terça-feira, 25 de agosto de 2020

AS CONFISSÕES DE SCHMIDT - EUA / 2002

                  http://www.adorocinema.com/filmes/filme-28420/fotos/detalhe/?cmediafile=21157370

AS CONFISSÕES DE SCHMIDT / ABOUT SCHMIDT

EUA / 2002 / DUR: 125’

Dir: Alexander Payne

Elenco: Jack Nicholson, Kathy Bates, Hope Davis, Dermot Mulroney.

         “O que vou dizer quando parar, olhar para trás e perguntar: Que diferença eu fiz? O que fiz na vida de alguém? O mundo está melhor por minha causa”?

          Essas são as perguntas que Warren Schmidt, um recém- aposentado de 66 anos faz a si próprio durante a sua trajetória de vida que passamos a acompanhar em suas confissões que nada mais são do que cartas redigidas a um garoto de 6 anos da Tanzânia por ele adotado com uma ajuda mensal de vinte e dois dólares a uma ONG.

        Conhecemos melhor nosso protagonista na cena inicial  em que está sentado próximo a uma mesa vazia de escritório e acompanha pacientemente os últimos minutos e segundos que o aproximam da aposentadoria. É um sujeito calmo, pacato e pacífico, - a exata antítese de tantos personagens magistralmente interpretados por Jack Nicholson em seu estilo histriônico e compulsivo de interpretação. Aqui ele é contido na fala e nos gestos, em um papel que lhe deu mais uma indicação ao Oscar (é a ator com maior número de indicações: doze) e a conquista do Globo de Ouro de melhor ator.

        Warren é o americano médio e típico pertencente a uma época em que o sucesso profissional era  manter-se no mesmo emprego por mais de trinta anos. Sim, essa fase do capitalismo existiu no século passado! Aos poucos, conhecemos sua vida: ele respeita a esposa mas se pergunta quem é ela depois de quarenta e dois anos de casados e que o irrita em tudo que faz,  sua única filha reside longe  e está prestes a se casar com um sujeito “abaixo  dela”, tem a dificuldade em se adaptar à vida de aposentado e a raiva em constatar que seu substituto na empresa de seguros é um sujeito incapaz.

      Todos estes sentimentos explodem, quando repentinamente, ele passa também a conviver com a viuvez: do distanciamento surge a saudade, a valorização e o respeito, a decepção e a ira seguido do perdão redentor em um belo plano noturno com Schmidt sentado no teto do trailer comprado pela mulher. A partida da esposa o aproxima de um humanismo que ele próprio desconhecia possuir. É nesse momento que ele inicia um road movie a lugares marcantes em sua vida: a casa onde nasceu e viveu a primeira infância e que hoje é uma loja de pneus, a Universidade onde na juventude ele sonhou em ser um dia capa de uma revista de negócios. Após um incidente com um casal solicito e atencioso “além da conta” Schmidt chega à casa da futura sogra da filha (Kathy Bates em mais uma grande atuação).

        Após vários momentos engraçados (a cena do colchão d’água e do ensaio do casamento são hilárias), temos o casamento e o retorno à casa. Entretanto, Schmidt retorna muito diferente de quando partiu. A carta resposta de seu “filho adotivo” de seis anos escrita por uma irmã cristã o leva às lágrimas e à compreensão da diferença que ele fez e faz na vida de alguém. A interpretação de Nicholson apenas neste nesse momento já vale o ingresso!

          As confissões de Schmidt é o relato singelo de um homem comum, de alguém que demorou muito tempo para conhecer a si próprio. Só isto já daria um bom roteiro (que é melhor que o livro homônimo), mas, temos Jack Nicholson sempre em brilhante atuação e Kathy Bates que com apenas quinze minutos de interpretação recebeu indicação a melhor atriz coadjuvante.

          Acompanhar a vida de um homem refletindo sobre o significado e sentido de uma existência é um tema que transcende nossa existência.

QUANDO SÓ O CORAÇÃO VÊ / EUA / 1965

 

                                                      https://pt.fulltv.tv/a-patch-of-blue.html

QUANDO SÓ O CORAÇÃO VÊ / A PATCH OF BLUE

EUA / 1965 / DUR: 105’

DIR: Guy Green

Elenco: Sidney Poitier, Shelley Winters, Elizabeth Hartman, Wallace Ford

Baseado na obra Be ready with bells and drums / 1961 / Elizabeth Kata.

        Talvez ao lado de O sol é para todos (To kill a Mockinbird / 1962 - resenhado neste blog), este Quando só o coração vê (EUA/1965), seja o filme mais sensível e delicado da década de 60. Ao contrário do primeiro com ênfase centrada no conflito racial no sul dos EUA nos anos 30, este  é contemporâneo à aprovação da lei dos direitos civis de 1964. Entretanto, aqui a temática racial não é o aspecto central, mas sim uma espécie de “pano de fundo” dos problemas da protagonista cega e de sua relação com um homem negro.

          Sidney Poitier, um dos grandes atores da velha Hollywood, personificou em seus filmes o papel do “negro de bem”, do bom moço de classe média que se incorpora no mundo dos brancos em um país dividido racialmente. Aceito pelo establishment foi contestado pelos movimentos negros da época. Apesar de tentar fugir dessa  caracterização em seus filmes, Poitier ficou marcado justamente por isso . Aqui, interferiu no roteiro baseado em obra de Elizabeth Kata, de maneira que o filme explorasse muito mais a relação amorosa entre os protagonistas do que a questão racial.

          Selina (Elizabeth Hartman) é a personagem do abandono, pertence a uma baixa classe social, vive praticamente em um único cômodo com sua mãe Rose-Ann (Shelley Winters, que conquistou seu segundo Oscar de coadjuvante com este papel), e o avô Ole Pa (Wallace Ford). A mãe flerta com a prostituição e o avô é alcoólatra.  Ela tem 18 anos, tornou-se cega aos 5  por um ato involuntário da própria mãe, não tem amigas e nem estudo algum, não sabe o que é braile e vive como uma empregada doméstica: está envolvida na arrumação da casa, prepara o jantar para a mãe e o avô e ainda monta  bijuterias para um senhor que as revende. Trabalha em troca de uma cama e alimento. Não recebe afeto algum, o pai a abandonou quando flagrou uma traição da esposa.

        Sua única distração e alegria é  quando pode  passar um dia em um parque levada pelo avô ou pelo senhor que a contrata para os serviços com as miçangas e bijuterias. Só retorna à noite, quando o avô – sempre bêbado -  vai buscá-la. Ela é tão maltratada e rejeitada pela mãe que o expectador tem dificuldades em identificar Rose-Ann como sua genitora. O olhar de quem assiste direciona-se então ao avô no sentido de encontrar um ponto de referência e humanidade capaz de blindar a protagonista da mãe. Entretanto, não demora muito para observarmos que ambos possuem o mesmo repertório de maldades.

        A vida de Selina segue nesta rotina até que um dia ela conhece Gordon (Sidney Poitier). Em mais um papel de bom moço, ele logo se compadece da moça cega e abandonada no parque:  compra-lhe um óculos de sol para esconder as cicatrizes que possui no rosto devido ao acidente, leva-a ao mercado, ensina-lhe como atravessar a rua, mostra os pontos cardeais a partir da sensação do sol, presenteia-a com um manual da escrita em braile, convida-a com frequência para saborear suco de abacaxi que ela tanto gostou mas desconhecia até então, também a leva para almoçar em sua casa e  presenteia-lhe com uma caixinha de música que era de sua avó. É só neste momento que Gordon descobre que Selina teve uma única amiga com nove anos de idade que, entretanto, deixou de visita-la quando sua mãe descobriu que ela era “de cor” (termo muito utilizado na época para se referir a pessoas afrodescendentes).

        Reside com Gordon seu irmão que é médico. A princípio, com sutileza, mas, depois de forma mais direta é este personagem que apresenta de forma mais precisa a questão racial: “Deixe os brancos cuidarem de seus filhos brancos”. Na época, a relação entre um homem negro e uma mulher branca era punida em vários estados sulistas. No filme, observamos que estamos em uma cidade cosmopolita (provavelmente Nova York), mesmo assim, o fantasma da segregação racial ainda era muito forte em todo o país.

        Mesmo preocupado e aparentemente chocado com o racismo da mãe de Selina, Gordon segue em frente na sua motivação de proteger e oferecer melhores condições para sua amiga e pupila. Não há interesse carnal em suas motivações. Isso fica evidente quando ele explana as formas de amor que não se limitam a uma relação matrimonial. Selina, por sua vez, não se envergonha em narrar a ele, o que presenciamos em imagens, quando foi violentada por um dos “amigos da mãe”. Para ela aquilo era sinal de que “conhecia as coisas da vida”. A naturalidade com que relata o abuso consolida em Gordon a necessidade de ajudá-la:  coloca-la em uma escola para cegos passa a ser seu maior objetivo. Por sua vez, para quem foi maltratada a vida inteira, apaixonar-se pelo único “anjo da guarda” que surgiu em sua vida era algo mais do que natural.

        Fazer com que ela compreenda a diversidade de afetos existentes e dar um novo significado à sua vida, passa a ser o maior desafio de Gordon. Ao final, a vitória sobre o abandono, por mais doloroso que seja alegra o coração de quem acompanhou a triste trajetória de Selina.

          O filme tem como maior mérito a extrema simplicidade narrativa. A brilhante trilha sonora de Jerry Goldsmith (indicada ao Oscar) lembra a trilha de Elmer Bernstein em O sol é para todos, a fotografia em preto e branco de Robert Burks (colaborador em vários filmes de Hitchcock) também indicada ao Oscar juntamente com a direção de arte, é muito bonita. No parque, os planos se ampliam, simbolizando a vida que se abre a Selina, já no pequeno apartamento, se fecham de forma claustrofóbica demonstrando toda a angústia da personagem. Shelley Winters compõe o papel que a consagrou: a da matrona dura e rude, e, nesse caso, má. Sidney Poitier e Elisabeth Hartman (que na vida real suicidou-se em 1987 com 43 anos de idade) demonstram muita interação.

        Esse é mais um exemplo de uma época em que os grandes estúdios de Hollywood faziam filmes comerciais com temática adulta e sensibilidade. De rara beleza, trata-se de uma pequena obra-prima. Gordon é o alter ego da justiça ao realizar aquilo que aos olhos do expectador simbolizam a virtude e a compaixão. Já Selina é a representação daqueles que se encontram por várias razões excluídos socialmente. Do encontro de ambos nasce a redenção e a esperança.


segunda-feira, 11 de maio de 2020

AKIRA KUROSAWA (1910 – 1998): FILMES: VIVER (1952) / O BARBA RUIVA (1965)


VIVER: Kanji Watanabe (Takashi Shimura) é um veterano burocrata que há décadas trabalha diariamente na Prefeitura carimbando documentos. Ao descobrir que está com câncer no estômago, ele decide dar um sentido à sua até então desperdiçada vida.




O BARBA RUIVA: Um jovem e arrogante médico (Yuzo Kayama) chega a uma clínica de um velho médico apelidado de Barba Ruiva (Toshiro Mifune). Rebela-se contra a austeridade do lugar, mas, aos poucos, compreende porquê ele quer atender os pobres e necessitados.
          
          “Quero fazer filmes, filmes belos. Persigo esse objetivo há mais de 50 anos. (...), mas ainda não captei totalmente o que é um filme. (...) Quero que todos apreciem a beleza do cinema. Minha esperança é fazer um filme belo e maravilhoso. Quero transmitir de modo objetivo o que penso durante o filme para que todas as pessoas no mundo todo apreciem. Um filme projetado na tela permite que as pessoas no mundo todo compartilhem a vida dos personagens do filme. Dividir sofrimento e tristeza ajuda as pessoas a se entenderem. É um papel importante do filme. É a melhor coisa sobre os filmes. É através da beleza de um filme que se conquista isso. As pessoas apreciam a beleza no mundo todo. Através da beleza, podemos.... Se a beleza de um filme é apreciada então pode entender um ao outro. Esse é o tipo de filme que quero fazer. (...) Não se trata de passar uma mensagem”. (Doc. Uma mensagem de Kurosawa / 2000).
          Pode-se afirmar que o mestre japonês alcançou plenamente seus objetivos e esperanças. Seus filmes são atemporais, universais e sintetizam o mundo globalizado. Trata-se de um feito se considerarmos que ele advém de uma cultura, pelo menos em grande parte do século XX, muito diferenciada do chamado mundo Ocidental. Entretanto, em seus filmes tivemos: a criação do chamado gênero policial tal como o conhecemos hoje; adaptações muito particulares de Shakespeare, cineasta com o maior número de refilmagens no mundo, inovação em técnicas de filmagem entre elas formas de iluminação, forte presença de elementos naturais como a chuva e o sol, etc. Influenciado por John Ford e os westerns norte-americanos, serviu também de inspiração para o próprio western. Também foi parâmetro para os cineastas da nova geração de Hollywood como Copolla, Spielberg e Lucas. Esse último inclusive citando Kurosawa e seus filmes de samurais como influenciadores da saga que revolucionou o cinema contemporâneo que é Guerra nas Estrelas. Mas, sem dúvida a beleza nos filmes de Kurosawa é justamente compreendida pelo humanismo latente em suas tramas. A seguir, uma resenha (repleta de spoillers) de dois de seus filmes que comprovam esta tese: Viver de 1952 com Takashi Shimura um dos seus atores favoritos e O Barba Ruiva com seu principal ator Toshiro Mifune. Viver, obra posterior do aclamado Roshmon, em que o mestre nos apresenta uma história contemporânea do Japão pós II Guerra Mundial e O Barba Ruiva, último grande filme de sua primeira fase, que só seria retomada em 1975 com o sucesso de Dersu Uzala e o início de seus filmes coloridos.
          Cronologicamente, iniciamos por Viver. O filme tem dois momentos diferenciados: no primeiro, acompanhamos os últimos cinco meses de vida de um chefe de seção de uma repartição pública municipal. Há um narrador com pouco, mas precisas falas. Sabemos tratar-se de um burocrata que irá se arrepender pelos 30 anos de serviços prestados sem ter uma única falta, está com câncer e por ora, não sabe que irá morrer e, finalizando, após 5 meses da consulta médica morre. A surpresa da narrativa fica por conta da segunda fase do filme, em que Kurosawa utiliza o expediente de sucesso de Roshmon e apresenta pequenos flashbacks narrados por seus colegas de trabalho. Estas memórias ocorrem no velório ritualístico nipônico e vão nos revelando os últimos momentos do novo personagem e, o mais interessante, as diferentes e aparentemente desconectadas narrativas, celebram ao final a construção de um novo Watanabe, até então desconhecido por todos que o conheceram.
          A atuação de Takashi Shimura é emblemática: contido na maioria das cenas, com uma voz quase inaudível até explosões de sentimentos, revelados principalmente em suas expressões faciais como o close em seus olhos arregalados ou o olhar vago e perdido em suas comiserações, traduzidas por ele mesmo em mais de uma cena, o que dói não é o estômago enfermo, mas sim a angústia representada pela mão fechada junto ao peito.
          Sabemos a princípio por um parente e depois pelo próprio protagonista, que este tornou-se viúvo muito jovem e optou por ser um dedicado pai e funcionário público, renunciando mão de prazeres pessoais. Agora, no crepúsculo da vida, surge o arrependimento das coisas que poderiam ser realizadas ao longo de uma vida, no entanto, ficaram ao longo do caminho. Pior do que a velhice em si é a consciência da finitude que o transforma em um ser perplexo diante do aguardado, mas ao mesmo tempo assustador compromisso com a morte. O filme dialoga com o Neorrealismo italiano, particularmente Umberto D (Vittorio de Sica / 1952) e o mais recente Harry, o amigo de Tonto de 1974 e resenhado neste blog. Entretanto, a visão de Kurosawa é abrangente: a velhice e a presença constante da finitude não são os únicos tópicos a nos envolver. Podemos citar outros momentos reflexivos:
·       “Pense em você. Seu filho irá crescer e não irá se preocupar com você. Depois que casar então, irá lhe esquecer”. Estas palavras ditas a ele logo no início da viuvez, passam a ecoar em sua mente. Na convivência com o filho e a nora constata que não se relacionam como deveriam e que ambos estão mais preocupados com o que ele irá receber de prêmio após se aposentar. O protagonista toma ciência que é apenas e tão somente uma moeda de troca e sua importância é apenas material;
·       O Estado e o poder público não cumprem com o seu papel social: a politicagem e o jogo de interesses afastam funcionários dos seus reais objetivos. A burocracia estatal repele o cidadão. A Democracia é uma ilusão nesta engrenagem do poder;
·       A ação individual pode (e deve) ocorrer seja qual for a motivação, nesse caso, a aproximação da morte. Aguardar uma motivação coletiva pode não ser o melhor caminho. Sua ação deve ocorrer independentemente da aprovação ou não dos seus pares, objetivos individuais alcançados podem ou não gerarem transformações sociais.
Duas cenas são particularmente belas, ambas relatos de seus colegas de trabalho que a partir de flashbacks concluem que Watanabe tinha consciência da aproximação da morte: na primeira quando questionado sobre como se sentia sendo tratado como idiota nas repartições públicas em defesa de sua causa, sua resposta foi “não tenho tempo para odiar” e a segunda, enquanto caminha pela ponte observa o céu e admirado afirma o quanto é bonito o pôr do sol e que nunca havia reparado nisso, mas finaliza “Agora, não tenho mais tempo”.
          Fosse um filme comercial a ação final do protagonista que dá sentido à toda sua existência seria um exemplo a ser seguido por todos. Seus funcionários e colegas de profissão sentiram-se humilhados no velório quando diante de representantes da comunidade atendidos por Watanabe constataram a inutilidade de seus trabalhos. Embriagados com saquê propuseram a transformação: “Agora vamos trabalhar para atender a população”! O comodismo, covardia e acomodação entretanto falam mais alto: do alto da obra edificada através do esforço individual de Watanabe, o único funcionário que foi de fato sensibilizado, constata entristecido que a mudança cultural e coletiva ainda é um sonho distante.
          Apesar do tom melancólico e aparentemente pessimista, o filme carrega uma aura de perseverança e resiliência por parte do protagonista raramente presenciada no cinema e é justamente neste aspecto que a beleza tão procurada por Kurosawa é realçada.
    Assim como Hitchcock, Kurosawa procurava ter um controle total sobre suas obras. Desde o roteiro, - a maioria eram seus - até o acompanhamento da trilha sonora, fotografia, etc. Nesse sentido, ele tinha uma predileção pela edição. Filmava com várias câmeras desse modo o artista nunca sabia o que de fato seria colocado no filme. Para ele, editar era uma tarefa agradável e prazerosa. A matéria-prima não estava na filmagem em si, mas na edição. Entretanto, ela nunca a realizava como acontece geralmente, no término das filmagens. Como uma de suas técnicas, sempre que possível ele mostrava as filmagens para a sua equipe. Esse processo explica e justifica a necessidade em se passar dias gravando uma mesma cena e, ao mesmo tempo que acaba por unir e guiar a equipe de filmagem durante toda a produção. Nesse aspecto, Kurosawa não tinha dúvidas, quando uma cena parecia confusa ou entediante aos expectadores devia ser excluída, cortada do filme.
No documentário Uma mensagem de Kurosawa / 2000, ele afirma: “Dirigir inclui guiar atores, filmagem, iluminação, sonoplastia, direção de arte, trilha sonora, edição e dublagem. Embora todos sejam classificados como tarefas separadas todos se misturam em minha mente. É impossível pensar em cada um separado dos outros”.
No filme O Barba Ruiva podemos acompanhar algumas das técnicas de filmagem do mestre japonês: o hospital que existiu no século XIX foi recriado em detalhes para as filmagens que duraram dois anos. Ao vermos o filme nos sentimos como se fizéssemos parte daquele cenário tamanha a precisão dos detalhes. O trabalho da direção de arte é excepcional.
O filme tem em seu cunho social seu maior destaque. Apesar do título fazer alusão a um personagem e a trama também consolidar ações individuais desse personagem, a abrangência social é maior do que em Viver. O hospital público onde trabalha e chefia o “Barba Ruiva” é na verdade um microcosmos da sociedade. Temos a paciente com distúrbios mentais e há uma ala de isolamento apenas para ela por pertencer a um grupo social mais elevado e, a grande parte dos pacientes, a “ralé”, os pobres incapazes de terem um tratamento melhor mesmo com todo empenho e dedicação do dr. Barba Ruiva. Apesar de pecar ao mostrar a medicina como uma espécie de “sacerdócio” profissional, o filme contrapõe o profissionalismo e sua ausência em um mesmo espaço.
A princípio, somos levados a crer através de um dos seus funcionários, que Barba Ruiva é um tirano. Gradativamente, conforme o roteiro se desenvolve, constatamos que há um enorme senso de justiça nas ações daquele que coordena o hospital. Não apenas justiça, mas também uma série de sábias ações geradoras de mudança comportamental no personagem que faz o médico arrogante e prepotente que, mesmo inexperiente acredita tudo saber por ter estudado em sua formação pelo “método holandês”. Kurosawa nos apresenta no choque entre estes dois médicos a dualidade entre uma medicina humanista preocupada com o ser em sua totalidade e outra que é distante do paciente e apenas tecnicista. Por sua vez, Barba Ruiva não é um protagonista carregado de uma aura de santidade e é justamente esse fato que enobrece sua humanidade: ele chantageia o governador, espanca cafetões em um bordel – “Eu não vou matar, apenas quebrar alguns ossos”, utiliza todos os expedientes necessários para alcançar o objetivo de conseguir manter seu hospital e atender sua clientela pobre e necessitada.
A trama e o roteiro nos apresentam a história de vida de alguns personagens que se apresentam diante do expectador despidos de falsos pudores. Em uma dessas cenas, Barba Ruiva diz ao médico novato que a medicina se volta para as misérias humanas e a ignorância talvez seja a maior doença a ser enfrentada.
Do garotinho que rouba o hospital para comer à garota de 12 anos retirada à força do bordel, da ausência do Estado que corta investimentos em saúde, Kurosawa relata o drama das pessoas comuns. O hospital poderia ser uma repartição pública ou uma escola, o que se sobrepõem a tudo e a todos é o dilema do homem diante das misérias humanas.
Ainda sobre a prática de dirigir Kurosawa disse: “(...) construir é fácil e coisas práticas podem ser ensinadas. Mas o talento não pode ser ensinado. Ensinar o que é o cinema também é muito difícil. Aqueles que não entendem isso, não conseguem aprender. Explicar o que é o cinema em palavras abstratas é algo que não sou capaz de fazer”. (Doc. Uma mensagem de Kurosawa / 2000).
O velho mestre não precisou ensinar o que é o cinema através de palavras. Basta assistirmos a seus filmes para compreendermos toda a magnitude da sétima arte.