RESENHA – FAUSTO
FICHA TÉCNICA – Alemanha / 1926 / 106'
DIREÇÃO: F.W. Murnau
ELENCO: Emil Jannings / Gösta Ekman / Camilla Horn
Em Fausto, de F.W. Murnau, temos a linguagem
cinematográfica perpetuando a famosa história mítica germânica, que foi
imortalizada pela literatura de Goethe no século XIX.
A ação
transcorre no final da Idade Média quando há um embate entre o bem e o mal,
entre um mensageiro de luz e o diabo. Em disputa, a Terra e seus habitantes.
Como definidor deste conflito um médico sábio, idoso e querido pela comunidade:
Dr. Fausto.
Apesar
de sua erudição e preocupação com o outro, em seu intimo há uma busca
incessante pelo conhecimento supremo, uma busca pela “pedra filosofal”. E é
justamente nesta sua procura pelo desconhecido que o mal irá estender seus
tentáculos para corrompê-lo. Enquanto o mensageiro de Deus antecipa Rousseau ao
dizer que “as pessoas são boas por natureza”, o diabo irá contra-argumentar que
há em Fausto um sentimento capaz de levá-lo à ruina: o saber e a razão acima de
todas as coisas.
Estamos
diante da dualidade que norteia o filme: fé e razão, ideais que se dispersam na
mesma proporção em que o enviado do diabo, Mefistófeles, resolve tentar Fausto.
Uma leitura um pouco mais atenta e podemos concluir que a busca pelo saber distancia
o homem de Deus e, apesar da fé ser representada pela luz, afugenta o homem do
conhecimento e o coloca no obscurantismo presente em todas as religiões.
As
decisões de Fausto irão determinar o futuro da humanidade: seguirem devotos de
Deus e guiados pela fé ou se entregarem aos prazeres e caprichos mundanos,
aproximando-se das mentiras, intrigas e maledicências, que são instrumentos
daquele que representa as sombras? Sombras, aliás, que estão presentes em todo
o filme.
Para atingir seus objetivos, Mefistófeles
lança a peste sobre todos. Diante de tanto sofrimento e dor, Fausto cai e não consegue se levantar mais. Consultando um livro
de feitiçarias, evoca a presença do Maligno e sua força para enfrentar o mal
que está alojado naqueles que foram esquecidos por Deus. Alguns poderão
considerar orgulho e presunção de sua parte tentar fazer o papel de Deus,
outros, ao contrário, tendem a considerá-lo um humanista apaixonado pelo seu
ofício de curar vidas e inconformado com a dor alheia.
Diante
de Mefistófeles Fausto arrepende-se. Tenta
fugir, mas é perseguido até em sua própria casa. É inútil ignorar presença tão
ilustre que, ao contrário do livro de Goethe, foi evocado pelo próprio protagonista. Diferentemente de O
retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde (1854 – 1890), aqui o
mal não se apresenta diante da soberba e orgulho, mas diante da desesperança de
Fausto. Observamos em diferentes closes de seu rosto, bem como através de seus
gestos ritmados pelo sofrimento, seu estado de espirito e acabamos nos
compadecendo de seus atos. Mesmo apelando para o mal, seus sentimentos são
nobres.
Conhecendo
ou não o mito de Fausto e a versão de Murnau, temos uma certeza: estamos diante
de um anti-herói por ter se permitido corromper, mas não deixamos de “torcer”
por ele, por sua humanidade...
O
grande entrave está justamente no dilema moral e, acima de tudo religioso _ não
nos esqueçamos do contexto histórico medieval_: posso atingir o bem utilizando
instrumentos opostos para alcançar este fim?
Revestido do poder concebido pelo
demônio, Fausto cura um doente. “Milagre! Milagre!” Gritam todos e logo uma
turba de maltrapilhos e desesperados buscam tocar Fausto para atingir a cura.
Murnau o transforma em uma nova versão do Cristo, mas um Cristo às avessas. Em
seguida o encanto se desfaz e, diante da dificuldade em curar e até mesmo de se
aproximar de uma doente que carrega um crucifixo, Fausto é posto à prova e
taxado de estar mancomunado com o diabo. Ao ser apedrejado, a figura que
sintetizava o Velho (Moisés guiando seu povo) e o Novo Testamento (Cristo
curando) confronta-se com sua dura realidade.
Quando
mencionamos o mito de Fausto, o que até os leigos conhecem é sobre a eterna
juventude. Diante da fuga desesperada de um Fausto quase linchado, Mefistófeles
o seduz com a beleza de outrora. Firmam um pacto onde o diabo será seu servo em
troca de sua alma.
Como
não ser seduzido diante da beleza das mulheres, da riqueza e da juventude?
Ainda mais após ser destituído de seu saber, sua honra e sua glória na
comunidade moribunda que o abandonou?
Aceitando
o acordo, Fausto viaja pelo mundo ao lado de
Mefistófeles em maravilhosos e inovadores planos aéreos das lentes de Murnau,
com a sombra da capa do seu companheiro encobrindo e escurecendo a tudo e a
todos. Ao final de tantas orgias (talvez tenham se passado anos), Fausto
sente-se abandonado, solitário e vazio _ arquétipo do ser humano? _ retorna
então à sua vila e a encontra livre da peste e em festejos de Páscoa. Interessante
observar que o sentimento de culpa e sofrimento são intrínsecos ao
protagonista: o mal o acompanha, e é a
partir dele que as tramas e intrigas maléficas se propagam para os demais
personagens.
A
paixão por Margarida escancara sua ruina moral e, ao mesmo tempo, sua redenção.
O filme
de 1926 representou o final da escola Expressionista alemã (escola que irá
exercer enorme influência em outras produções, como por exemplo, os clássicos
de terror da Universal na década de 30), onde os efeitos de sombras e luz
denotam a subjetividade dos personagens e, no caso, a visão pessoal do
autor/diretor.
Murnau
utilizou vários efeitos especiais inovadores para a época e que seriam
posteriormente utilizados em Metrópoles de Fritz Lang, fez uso de inúmeras
gravuras e pinturas que as recriou em diversas cenas. Neste campo citamos os
desenhos de Gustave Dorè (famoso no século XIX pelas ilustrações de grandes
clássicos da literatura, como Dom Quixote) e, Rembrandt. Mas, além deles,
outras pinturas receberam várias adaptações e tornaram-se parte integrante do
universo cinematográfico de Fausto.
A
direção de arte, a riqueza e o detalhe dos cenários, o trabalho artesanal de
todos os envolvidos na produção fazem de Fausto um marco na linguagem
cinematográfica. A impressionante atuação de Emil Jannings (1884-1950) como
Mefistófeles e de Camilla Horn (1903-1996) como Margarida, mesclando em suas
cenas beleza casta, erotismo e o mais profundo sofrimento, enriquecem ainda
mais aquela que foi considerada a obra-prima do importante diretor F.W. Murnau.
Fausto
é uma brilhante parábola sobre as relações de poder e conquista entre os
homens. O bem e o mal representados pela fé e ausência desta reforçam os atos
morais que são resultantes de ações humanas e não de intervenções divinas. O
mensageiro da Paz e seu oposto representam estes dilemas, nossos pequenos atos
cotidianos que podem fugir ao nosso controle e trazer consequências nefastas
àqueles que nos cercam e que até mesmo amamos _ como a relação entre Fausto e
Margarida, esta última apresentada em
várias cenas como uma perfeita Virgem Maria que, ao tentar salvar o filho do
frio congelante, nos leva a imaginar a
mãe do Cristo rogando por todos os pecadores.
Coube
ao Nazismo, poucos anos depois da estreia de Fausto, levar à concretude o
sorriso de Mefistófeles: o dilema moral deixou de existir na sociedade nazista
e a decisão individual de Fausto tornou-se um delírio coletivo.
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