PEIXE GRANDE / BIG FISH
Produção: EUA / 2003
Direção: Tim Burton
Elenco: Ewan McGregor / Albert Finney / Jessica Lange
Duração: 125 min.
Sinopse: Durante toda
sua vida, Edward Bloom tem sido um homem de grandes sonhos, paixões e histórias
inesquecíveis. Em seus últimos anos de vida ele continua sendo um grande
mistério para seu filho William. Agora, na tentativa de conhecer seu pai de
verdade, Will começa a juntar as peças para montar uma ideia real de seu pai
através de flashbacks de suas
histórias maravilhosas.
Após assistir ao filme de Tim Burton,
li o livro que o originou: Peixe Grande
de Daniel Wallace, publicado nos EUA em 1998. No livro o personagem
interpretado por Finney nos delicia com passagens suprimidas na adaptação
cinematográfica. Cito uma delas:
“_
Acredito em quê?_ ele me pergunta, fitando-me com aqueles olhos, aqueles
olhinhos azuis, acuando-me. Então eu digo.
_ No Céu _
digo.
_ Se
acredito no Céu?
_ E em
Deus, e tudo o mais _ digo por que não sei. Não sei se ele acredita em Deus, ou
na vida após a morte ou na possibilidade de todos nós voltarmos como outra
pessoa ou outra coisa. Também não sei se ele acredita no Inferno, ou em Anjos,
ou nos Campos Elíseos ou no Monstro do Lago Ness. Nunca conversamos sobre esses
assuntos quando ele estava bom. (...)
_ Que
pergunta _ ele diz, com uma voz forte. _ Não sei se posso dizer que acredito ou
que não acredito. Mas isso me faz lembrar, e me interrompa se já tiver contado
antes, do dia em que Jesus estava guardando os portões para São Pedro. Bem,
Jesus está dando uma mãozinha para ele quando um homem vem arrastando os pés
pelo caminho do Céu.
“O que foi
que você fez para entrar no Reino do Céu?” Jesus pergunta a ele.
E o homem
diz: “Bem, não muito na verdade. Sou apenas um pobre carpinteiro que levou uma
vida sossegada. A única coisa notável de minha vida foi meu filho.”
“Seu
filho?” Jesus diz interessando-se.
“Sim, ele
foi um filho incrível,” o homem diz. “Teve um nascimento inteiramente fora do
comum e mais tarde sofreu uma grande transformação. Também se tornou muito
conhecido em todo mundo e é amado por muitos até hoje.”
Cristo
olha para o homem, dá um abraço apertado nele e diz: “Pai, Pai!”
E o velho
o abraça de volta e diz: “Pinóquio?”
Ele chia,
eu sorrio, sacudindo a cabeça. (Peixe
Grande, de Daniel Wallace, Ed. Rocco, pág.77/78, 2008).
O traço pessoal de Burton permanece,
quase dez anos depois, como um show de imagens que valorizam e até mesmo
complementam o romance de Wallace. Para alguns críticos, o filme supera o livro.
Não vamos entrar em um sistema comparativo, mas isto sim procurar mergulhar na
história que é, na chamada literária, uma
fábula do amor entre pai e filho.
O pai é a fantasia e
o emocional acima de todas as coisas, o filho é o caráter pragmático, lógico e
real sobre tudo que o cerca. Em um mundo tão distante e ao mesmo tempo tão
próximo, como podemos concluir ao término do filme, a relação entre pai e filho
que floresce deste antagonismo é traumática e conflituosa, principalmente para
Will, que, prestes a se tornar pai pela primeira vez, sente uma necessidade
ainda maior de saber quem de fato é e foi seu pai.
Conversando com sua nora, Edward diz
que o filho “é capaz de contar uma
história com todos os fatos, mas sem sabor.” Edward é na verdade, um grande
“contador de histórias” e seu personagem me reporta à celebre cena de O homem que matou o facínora, de John Ford, onde
um jornalista inescrupuloso(?) diz: “Quando
a lenda se torna mais importante que o fato, publique-se a lenda.”
Ao longo do tempo e
da história, foi justamente este caráter inusitado e mítico o que sobrou dos
“grandes fatos e personagens históricos”. Na grande maioria das vezes, é esta
interpretação fantasiosa que move nossa história, construindo nosso imaginário
sobre uma realidade que de fato não nos pertence, pois nem ao menos ocorreu.
Como disse Will, “ao contar a história do
meu pai é impossível separar os fatos da ficção, o homem do mito”.
Edward viveu em dois mundos: o real,
com a mulher (esposa) que amava e o filho, e o da fantasia, aquele em que ele
se deparou com uma série de personagens bizarros como o gigante inofensivo que
amedrontava sua cidade, os personagens do circo como o proprietário que se
transforma em lobisomem e que, ao mesmo tempo o remunera não com o material,
mas sim com o espiritual, isto é, informações mensais sobre a amada de Edward e
futura esposa, Sandra. A exploração de três anos de trabalho apenas para
receber notícias da amada, longe de ser uma agressão, transforma-se em sublime
e, porque não dizer bela manifestação de amor, tal como aquela cantada em verso
e prosa pelos menestréis medievais no mítico amor cortês.
Um aspecto fascinante na relação entre
pai e filho é que, ao contrário do segundo, que cresceu e, mesmo ainda jovem
encontrava-se velho em espírito, para
continuar acompanhando as histórias de seu pai, este permaneceu um eterno menino, quando criança Will mantinha com
o pai uma sintonia de paridade para com seus sentimentos, mas, ao crescer, o
pai não o acompanhou, por assim dizer, permanecendo como sempre foi, contando
as mesmas fantasiosas histórias da infância. Fantasias que, ao serem montadas
por Will, se apresentam muito mais verossímeis do que se poderia imaginar.
O personagem de Edward é fascinante,
emocionante e cativante, ao contrário de Will, que com sua constante busca pela
lógica e verdade dos fatos acaba, isto sim, se distanciando ainda mais da
beleza da vida, tão bem encarnada por seu pai. Ao impregnar de romantismo seus
atos e atitudes, como quando da coragem em enfrentar o gigante desconhecido e
até então ameaçador (como o Davi e Golias bíblicos) ou quando se preocupa em
reconstruir sem benefício próprio a cidade de Espectrum, Edward leva o filho
gradativamente a conhecê-lo melhor, e aqui suas histórias maravilhosas nos fornecem interpretações onde tudo aquilo
que foi narrado e mostrado é de fato real, ou onde o que menos importa são os
fatos em si, mas sim como os interpretamos e vivenciamos em nossas vidas. Ao
contrário do filho, que se apresenta frágil, cansado e enfadonho antes mesmo de
se tornar pai, Edward mesmo moribundo é a vitalidade em pessoa.
Somente no leito de morte do pai, Will
irá de fato conhecê-lo e, neste sentido interagir plenamente com o pai, como
fazia quando era criança. Nesta cena, o filho entra no mundo mítico do pai e imagina (algo até então impensável
em seu mundo material) como seria a morte do pai, onde este é levado no colo
por ele até um rio, onde todos aqueles que o acompanharam ao longo de toda a
vida estão presentes e, após uma rápida despedida, ao entrar em contato com a
água transforma-se no enorme e maravilhoso Peixe
Grande do feliz título. É nesta morte imaginada e narrada pelo filho em que
temos não apenas o passamento de Edward, mas o nascimento de um homem que, como
uma criança, se redescobre: após narrar e vivenciar a morte do pai, Will
continua a transmitir oralmente ao seu filho as histórias do pai e, por sua
vez, seu filho ainda garoto já as transmite aos colegas.
O filme
abarca assim a importância do relato oral em sociedades capitalistas que estão
ignorando a enorme importância da história de vida de pessoas e grupos sociais.
A emoção em se saber contar bem uma história não pode nunca ser suprimida ou relegada
a segundo plano. A forte carga emocional na narrativa tanto literária como
cinematográfica de Peixe Grande nos
mostra que as novas tecnologias e a forte presença das redes sociais podem
caracterizar um distanciamento ainda maior nas relações interpessoais. A arte
de bem contar uma história, apropriar-se de uma identidade cultural rica
através da transmissão oral do conhecimento de geração a geração continuam
sendo importantes armas na luta contra a alienação que impera em muitos
círculos sociais e mediáticos.
Como
finaliza Will em sua narrativa: “Um homem
conta tantas vezes sua história, que se torna uma. Elas vivem após sua morte. E
desse modo, ele se torna imortal”.
Belo
filme de Burton!