RESENHA: FEIOS, SUJOS E MALVADOS (1976) / 115'
DIR: Ettore Scola
ELENCO: Nino Manfredi, Maria Santella, Francesco
Anniballi
Como bem disse um crítico de
cinema, Ettore Scola, um realizador geralmente identificado por obras poéticas,
realizou aqui uma das obras mais corrosivas e debochadas do cinema.
A trama gira ao redor do
personagem Giacinto (esplêndido Nino Manfredi) que mora em um barraco com
esposa, seus dez filhos, netos, sobrinhos*, genros, noras e a mãe (a "nonna").
Anos atrás ele sofreu um acidente que praticamente o cegou de uma vista. Vive
então da pensão e esconde dentro de “casa” o dinheiro que recebeu de
indenização. Todos o odeiam sem exceção. O cenário se completa com os outros
moradores da favela/comunidade: as irmãs usurárias (qualquer semelhança com Crime
e Castigo de Dostoiévsky não é mera coincidência), o vendedor de produtos
de limpeza que vai até os moradores com seu caminhão vender seus produtos, e os
demais moradores, todos é claro representados como feios, sujos e malvados.
Aqui não há lugar para redenção, todos são culpados por seus atos. Mesmo que
não saibamos quais são tais atos, basta observarmos com um pouco de atenção a
aparência sórdida de tais personagens para, de imediato, emitirmos
juízos de valor depreciativos. Ou seja, o tão propalado e apregoado politicamente
correto de nossos tempos passa bem distante das falas e imagens que se
sucedem em um ritmo acelerado: os moradores e parentes de Giacinto que saem
para roubar, o sujeito sem perna, o cachorro sem uma pata, os ratos e ratazanas
que circulam livremente em vários espaços, o velho doente que pede chorando
para a enfermeira masturbá-lo, a espingarda e o dinheiro de Giacinto como
símbolos do poder, a amante na mesma cama que a esposa, a promiscuidade sexual
de todos, etc, etc, etc.
Em todas as cenas, a miséria que
transforma tudo em sordidez e a todos em canalhas. De simbólico, não nos
esqueçamos nunca da cúpula da Basílica de São Pedro, que no plano ao
fundo da cena a tudo observa e em nada é capaz de intervir, assim como o ritual do batismo que
une toda a família em seus interesses mais torpes e ao mesmo tempo revela o
distanciamento entre espírito e matéria, entre seres que, da extrema miséria, não são capazes de alavancar qualquer sentimento de
humanidade.
Se Karl Marx fosse depender
destes trabalhadores urbanos para realizar sua revolução, teria que se
conformar com sua teoria do lúpen. Pessoas que perderam toda a dignidade
humana e incapazes de se organizar politicamente, economicamente e socialmente
visando a transformação do estado em que vivem. Aqui o sistema capitalista (e
sua exclusão) está tão enraizado que nada mais é possível, a não ser
tentar uma brecha para entrar neste meio, onde o mais importante é ser um
consumidor. Fato este magistralmente retratado no sonho de Giacinto onde
felicidade é sinônimo de consumir e na proteção da mãe à filha que se prostitui
como “modelo”. Tudo que represente alguma forma de ascensão social é válido.
Vivendo como animais e com total
ausência de princípios morais, éticos e religiosos, os personagens de Scola são
universais, presentes em vários tempos e espaços. Não estão apenas em um
tempo cronológico, mas sim em um tempo histórico, eles estão na
Roma dos césares, na Idade Média do clero católico, nos reinos católicos e
protestantes do humanismo renascentista, no alvorecer da revolução Industrial,
nos totalitarismos, na democracia capitalista, no que se denominou
globalização. Basta olharmos ao nosso lado para identificar não a caricatura,
mas sim os reais personagens de Scola.
De poesia resta a personagem
ícone do filme, a garota que todas as manhãs fica responsável por levar todas
as crianças da favela para uma área cercada que mais se assemelha a um chiqueirinho
e que ao término da trama se apresenta grávida para as câmeras. Ou seja, aqui,
o espaço da esperança também está ausente e dilacerado.
Marcelo, essa simpatia pelos anti-heróis é um dos aspectos que mais aprecio no cinema italiano - uma constante lição que Hollywood aos poucos parece estar aprendendo. A história de guardar o dinheiro em casa fez-me lembrar de um filme em que o perdulário e mulherengo Totó descobre onde o irmão, Peppino, esconde o fruto do seu trabalho. Toda noite, pega um bocado e vai gastá-lo nos bordéis. Um dia, Peppino vai contar o dinheiro e vê só algumas míseras cédulas. Pergunta a Totó que, ladino, responde: "Mas que ignorância, irmão. Não ouviu falar da inflação? O dinheiro perdeu 300% do valor."
ResponderExcluirApós ver o filme, ler sobre o filme e ter convivido com este tipo de gente, questionou se essa caricatura dos mais pobres é real ou uma outra invenção do cinema e da cultura? Perigoso que o autor do texto aceita-a como verdade a ponto de generalizar para qualquer tempo e espaço a suposta conduta amoral dos miseráveis. Ou é mais uma vez o olhar moralista e impiedoso das classes médias sobre os mais pobres? O filme é bom, Ettore faleceu, mas aquilo mostrado no filme não é e jamais será a realidade.
ResponderExcluirAssisti o filme, fiquei triste com a morte do Ettore que soube através de nota da revista Carta Capital, mas há algo que escapou a análise. A construção fictícia da imagem da miséria pela cultura. Convivi muito com essa gente ( ainda convivo) e questiono se essa caricatura construída pelo filme ( e outros meios) não atende mais aos apelos da visão preconcebida e moralista das classes média e altas. Fica aquela situação cômoda e confortável de que os outros, os mais pobres são amorais e meio animais (?) enquanto nós da pequena burguesia , velamos a regras do saber viver e da virtude. Status bem fascista esse que agora obscurece o Brasil. O autor da crítica compra essa ideia e a generaliza pelo tempo e pelo espaço. Esquece ou não interessa saber que essa visão é uma farsa, uma outra ilusão criada pela representação do cinema sobre a realidade, assim como são os filmes de aventura, os romances, as ficções científicas.
ResponderExcluirEmbora o filme retrate os miseráveis creio que Scola, um cineasta de esquerda, procurou criticar a natureza humana e os mecanismos sociais e econômicos que levam à degradação. Quebrar um pouco o esterótipo de que todo pobre é bom e solidário. Interpreto o filme muito mais como uma crítica ao capital que leva tais pessoas a este estado do que propriamente uma visão preconceituosa sobre as classes populares. Entretanto, considero pertinente sua interpretação.
ExcluirSou um cinéfilo meio desconectado com as abordagens sociológicas, entre outras, que o filme aborda. Sua resenha muito me ajudou a compreender e valorizar o contexto e a obra do cineasta.
ResponderExcluirFico feliz que tenha ajudado. Obrigado pela leitura
ExcluirComo posso relacionar o filme com os conceitos da psicanalise?
ResponderExcluirEsta vou ficar lhe devendo amigo. Grato pela leitura.
ExcluirExcelente filme uma das melhores comédias que já assisti, politizar o cinema é o fim, é obra de ficção e a imundície do politicamente correto só a estraga, aliás está estragando tudo.
ResponderExcluirTodos nossos atos são políticos, o seu comentário é político. Grato pela leitura!
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