quinta-feira, 16 de julho de 2015

PASSAGEM PARA A ÍNDIA



PASSAGEM PARA A ÍNDIA / A PASSAGE TO INDIA
Produção: EUA / INGLATERRA / 1984
Direção: David Lean
Elenco: Peggy Ashcroft / Judy Davis / James Fox / Victor Banerjee / Alec Guinness
Duração: 164 min.

          Assim como fizera em A Ponte do Rio Kwai (1957) e Lawrence da Arábia (1962), são os Impérios, o colonialismo e a guerra cenários para David Lean mitificar seus personagens. Os planos abertos, o capricho em cada detalhe da produção que o transformaram em um artesão da imagem e a trilha sonora envolvente (de Maurice Jarre, premiada com o Oscar) estão também presentes em Passagem para a Índia.
          A trama política _ no caso o colonialismo britânico na Índia pré-Gandhi, década de 20 do século passado _ serve muito mais para realçar os conflitos pessoais das personagens do que propriamente transmitir uma mensagem política, embora ela também esteja presente, assim como na obra literária homônima de E.M. Forster na qual o filme foi baseado e adaptado.
          Passagem para a Índia pode ser sintetizado pela temática do choque de culturas: a europeia, branca, formal e dominante a partir de um conceito de superioridade racial, justificada pelo darwinismo social, em voga na época e a cultura daquele que recebe o colonizador com uma mistura de revolta e indignação contra o invasor e também com uma parte que anseia, copia e até mesmo inveja os padrões culturais de quem é diferente por considerá-los culturalmente mais evoluídos que os seus.
          Apesar de não ser a protagonista do filme, a personagem da Sr.ª. Moore (interpretada por Peggy Ashcroft, ganhadora do Oscar justamente na categoria de coadjuvante) é aquela que tece o fio condutor de toda a trama. Apesar da idade avançada, é a personagem que rompe com o dogmatismo e a formalidade do colonialismo britânico, que respeita a religião e a cultura desconhecida, que preconiza um futuro ainda muito distante baseado no respeito à diversidade. Por sua vez, sua futura nora, a Srtª. Quested (Judy Davis),que a acompanha nesta viagem, pode ser apontada como seu alter-ego, talvez a nora que tenha sido escolhida “sob medida” para tentar quebrar o conservadorismo do sahib, seu filho que atua como juiz na colônia britânica.
          Do lado indiano, simpatizamos de imediato com o Dr. Aziz (Victor Banerjee), um personagem que dificulta nosso discernimento ao confundirmos em seu comportamento um misto de gentileza com atitudes simplórias. Desta mescla, surge toda nossa afeição por ele. O olhar da Sr.ª. Moore e do Professor Fielding (James Fox) é o mesmo que o do telespectador: impossível este personagem ser o vilão central de uma trama que apresenta com sutileza o Imperialismo que, por sua simples presença e existência, já é sinônimo de vilania, como fica evidente na cena do julgamento.
          Dr. Aziz é um médico solitário e muçulmano, com poucos e leais amigos, que faz da medicina uma prática caridosa, vive com modéstia franciscana, viúvo e pai de dois filhos pequenos que são educados pela sogra. Entretanto, veste-se como um britânico e admira a imponência daqueles que o dominam. Uma leitura marxista o classificaria como um alienado, aquele que não consegue ter uma consciência de classe e que almeja um dia estar próximo daqueles que lhe inspiram: o britânico, que não é visto por ele como um elemento invasor e conquistador, mas sim como aquele que irá trazer progresso e desenvolvimento ao seu país. Um dos seus sonhos é o de poder se aproximar dos ingleses e a primeira pessoa com que ele irá estreitar esses laços é justamente a Sr.ª. Moore, quando esta, entediada por uma apresentação teatral, entra na mesquita onde o Dr. Aziz se encontra. O susto e o choque cultural são minimizados quando ao contrário dos demais o muçulmano constata que a cristã tirou os sapatos:

          “Eu estou sem os sapatos, posso entrar aqui”.

          “Sim, É que quando ninguém vê, geralmente os britânicos, principalmente as mulheres, não respeitam esta norma”.
         
          “Deus está aqui”.
         
          A resposta da Sr.ª. Moore o conquista de corpo e alma. O respeito e a beleza da cena são emblemáticos na concepção e no vínculo que criamos com estes personagens. Aqui não há barreiras ideológicas ou proselitismo de qualquer espécie: a afinidade supera qualquer forma de adversidade.
          Outro personagem carismático é o filósofo hindu, o Dr. Godbole, interpretado por Alec Guinness, o ator preferido de Lean. Aqui, em suas poucas aparições carrega uma aura de mistério, melhor representando o misticismo oriental. Através do seu distanciamento e aparente desinteresse pelas coisas, esconde-se uma sabedoria brâmane que comprova ser esta a melhor forma de enfrentar os problemas que surgem ao longo da trama. Também se destaca a amizade entre um muçulmano, o Dr. Aziz, e um hindu, o Profº Godbole, algo que não era e ainda não é tão simples na sociedade indiana.
          A Sr.ª. Moore, que acreditava que os ingleses estavam em terras orientais para praticar o bem, e não exercer a cobiça e o poder, procura de todas as formas, juntamente com a Srtª. Quested, romper com a segregação. Para tanto, estar em contato com a verdadeira Índia era mais que essencial, tornava-se obrigatório desmistificar aquele país que era filtrado pelos britânicos para ser palatável à elite colonizadora. Assim surge a ideia e o convite do Dr. Aziz para a visita às cavernas de Marabar.
          É nesse cenário de aparente desolação, distante de qualquer elemento civilizatório, que nos deparamos com o conflito interior da Srtª Quested, uma personagem em dúvida entre seguir seus próprios instintos e desejos ou casar com o apático e formal filho da Sr.ª. Moore. Antes deste passeio às cavernas, ela se defronta sozinha com estátuas representativas do Kama Sutra, a milenar arte erótica indiana. Tais imagens a desestabilizam emocionalmente: ali estava um mundo desconhecido, a Índia com sua cultura sem nenhuma interferência do colonizador e ao mesmo tempo um mundo que na sociedade em que ela esta inserida só seria alcançado com o casamento. É este conflito interior que se escancara quando ela esta só no interior de uma das cavernas de Marabar, onde as vozes e os ecos ampliam sua “caixa de ressonância” intima. O que fazer diante da iminência de decisões que irão moldar nossas vidas nos anos vindouros? Como lidar entre aquele amor e sentimentos britânicos onde o distanciamento e a frieza são a tônica e o que ela sabia que sentia, mas que não era socialmente aceito pelo seu grupo social?
          Como disse a personagem da Sr.ª. Moore a ela: “A índia nos força a encarar nós mesmos”.
          Esta confusão mental a leva a ter a provável alucinação que terá desdobramentos em todos os personagens. Analisando metaforicamente e freudianamente, a visão do Dr. Aziz pela Srtª. Quested na entrada da caverna úmida e escura simboliza a perda de sua inocência. Aqui, o estupro não foi físico, mas espiritual.



          O filme também nos emociona com a belíssima amizade entre o professor Fielding e o Dr. Aziz. Amizade que cresce e se consolida justamente na adversidade, que leva o professor e diretor da escola local a renunciar a sua gente e a sua posição social por uma questão de princípios e valores morais. Apenas esta relação já valeria o romance e o filme, mas a riqueza de aspectos que são abertos com a narrativa é muito mais abrangente. Por exemplo, a partir da acusação de estupro e da amizade entre os dois homens, o Dr. Aziz perde a admiração pela cultura do colonizador. Acompanhamos sua transformação carregada de sofrimento até observarmos a mudança em seu exterior, sua vestimenta agora indiana que personifica um “novo homem”, mais consciente e menos esperançoso e, entretanto, não mais feliz.
          O romance e o filme vão muito além do que questões políticas, históricas e ideológicas: não é panfletário, embora acuse em todos os momentos o Imperialismo britânico, mas é, acima de tudo, humano por retratar seus personagens em situações de limite e confronto, seja com as instituições (como a Sr.ª Moore e o Prof. Fielding), ou pior, com o fantasma de enfrentar a si próprio, como o que ocorreu com o simpático  Dr. Aziz e a Srtª. Quested.
          Várias cenas são lindíssimas, com o tratamento dos planos abertos e a fotografia excepcional: os guarda-chuvas da primeira tomada, o encontro das duas culturas - a Sr.ª Moore e o Dr. Aziz - com o luar, o rio Ganges de tantas histórias ao fundo e o vento alterando a passagem e profetizando as mudanças que estavam por vir, as estátuas do Kama Sutra, inclusive deitadas no chão mostrando um país despojado com sua cultura milenar, a subida até as montanhas com o passeio de elefante, a despedida e a  benção da Sr.ª Moore pelo Prof. Godbole no interior do trem, a Srtª. Quested perdida na multidão após o julgamento, a leitura simultânea da carta escrita pelo Dr. Aziz à srtª. Quested e a visão desta no vidro embaçado pela forte chuva londrina.
          O filme começa e termina com cenas de chuva. Todos os personagens tomaram seus rumos, as vidas seguiram seus cursos, mas não é difícil constatarmos com a ajuda da natureza que a felicidade passou distante tanto do remetente como da destinatária da carta: o agradecimento e o perdão não foram suficientes para os redimirem diante da vida.
          Em seu réquiem David Lean nos brindou com um majestoso e inesquecível filme que trinta anos depois mantêm seu frescor da estreia. Imperdível e atemporal, um clássico!


Um comentário:

  1. Grande resenha. Tudo está aí. O livro e o filme são extraordinários, proporcionando ricas discussões culturais, religiosas, sexuais, psicanalíticas e históricas. Melhor vê-lo mais de uma vez, porque em todas as cenas há detalhes que à primeira análise podem parecer sem importância e que vão aos poucos construindo o drama. Na primeira vez em que o vi, ele tinha má qualidade de imagem (veio em dois DVDs de locadora). Nas outras duas, pude desfrutar tudo com muito prazer. Uma obra de arte, um dos grandes momentos do cinema.

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