O HOMEM ELEFANTE
O HOMEM ELEFANTE / THE ELEPHANT MAN
Produção: EUA / Inglaterra / 1980
Direção:
David Lynch
Elenco:
Anthony Hopkins / John Hurt / Anne Bancroft
Duração: 123 min.
Sinopse: No século XIX, John Merrick (John
Hurt) é um londrino conhecido como Homem Elefante. Apesar de ser tratado como
retardado e de virar atração de circo por ter o rosto totalmente deformado,
Merrick é muito inteligente e sensível. Quem descobre isso é o Dr. Frederick
Treves (Anthony Hopkins), que o leva para um hospital para estudá-lo. Apesar de
ter se mostrado brilhante, ele continua sofrendo preconceitos por causa de suas
deformidades. / http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/o-homem-elefante/id/8453
A
resenha desta obra-prima do cinema não irá se alongar na questão patológica
deste personagem, tampouco se preocupar com o que é real ou próximo da
realidade,_ uma vez que o filme baseia-se em um personagem verídico_ com aquilo
que foi deliberadamente modificado na obra de David Linch. Para quem quiser
maiores informações, sugiro o excelente artigo de Edélcio de Jesus Sardano, Reflexões em Torno de “O Homem Elefante”. (em
http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/85/201-211.pdf).
Pretendo realizar uma abordagem centrada
na questão estética do que é belo e feio
e tentar compreender um pouco a situação de nosso protagonista no contexto
histórico em que viveu.
As analogias são óbvias: desde o
chavão segundo o qual “as aparências enganam”, até a visão deformada que temos a respeito do outro, isto independentemente de
classe social, como pode ser observado ao longo do filme.
A
atualidade desta obra é inegável em um momento em que os meios educacionais
valorizam e defendem a inclusão de toda criança com qualquer problema de saúde
nas escolas e que, ao mesmo tempo, os programas televisivos buscam de forma
desenfreada exibir como uma de suas principais atrações um show de aberrações,
tais como os freak shows que tanto
sucesso faziam no século XIX, tanto na Europa como nos EUA.
Lynch procurou na fotografia em
preto e branco retratar o clima opressivo da Inglaterra vitoriana no auge de
sua Revolução Industrial. As cenas oníricas das personagens, mescladas com
chaminés e o violento serviço braçal nas fábricas, assustam e, ao mesmo tempo,
nos deixam uma reflexão: estamos em condições de emitir juízos de valor sobre o
que é belo e feio? Sobre o que nos aproxima e o que nos gera repulsa? A partir
dos planos de cena de Lynch, podemos afirmar que tal reflexão não se prende
apenas ao contexto histórico em que se passa a trama, mas está muito presente
nas sociedades contemporâneas.
A
classe operária para David Lynch é feia por natureza, no filme nos é apresentada
como seres barulhentos, mal educados e maldosos; são os feios, sujos e malvados, de Ettore Scola transferidos para a
Inglaterra do final do século XIX. Por outro lado, a burguesia não fica atrás.
Apesar de sua aparente boa educação, o desrespeito para com o outro e
principalmente com os despossuídos e marginalizados é evidente, mais ainda
quando nosso protagonista transforma-se em atração para esta classe social. Assim,
o filme não traça uma visão bucólica e vitimizada do pobre e não glorifica os
ricos, embora a personagem de Anne Bancroft faça com que nos deixemos seduzir
pelos burgueses filantrópicos. Por outro lado, a preocupação da rainha e a intercessão
do poder público para com o homem
elefante é um convite a refletirmos sobre o assistencialismo ainda hoje
fortemente presente nas sociedades, principalmente quando o/os envolvido/s
passam a ter destaque na mídia.
Em
sua espetacular obra História da Feiúra, Umberto
Eco, citando Nietzsche em Crepúsculo dos
Ídolos, constrói um conceito para o que é belo/feio: “(...) no belo, o ser humano se coloca como medida de
perfeição, (...) adora nele a si mesmo. (...) No fundo, o homem se espelha nas
coisas, considera belo tudo o que lhe devolve a sua imagem. (...) O feio é
entendido como sinal e sintoma da degenerescência (...). Cada indício de
esgotamento, de peso, de senilidade, de cansaço, toda espécie de falta de
liberdade, como a convulsão, como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a
forma da dissolução, da decomposição (...) tudo provoca a mesma reação: o juízo
de valor ‘feio’. (...). (...) O que odeia aí o ser humano? Não há dúvida: o declínio de seu tipo”. (in obra citada,
ed. Record, 2007, pág. 15).
Na
mesma obra, Eco nos apresenta uma enorme quantidade de sinônimos para o que é
considerado belo e aquilo que
representa o feio:
“(...) enquanto se considera belo aquilo que é bonito, gracioso,
prazenteiro, atraente, agradável, garboso, delicioso, fascinante, harmônico,
maravilhoso, delicado, leve, encantador, magnífico, estupendo, excelso,
excepcional, fabuloso, legendário, fantástico, mágico, admirável, apreciável,
espetacular, esplêndido, sublime, soberbo; é
feio aquilo que é repelente,
horrendo, asqueroso, desagradável, grotesco, abominável, vomitante, odioso,
indecente, imundo, sujo, obsceno, repugnante, assustador, abjeto, monstruoso,
horrível, hórrido, horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo,
monstruoso, revoltante, repulsivo, desgostante, aflitivo, nauseabundo, fétido,
apavorante, ignóbil, desgracioso, desprezível, pesado, indecente, deformado,
disforme, desfigurado. (in Obra
citada, pág. 18/19).
Partindo
de tais definições, nosso protagonista tem todas as características daquilo que
é feio presentes em sua aparência física. Entretanto
aqui nos deparamos com a primeira contradição: ao mesmo tempo ele é
inteligente, amável, sensível e educado. Como, então, pode ser considerado
feio?
Na
cena da estação de trem quando é acuado pela turba, ele se faz ouvir naquela
que é a frase alusiva ao cartaz do filme: “Eu
não sou um animal! Eu sou um ser humano! Eu... sou... um homem!
A fala, a comunicação, este
instrumento essencial em nossa evolução é seu cartão de visitas para a sociedade
industrial que o discrimina e o repele afastando-o de qualquer possibilidade de
inclusão a partir de seu aspecto físico. Esta sua capacidade de interação
social acaba, pelo menos parcialmente, em libertá-lo da sua alienação.
Foi
provavelmente a partir da Revolução Industrial que tivemos a construção de
conceitos estéticos tal como os concebemos nos dias contemporâneos. Assim, mais
do que a exposição de uma imagem, temos a partir de meados do século XIX a
exploração desta imagem: o que era considerado feio e sinônimo de repulsa passa
a ser também concebido como valor mercadológico. Ao contrário da Idade Média,
que repelia e escondia seus leprosos, a sociedade industrial expõe os seus feios através de espetáculos bizarros
objetivando o lucro, estudando-os a partir de pesquisas médicas e cientificas,_
pois estamos na época do cientificismo com Darwin e, em breve da psique de
Freud e,_ também no alvorecer da mídia que busca nos excessos de toda ordem se firmar
perante a opinião pública. Ou seja, é no nascimento desta sociedade industrial
que temos a consolidação dos padrões estéticos que continuam presentes em
nossos dias.
A
exploração, a discriminação, a exclusão social presentes no filme O Homem Elefante continuam em nossas sociedades
voltadas ao consumo. A construção daquilo que é belo ou feio atingiu seu ápice com o advento do Nazismo, onde os
padrões estéticos de uma pretensa beleza/feiúra nos levaram ao genocídio de
vários povos. (A este respeito indico o maravilhoso documentário A
Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen, 1992).
Talvez
o maior paradoxo do filme seja o fato de que esta mesma sociedade que
discrimina e abomina aquilo que é “o
declínio do seu tipo”, como disse Nietsche, não consegue enxergar que a
industrialização que se consolida como carro
chefe do capitalismo está muito distante do conceito de beleza, e, neste
sentido, as imagens de Lynch com as fábricas, os sons, o trabalho, a fumaça, a
partir de uma assustadora fotografia em preto e branco, insistem em nos mostrar
que estamos diante de algo ainda mais horrendo que o Homem Elefante, pois, ao contrário deste, que tinha uma dimensão
verdadeiramente humana _ e aqui vale lembrar as cenas em que o protagonista
narra Shakespeare e passagens bíblicas, a Revolução Industrial consolidou o que
é sinônimo de feio através da
exploração e coisificação do homem, espetacularmente retratadas nas obras de
Charles Dickens, William Blake, Edgar Allan Poe, etc, que nos mostraram que a
Inglaterra vitoriana (a mesma do Homem
Elefante) está bem ao nosso alcance, basta para isso esticarmos um pouco
nosso pescoço para fora de nossas casas.
Análise excelente, completa em seu propósito.
ResponderExcluirExcelente análise!
ResponderExcluirO duro é pensar que a exploração do feio, na atualidade, é mascarada como "caridade"! Os programas de auditório, em sua maioria, nos bombardeiam com tal exploração.
Janaína
Este filme foi o que mais me marcou nos meus 50 anos de vida.
ResponderExcluirDeveriam passo lo naquelas instituições educacionais onde são tão frequentes o
Bulimia
Parabéns pela análise e obrigado por dividir.
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