: David Lean
Elenco: Peggy Ashcroft / Judy Davis / James Fox / Victor Banerjee / Alec Guinness
Duração: 164 min.

          Assim como fizera em A Ponte do Rio Kwai (1957) e Lawrence da Arábia (1962), são os Impérios, o colonialismo e a guerra cenários para David Lean mitificar seus personagens. Os planos abertos, o capricho em cada detalhe da produção que o transformaram em um artesão da imagem e a trilha sonora envolvente (de Maurice Jarre, premiada com o Oscar) estão também presentes em Passagem para a Índia.
          A trama política _ no caso o colonialismo britânico na Índia pré-Gandhi, década de 20 do século passado _ serve muito mais para realçar os conflitos pessoais das personagens do que propriamente transmitir uma mensagem política, embora ela também esteja presente, assim como na obra literária homônima de E.M. Forster na qual o filme foi baseado e adaptado.
          Passagem para a Índia pode ser sintetizado pela temática do choque de culturas: a europeia, branca, formal e dominante a partir de um conceito de superioridade racial, justificada pelo darwinismo social, em voga na época e a cultura daquele que recebe o colonizador com uma mistura de revolta e indignação contra o invasor e também com uma parte que anseia, copia e até mesmo inveja os padrões culturais de quem é diferente por considerá-los culturalmente mais evoluídos que os seus.
          Apesar de não ser a protagonista do filme, a personagem da Sr.ª. Moore (interpretada por Peggy Ashcroft, ganhadora do Oscar justamente na categoria de coadjuvante) é aquela que tece o fio condutor de toda a trama. Apesar da idade avançada, é a personagem que rompe com o dogmatismo e a formalidade do colonialismo britânico, que respeita a religião e a cultura desconhecida, que preconiza um futuro ainda muito distante baseado no respeito à diversidade. Por sua vez, sua futura nora, a Srtª. Quested (Judy Davis),que a acompanha nesta viagem, pode ser apontada como seu alter-ego, talvez a nora que tenha sido escolhida “sob medida” para tentar quebrar o conservadorismo do sahib, seu filho que atua como juiz na colônia britânica.
          Do lado indiano, simpatizamos de imediato com o Dr. Aziz (Victor Banerjee), um personagem que dificulta nosso discernimento ao confundirmos em seu comportamento um misto de gentileza com atitudes simplórias. Desta mescla, surge toda nossa afeição por ele. O olhar da Sr.ª. Moore e do Professor Fielding (James Fox) é o mesmo que o do telespectador: impossível este personagem ser o vilão central de uma trama que apresenta com sutileza o Imperialismo que, por sua simples presença e existência, já é sinônimo de vilania, como fica evidente na cena do julgamento.
          Dr. Aziz é um médico solitário e muçulmano, com poucos e leais amigos, que faz da medicina uma prática caridosa, vive com modéstia franciscana, viúvo e pai de dois filhos pequenos que são educados pela sogra. Entretanto, veste-se como um britânico e admira a imponência daqueles que o dominam. Uma leitura marxista o classificaria como um alienado, aquele que não consegue ter uma consciência de classe e que almeja um dia estar próximo daqueles que lhe inspiram: o britânico, que não é visto por ele como um elemento invasor e conquistador, mas sim como aquele que irá trazer progresso e desenvolvimento ao seu país. Um dos seus sonhos é o de poder se aproximar dos ingleses e a primeira pessoa com que ele irá estreitar esses laços é justamente a Sr.ª. Moore, quando esta, entediada por uma apresentação teatral, entra na mesquita onde o Dr. Aziz se encontra. O susto e o choque cultural são minimizados quando ao contrário dos demais o muçulmano constata que a cristã tirou os sapatos:

          “Eu estou sem os sapatos, posso entrar aqui”.

          “Sim, É que quando ninguém vê, geralmente os britânicos, principalmente as mulheres, não respeitam esta norma”.
         
          “Deus está aqui”.
         
          A resposta da Sr.ª. Moore o conquista de corpo e alma. O respeito e a beleza da cena são emblemáticos na concepção e no vínculo que criamos com estes personagens. Aqui não há barreiras ideológicas ou proselitismo de qualquer espécie: a afinidade supera qualquer forma de adversidade.
          Outro personagem carismático é o filósofo hindu, o Dr. Godbole, interpretado por Alec Guinness, o ator preferido de Lean. Aqui, em suas poucas aparições carrega uma aura de mistério, melhor representando o misticismo oriental. Através do seu distanciamento e aparente desinteresse pelas coisas, esconde-se uma sabedoria brâmane que comprova ser esta a melhor forma de enfrentar os problemas que surgem ao longo da trama. Também se destaca a amizade entre um muçulmano, o Dr. Aziz, e um hindu, o Profº Godbole, algo que não era e ainda não é tão simples na sociedade indiana.
          A Sr.ª. Moore, que acreditava que os ingleses estavam em terras orientais para praticar o bem, e não exercer a cobiça e o poder, procura de todas as formas, juntamente com a Srtª. Quested, romper com a segregação. Para tanto, estar em contato com a verdadeira Índia era mais que essencial, tornava-se obrigatório desmistificar aquele país que era filtrado pelos britânicos para ser palatável à elite colonizadora. Assim surge a ideia e o convite do Dr. Aziz para a visita às cavernas de Marabar.
          É nesse cenário de aparente desolação, distante de qualquer elemento civilizatório, que nos deparamos com o conflito interior da Srtª Quested, uma personagem em dúvida entre seguir seus próprios instintos e desejos ou casar com o apático e formal filho da Sr.ª. Moore. Antes deste passeio às cavernas, ela se defronta sozinha com estátuas representativas do Kama Sutra, a milenar arte erótica indiana. Tais imagens a desestabilizam emocionalmente: ali estava um mundo desconhecido, a Índia com sua cultura sem nenhuma interferência do colonizador e ao mesmo tempo um mundo que na sociedade em que ela esta inserida só seria alcançado com o casamento. É este conflito interior que se escancara quando ela esta só no interior de uma das cavernas de Marabar, onde as vozes e os ecos ampliam sua “caixa de ressonância” intima. O que fazer diante da iminência de decisões que irão moldar nossas vidas nos anos vindouros? Como lidar entre aquele amor e sentimentos britânicos onde o distanciamento e a frieza são a tônica e o que ela sabia que sentia, mas que não era socialmente aceito pelo seu grupo social?
          Como disse a personagem da Sr.ª. Moore a ela: “A índia nos força a encarar nós mesmos”.
          Esta confusão mental a leva a ter a provável alucinação que terá desdobramentos em todos os personagens. Analisando metaforicamente e freudianamente, a visão do Dr. Aziz pela Srtª. Quested na entrada da caverna úmida e escura simboliza a perda de sua inocência. Aqui, o estupro não foi físico, mas espiritual.



          O filme também nos emociona com a belíssima amizade entre o professor Fielding e o Dr. Aziz. Amizade que cresce e se consolida justamente na adversidade, que leva o professor e diretor da escola local a renunciar a sua gente e a sua posição social por uma questão de princípios e valores morais. Apenas esta relação já valeria o romance e o filme, mas a riqueza de aspectos que são abertos com a narrativa é muito mais abrangente. Por exemplo, a partir da acusação de estupro e da amizade entre os dois homens, o Dr. Aziz perde a admiração pela cultura do colonizador. Acompanhamos sua transformação carregada de sofrimento até observarmos a mudança em seu exterior, sua vestimenta agora indiana que personifica um “novo homem”, mais consciente e menos esperançoso e, entretanto, não mais feliz.
          O romance e o filme vão muito além do que questões políticas, históricas e ideológicas: não é panfletário, embora acuse em todos os momentos o Imperialismo britânico, mas é, acima de tudo, humano por retratar seus personagens em situações de limite e confronto, seja com as instituições (como a Sr.ª Moore e o Prof. Fielding), ou pior, com o fantasma de enfrentar a si próprio, como o que ocorreu com o simpático  Dr. Aziz e a Srtª. Quested.
          Várias cenas são lindíssimas, com o tratamento dos planos abertos e a fotografia excepcional: os guarda-chuvas da primeira tomada, o encontro das duas culturas - a Sr.ª Moore e o Dr. Aziz - com o luar, o rio Ganges de tantas histórias ao fundo e o vento alterando a passagem e profetizando as mudanças que estavam por vir, as estátuas do Kama Sutra, inclusive deitadas no chão mostrando um país despojado com sua cultura milenar, a subida até as montanhas com o passeio de elefante, a despedida e a  benção da Sr.ª Moore pelo Prof. Godbole no interior do trem, a Srtª. Quested perdida na multidão após o julgamento, a leitura simultânea da carta escrita pelo Dr. Aziz à srtª. Quested e a visão desta no vidro embaçado pela forte chuva londrina.
          O filme começa e termina com cenas de chuva. Todos os personagens tomaram seus rumos, as vidas seguiram seus cursos, mas não é difícil constatarmos com a ajuda da natureza que a felicidade passou distante tanto do remetente como da destinatária da carta: o agradecimento e o perdão não foram suficientes para os redimirem diante da vida.
          Em seu réquiem David Lean nos brindou com um majestoso e inesquecível filme que trinta anos depois mantêm seu frescor da estreia. Imperdível e atemporal, um clássico!


domingo, 1 de março de 2015

SE MEU APARTAMENTO FALASSE (THE APARTMENT)




SE MEU APARTAMENTO FALASSE (THE APARTMENT) / 1960
Dir: Billy Wilder / 121'
Elenco: Jack Lemmon / Shirley MacLaine / Fred MacMurray
          
             Neste final de semana estive em uma rede de cinema para assistir pela primeira vez na telona a obra-prima do genial Billy Wilder, Se meu apartamento falasse / The apartment. Infelizmente o título em português sugere uma comédia romântica; trata-se, isto sim, de um drama muito distante da tradução em português que está mais próxima de um filme da Disney.
          Apesar da excelente ideia desta rede de cinemas em exibir clássicos antigos, os filmes estão muito mal divulgados e em horários terríveis. Uma sessão no sábado depois das 23 horas, outra no domingo por volta de meio-dia e na quarta de noite. Quando comprei o ingresso, havia quatro comprados, dois para um casal e dois avulsos. Disse para minha companheira, “preste atenção, assim que este casal vir que o filme é em preto e branco irá embora”. Impressionante minha previsão, em menos de cinco minutos de exibição, ela se virou para mim e disse: “Tem razão. Eles já foram embora.” Uma pena o preconceito e a ignorância das pessoas. Quando têm a oportunidade de ver algo que realmente vale à pena são afastadas, como sempre, pela “aparência”. Mesmo sendo sem cores, o preto e branco estava em boa condição, pois provavelmente a cópia foi remasterizada. Entretanto, se for para exibir clássicos do cinema, vamos divulgar melhor com cartazes e horários mais acessíveis. Fica aqui a sugestão.
          Vamos ao que interessa: C.C.Baxter é um executivo de uma seguradora em Nova York que empresta seu apartamento a todos os principais chefes para que o utilizem para encontros com suas amantes. Quanto mais aumenta sua rede de clientes, mais ele vai subindo profissionalmente com promoções, até chegar próximo do principal executivo e chefe do RH da empresa. Entretanto, seus sonhos de ascensão social e prestígio caem por terra quando ele descobre que a mulher por quem se apaixonou, a ascensorista Fran Kubelick, é justamente a amante do seu chefe e “protetor”.
          Esta trama aparentemente simples se transforma em arte nas mãos de Wilder. Quando este faleceu em 2002, com 95 anos de idade, foi apontado por muitos críticos como o fim do cinema de autor em Hollywood. Todos os grandes diretores norte-americanos ou dissidentes da Europa (como Wilder, que era austríaco e se refugiou nos EUA com a ascensão do Nazismo) trabalhavam em Hollywood nos grandes estúdios com uma mescla de cinema comercial com cinema de autor. Wilder talvez tenha sido o principal cineasta da sua geração que conseguiu criar em vários gêneros (drama, comédia, romance, suspense) uma marca pessoal em seus filmes, agradando em cheio à crítica especializada, mas ao mesmo tempo sabendo comunicar-se com o grande público e atender ao mercado e aos interesses econômicos dos grandes estúdios. Convenhamos, para atingir todos estes requisitos tinha que ter muito talento e isto ele tinha de sobra. Atualmente, o cinema norte-americano é dividido entre os filmes estritamente comerciais e os ditos independentes; estes últimos podem agradar parte significativa da crítica, mas, além de apresentarem muitos protagonistas como párias e “coitadinhos” da sociedade, não conseguem dialogar com o grande público, algo em que Wilder reinava absoluto, principalmente com seus filmes das décadas de 40, 50 e 60. Por outro lado, o “cinemão” comercial atual não permite nenhuma “marca” específica dos seus realizadores, o dito “autor” é mais uma peça na engrenagem e o cinema voltado para o público adulto vai cada vez mais perdendo espaço para o público infantil e adolescente e pior, infantilizado que o cinema norte-americano criou. E quando as produções são voltadas para um público diferenciado só são exibidas em salas restritas. Assim, quando um casal vai a um cinema e descobre que se trata de um filme antigo (que é sinônimo de antiquado para este público) não tem condições de ao menos se dar uma chance para apreciar o que o cinema produziu e pode ainda produzir de bom, pois o que é clássico é simplesmente atemporal e é este justamente o caso de The Apartment.
          O filme não se tornou o que é apenas pelo seu diretor e os roteiristas (o próprio Wilder e seu parceiro I.L. Diamond) ou pelos cinco Oscars ganhos. Ele tem, além disto, uma excelente direção de arte (por exemplo, o local de trabalho lembra as obras de Orwell com seu clima de opressão), uma bela e encantadora trilha sonora, o talento e a beleza diferenciada de Shirley MacLaine, mas principalmente tem Jack Lemmon, em minha humilde opinião, o maior ator de todos os tempos.
          Ao longo do tempo, vi e revi este filme várias vezes, desde a adolescência até a maturidade e também li muitas críticas e em várias delas Baxter é identificado como um rato, um crápula, um ambicioso. Discordo, ele é simplesmente humano, difícil de ser definido e muito menos qualificado de maneira maniqueísta, ou é bom e mocinho ou é vilão e egoísta. Quando a trama começa ele já tem o seu clube de clientes e observamos que está bastante desapontado com o que vem ocorrendo (atrasos na entrega do apartamento, reclamações dos vizinhos, ser obrigado a ficar ao relento em noites com temperatura abaixo de zero, tendo que deitar em bancos do Central Park, etc). Nem mesmo as constantes promessas de promoção parecem motivá-lo suficientemente, ele está mais para um personagem à “beira de um ataque de nervos” do que interessado pelo que pode vir a acontecer com seu futuro profissional. Agora se coloque no lugar do personagem: você é solteiro, tem disponibilidade para oferecer seu apartamento ao seu chefe e aos demais executivos; de repente, um desses executivos o procura e lhe pede “um favor”, você percebe que pode ser beneficiado e, evidentemente, corresponde positivamente ao pedido. E se não o fizesse? Até que ponto, nesta sociedade extremamente competitiva e predatória (aqui apenas um dos aspectos atuais da trama, apesar dos seus 55 anos), você pode se dar ao “luxo” de negar um “favor” a um superior? Então temos uma das críticas que o filme sofreu quando do seu lançamento: ser irônico e cínico ao retratar a sociedade norte-americana e seu modo de vida como eticamente imoral, baseada na mentira, desde o seio familiar, em que executivos enviam cartões de Natal com esposa e filhos e fazem da traição um estilo de vida, até o trabalho, onde profissionais competentes e com muito tempo de casa são preteridos por outros que têm disponibilidade para oferecer favores muito bem vindos e aceitos.
          Em um dos brilhantes diálogos do filme (Wilder caprichava em muitas falas de seus filmes) um dos executivos responde à sua amante quando é questionado se levava outras mulheres ao apartamento: “É claro que não, sou muito bem casado!”. Sem dúvida que os conservadores não gostavam nem um pouco de ver na tela grande a eterna hipocrisia social. Mas o filme tem o mérito de apresentar tais situações com leveza, o que erroneamente levou muitos a classificarem a obra como uma comédia romântica.
          Outra cena brilhante é a da festa de fim de ano entre os empregados: a sisudez de outros momentos agora é substituída por uma espécie de festim romano, próximo de um bacanal, onde apenas nossos protagonistas parecem estar deslocados. Mais uma vez a crítica: uma sociedade infeliz e melancólica que utiliza momentos fugazes, como festas em empresas, para mostrar a aparência de felicidade e alegria. No meio da balbúrdia, a descoberta de que Fran, a mulher que Baxter idealizava, era, na verdade, uma das amantes que frequentavam seu apartamento:
          “O espelho está quebrado!”
          “Sim. Sei que está. Gosto assim. Me faz parecer do jeito que me sinto.”
          O espelho quebrado como metáfora do sentimento, da dor da perda, das promessas do filme. Baxter com sua promessa de promoção no trabalho, Fran com a eterna promessa do divórcio por parte do amante.
          Quem são de fato estes personagens? Vejo Baxter como um homem extremamente solitário e melancólico que se sente feliz ao ter uma suicida como companhia para não ter que passar mais um Natal sem ninguém ao lado. Um personagem que quanto mais cresce profissionalmente, mais se angustia e mais necessidade sente de estar bem com alguém, no caso, do seu “objeto” a ser conquistado, sempre fruto de sua idealização: a de uma mulher que seria cheia de virtudes. A alegria que sente ao se aproximar dela, mesmo que nas condições mais adversas, transforma seu estado de espírito e seu humor e é justamente nesta transformação que vemos o talento insuperável do genial Jack Lemmon, sua capacidade invejável de interpretar o homem comum com todas suas nuances, adaptando e recriando objetos e situações do cotidiano, como na clássica cena do macarrão sendo escorrido por uma raquete de tênis.
          Já a personagem de MacLaine também se encontra angustiada e deprimida e insiste em manter uma ligação com alguém que sabe que a está enganando. Aqui o filme reforça a tese das mulheres que se apaixonam por homens errados e que pensam apenas no amor. Ou seja, também pensando e agindo a partir de idealizações pré-concebidas e valores transmitidos ao longo do tempo.
          Uma das qualidades é não apresentá-los como “coitadinhos”, vitimados pelo destino ou como seres sem escrúpulos; são, isto sim, pessoas com eventuais falhas e virtudes. Pode-se considerar a persuasão e a força social e coercitiva daqueles que detêm o poder (no caso os grandes executivos) sobre os mais fracos (no caso, os funcionários), mas não se pode rotular Baxter e Fran como ingênuos ou crápulas.
          O filme “brinca” com os desejos estereotipados de homens e mulheres: dos homens, a ascensão social não importa a que preço, das mulheres, a conquista do grande amor, mesmo sendo um amor proibido. Mas ambos não são suficientes para se alcançar a felicidade. A maior conquista acaba sendo a de si mesmo, este é um dos “recados” do filme.

          Na época de sua produção, em 1960, não eram todos os personagens de filmes norte-americanos ricos e bem sucedidos como são atualmente. Assim, Baxter e Fran são parecidos conosco, torcemos por eles, pois lutam por ser felizes, sofrem, se aproximam, se distanciam, se reencontram das formas mais improváveis e é justamente esta aproximação que transforma este filme em uma beleza singular, classificado por alguns como um dos filmes mais humanistas de todos os tempos. Concordo plenamente!