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O SENHOR DA GUERRA / THE WAR
LORD
Produção: EUA / 1965
Direção: Franklin Schaffner
Elenco: Charlton Heston / Richard Boone /
Maurice Evans / Rosemary Forsyth
Duração:
122 min / Adaptado para o cinema a partir de romance e peça de Leslie Stevens.
Sinopse: Chrysagon (Heston) é um nobre
guerreiro que recebe do duque da Normandia a posse de um território (feudo) que
sofre frequentes ataques dos frísios, e onde os camponeses, embora
cristianizados, conservam-se fiéis aos antigos cultos celtas. Pouco depois de
se fixar em seu feudo, este senhor feudal faz valer seu direito de passar a
primeira noite de núpcias com uma camponesa que está prestes
a se casar com um dos seus servos. Entretanto, ao se apaixonar pela noiva,
Crrysagon recusa-se a devolvê-la ao noivo, o que gera a ira dos camponeses, que
se unem aos invasores bárbaros em uma tentativa de tomar o castelo e o feudo.
Trata-se
de uma das melhores adaptações para o cinema do mundo medieval (século XI), que
consegue, além de uma trama envolvente e com
bastante ação, ser elucidativa das relações sociais, políticas, religiosas e
ideológicas da Europa dominada pela religião católica e pelos nobres
cavaleiros, mas ao mesmo tempo carregada de conflitos internos.
Nesta
resenha considero importante identificar os principais grupos sociais
envolvidos:
Normandos: habitantes da Normandia, antiga província do noroeste da França,
originalmente o lar das tribos celtas (gauleses), que se estabeleceram na
Britânia, Inglaterra, Gales, França e Irlanda. Em 1066 (século em que
transcorre a trama), o duque Guilherme da Normandia conquista a Inglaterra
tornando-se Guilherme I; são os cristãos do filme;
Frísios: tribo do noroeste da Europa,
parte do reino Franco (atual Holanda);no filme, invadem a França pelo mar do
Norte; são os chamados bárbaros pagãos pelos cristãos normandos;
Druidas: povos pagãos, antigos
sacerdotes bretões e gauleses; não possuíam
templos; acreditavam na imortalidade da alma e em seres da natureza, se reuniam
nas florestas e bosques. São os servos (camponeses) que sofrem no filme um
processo de aculturação cristã, mas que procuram mesmo assim manter suas
origens e tradições culturais e religiosas.
Contextualização histórica: a partir do reinado de Guilherme I, desenvolveu-se o processo de feudalização de vários
territórios europeus. Este Feudalismo consistia na concessão de terras a nobres
(vassalos) que em troca deste beneficio passam a dever obrigações a seus
senhores (chamados suseranos). Por sua vez, estes senhores passaram a ter cada
vez mais vassalos com um processo contínuo de conquistas de terras, trocas de
favores e formação de exércitos. Este processo passou com o tempo a fortalecer
o poder dos senhores, que passavam a ter um número cada vez maior de vassalos,
processo este que acabou por limitar e enfraquecer o poder centralizado dos
reis.
Ao
longo do filme podemos observar, em algumas cenas em que a câmera amplia o seu plano,
como era o interior “clássico” de um feudo, com a divisão do trabalho pelos
camponeses em suas roças e nas terras do senhor. Também
são mostradas as moradias destes trabalhadores que dependiam, na ausência de um governo forte e centralizado, da ajuda e proteção do exército do de seu Senhor. Trata-se de um mundo onde as relações de
solidariedade são amplas e muito mais concretas do que as existentes nas atuais
sociedades capitalistas. Em seu depoimento no livro Ano 1000 ano 2000, na pista dos nossos medos (Ed. Unesp, 1998), o brilhante
historiador Georges Duby assim caracteriza a
sociedade feudal na transição do milênio, período de O Senhor da Guerra: “(...) Como as sociedades africanas, as medievais
eram sociedades de solidariedade. O homem estava inserido em grupos: o grupo familiar,
o da aldeia, o senhorio, que era um organismo de exação, mas também de
segurança social. Quando sobrevinha um período de fome, o senhor abria seus
celeiros para alimentar os pobres. Esse era seu dever e ele estava convencido
disso. Esses mecanismos de ajuda mútua evitaram, nessas sociedades a miséria
terrível que conhecemos hoje. Existia o medo da penúria repentina, mas não
havia a exclusão de uma parte da sociedade lançada ao desespero. Era gente
muito pobre, mas unida. Os mecanismos de solidariedade comuns a todas as
sociedades tradicionais desempenhavam plenamente seu papel, como atualmente na
África Negra. Os ricos tinham o dever de dar e o cristianismo estimulava esse
dever de ajudar os outros.” (obra citada, pág.28).
Ainda dentro do feudo, outro local de destaque é
o castelo e sua fortificação. A torre, elemento mais alto e ao mesmo tempo de maior segurança. A tomada da torre
e do castelo simbolizavam a perda do poder do Senhor. Assim, é justamente na
defesa deste espaço com a utilização desde bestas e catapultas como elementos
modernos de luta até o lançamento de óleo fervendo que observamos os recursos
tecnológicos de guerra disponíveis na época. As armaduras, que tinham o valor
de verdadeiras fortunas, ainda não gozavam de todo o aparato que estamos
acostumados a ver, com elmos trabalhados e muito mais incrementadas (o que só
seria possível séculos depois), assim como as
armas, basicamente arcos, flechas e espadas, uma
vez que ainda estamos séculos distantes da invenção da pólvora.
O filme está centrado na figura do Senhor da guerra e nenhum ator foi capaz até hoje de melhor
representar e literalmente incorporar
personagens históricos como Charlton Heston (Moisés, Judah Ben Hur, El Cid
apenas para citar alguns). Aqui ele nos apresenta um ser gótico, sombrio e que
busca com sua paixão superar ou ao menos controlar seu passado e destino
trágico (a morte do pai, vitima dos “bárbaros”
frísios). A trama também enaltece suas virtudes de justiça, tendo como
contraponto a arrogância e prepotência do irmão. Apesar destas características,
não se pretende transformá-lo em herói, algo tão clichê nos filmes recentes
hollywoodianos. Respeitam-se aqui os preceitos históricos ao se retratar uma
sociedade extremamente hierarquizada e estanque. Assim,
o personagem de Heston está em cima de seu altivo cavalo em todas as tomadas em
que está em contato com seus servos, dirigindo-se a eles de cima para baixo. Ele não utiliza seu poder
como forma de ostentação, mas nunca o transfere a outrem ou deixa de exercê-lo.
Em uma cena, refere-se aos camponeses da
seguinte forma: “Para mim, são como
animais”.
Outro personagem que merece destaque é o padre
do feudo. Aqui há certa liberdade artística (trata-se de um filme de ficção que
contextualiza um período histórico) ao representar um personagem um tanto
quanto “abestalhado” e bastante hesitante ao longo da trama, características
estas que destoam do enorme poder e prestígio que a Igreja católica apresentava
no período. O padre nos é mostrado como alguém que tem a difícil tarefa de ser
um elemento conciliador de duas culturas, isto é, ao mesmo tempo em que busca
agradar ao seu senhor cristão e realizar um processo de catequese junto aos
servos pagãos, por outro lado sabe que pela força e imposição não irá obter
êxito. A figura do padre é bastante simpática, mas historicamente imprecisa.
Sabemos que o poder da igreja não foi fruto do diálogo e diplomacia, mas de
completa imposição e subordinação de uma cultura sobre outra, nem que para isso
fosse necessário (o que ocorria com frequência) o expediente da violência.
Então a representação de um membro do clero bonachão e vacilante talvez seja o
principal “furo” histórico do filme. Mesmo assim, há algumas passagens
em que este poder clerical se manifesta, como na cena em que o padre e o irmão
do Senhor discutem e este diz: “Eu sou um cavaleiro”, enquanto a resposta do
padre qualifica sua posição naquela sociedade iletrada: “E eu sei escrever”. E
foi justamente esta escrita que chegou até nós; foi
a partir do relato de monges copistas e membros do clero que os historiados
puderam, com os devidos filtros, escrever a
história medieval.
Outro
historiador, este brasileiro, nos apresenta a estruturação social clássica do
período medieval, estrutura esta que é reproduzida com precisão pelo filme:
“Para que o guerreiro possa defender o
religioso e o trabalhador, é necessário que o primeiro interceda junto a Deus
pelo sucesso, e que o segundo lhe forneça os meios materiais para tal; para que
o religioso possa pedir a proteção divina para a sociedade, é necessário que o
guerreiro o defenda, e que o trabalhador o sustente; e para que o trabalhador
consiga realizar sua tarefa produtiva, é necessário que o guerreiro o proteja
dos perigos terrestres e que o religioso o salve do desagrado divino”. (em
Guerra e guerreiros na Idade Média, Cyro Rezende Filho, Editora Contexto,
pág.74).
Embora
seja considerado um épico histórico, O Senhor
da Guerra desenvolve em sua trama uma história de amor, e para entender o
que isto representava neste período mais uma vez temos que recorrer ao que se
pensava a este respeito. O conceito de amor
como vários outros é uma construção histórica, fruto de uma correlação de
pensamentos que expressam sua significação. Assim, somente compreendendo como o
amor e a imagem de masculino e feminino eram representados somos capazes de
interagir com aquela sociedade e suas particularidades, que ora se aproximam e
ora se distanciam de nossos valores e conceitos atuais.
Na
literatura religiosa medieval, os padres destacaram algumas ideias a respeito
da mulher. Foram desenvolvidos dois conceitos: de um lado, o da mulher má por
natureza e do outro o da mulher perfeita. A história de Adão e Eva foi
retomada. Muitos pensadores não acreditavam que Eva, assim como Adão, tivesse sido criada à imagem de Deus. Preferiam
considerá-la criação de Adão. Assim sendo, o homem seria dotado da imagem
divina, enquanto a mulher apresentaria apenas semelhança divina.
Uma
peça teatral escrita entre 1150 e 1170 nos mostra a forte influência religiosa.
Nesta peça, Adão é apresentado como se fosse vassalo de Deus. O Paraíso, nesse
sentido, simboliza o feudo. Eva aparece como
vassala de Adão e apenas como segunda vassala do Criador.
Satã
tenta iludir Adão sem obter sucesso. Ele permanece fiel a Deus como um vassalo
deve manter-se fiel ao Seu Senhor. Satã então seduz Eva. Ao fazê-lo, tentou romper a hierarquia reinante no Paraíso para
estabelecer, entre a mulher e o homem, e ao mesmo tempo entre o homem e Deus, a
igualdade, isto é, a desordem. Seduzida, Eva levou Adão ao pecado. Deus, como
um Senhor Feudal exemplar, expulsou os dois do Paraíso e confiscou o feudo
cedido a Adão. Este, magoado e cheio de rancor, culpou a mulher. A confissão da
pecadora para o público que assistia à encenação deveria confirmar a
inferioridade do sexo feminino. O homem, bom vassalo, conseguiu resistir ao
mal. A mulher, a parte débil da natureza humana, ao mesmo tempo seduzida e
sedutora, foi a causa da perdição de ambos. Hoje o mito de Adão e Eva tem novas
roupagens que procuram interpretar a mulher como sendo criada de uma parte
lateral do homem (a costela), logo ela está ao seu lado para acompanha-lo em
uma igualdade de direitos e deveres. Mas não era esta a configuração da mulher
no mundo medieval. Vejamos outra definição para o sexo feminino:
“Toda mulher se alegra ao pensar no pecado e
ao praticá-lo. Nenhuma é boa, se alguém assim acha. Porque a mulher boa é coisa
ruim e quase nada de bom existe nela” (monge do século XII).
Assim, o desejo, que é obra do diabo,
destrói o homem. A mulher, inspiradora do desejo, é por excelência agente do
mal, causa do desespero, da morte, da danação eterna do sexo masculino.
Novamente
os historiadores Philippe Aries e Georges Duby nos apresentam a mentalidade
dominante a respeito das mulheres no período retratado em O Senhor da Guerra, “A mulher não pode viver sem o homem, deve estar no
poder de um homem (...) Por natureza, pela natureza de seu corpo, ela é
obrigada ao pudor, ao retiro; deve preservar-se; deve, sobretudo, ser colocada
sob o governo dos homens, desde o nascimento até a morte, porque seu corpo é
perigoso. Em perigo, e fonte de perigo: por ele, o homem perde sua honra, por
ele corre o risco de ser desencaminhado, por essa armadilha tanto mais perigosa
quanto esta mais preparada para seduzir (autores citados, em História da Vida
Privada, vol. II, pág.518, Cia das Letras).
A partir das informações acima, façamos
um exercício de imaginar qual seria a reação social para um fato inusitado: um
senhor feudal, um nobre, requerer o direito senhorial de passar a primeira
noite com sua serva (até este fato, algo socialmente aceito), mas recusar
devolvê-la ao noivo, querer ele se casar e viver com esta mulher. Tal situação
evidentemente não só abalaria esta sociedade como provocaria uma total
desestruturação de toda a ordem; seria portanto
algo impensável e totalmente inaceitável por todos os grupos sociais (clero,
nobreza e servos).
A
relação entre os dois personagens, serva e senhor, são
elucidativas para melhor entendermos as noções do que era considerado público e privado nessa sociedade, onde o desejo, que é algo pessoal e intimo, torna-se público.
Na
cena da posse sexual da noiva, o Senhor Feudal não quer, em seu intimo, possuí-la pela força, pela violência, conforme o costume (o que é público), mas sim quer
conquistá-la, ser capaz de seduzi-la, pois está apaixonado por ela. Assim,
devido à enorme diferença social entre eles, ele é obrigado a usar um
expediente que é público (o costume) para poder aproximar-se e concretizar seu
desejo que é intimo (privado).
Esta
paixão, entretanto, torna-se recíproca: a camponesa não só aceita o “amor
cortês” do Senhor como também é agente ativa nesta relação:
“Eu também estou enfeitiçada”, respondendo
e ao mesmo tempo correspondendo à paixão recebida.
“Dizem que é uma coisa sagrada conquistar o coração
de um homem”.
Evidentemente que tal situação torna-se explosiva quando temos tantos
interesses em jogo. A função e o objetivo do Senhor Feudal vassalo de outro
senhor eram manter e estabelecer a paz nas terras do seu Senhor e é justamente
a relação amorosa dos protagonistas que faz desmoronar toda uma ordem social
pré-estabelecida não pelos homens, mas, pelo que
se acreditava, pelo
próprio Deus.
“(...) quando pela homenagem alguém se
tornava vassalus de um sênior, estabelecia-se um pseudo parentesco entre pai e
filho. Entre eles devia haver respeito e fidelidade. O vassalo, filho simbólico
geralmente mais jovem, precisa de terra e camponeses; o Senhor Feudal, pai
simbólico, geralmente mais experiente, precisa de guerreiros. Segundo o bispo
Fulbert de Chartres (século XI) entre outras coisas, o vassalo deve ser
‘Honesto para que não prejudique os direitos de justiça do seu Senhor ou outras
prerrogativas que interessem à honra a que pode pretender. Útil, para que não
cause prejuízo aos bens do seu Senhor.’ (em Hilário Franco Júnior – O
Feudalismo, Ed. Brasiliense, pág.45/46). Ou seja, fica evidente pela
passagem acima que o Senhor da Guerra não
cumpre com seu papel e as consequências são desastrosas para todos.
Finalizando, este filme deve ser visto
e revisto, principalmente por aqueles que gostam da História, não apenas como
entretenimento, algo que em nenhum momento o filme deixa de ser, mas o que é
melhor, como um instrumento que consegue ao mesmo tempo transmitir toda uma
gama de informações sobre um período que aparentemente está muito distante de
nós, mas que a partir de um olhar mais atento e apurado interage com nossa
maneira de pensar e ver o mundo.