http://portifoliovirtualsalesiano.blogspot.com.br/2012/02/resenha-o-senhor-da-guerra-1965.html
O SENHOR DA GUERRA / THE WAR
LORD
Produção: EUA / 1965
Direção: Franklin Schaffner
Elenco: Charlton Heston / Richard Boone /
Maurice Evans / Rosemary Forsyth
Duração:
122 min / Adaptado para o cinema a partir de romance e peça de Leslie Stevens.
Sinopse: Chrysagon (Heston) é um nobre
guerreiro que recebe do duque da Normandia a posse de um território (feudo) que
sofre frequentes ataques dos frísios, e onde os camponeses, embora
cristianizados, conservam-se fiéis aos antigos cultos celtas. Pouco depois de
se fixar em seu feudo, este senhor feudal faz valer seu direito de passar a
primeira noite de núpcias com uma camponesa que está prestes
a se casar com um dos seus servos. Entretanto, ao se apaixonar pela noiva,
Crrysagon recusa-se a devolvê-la ao noivo, o que gera a ira dos camponeses, que
se unem aos invasores bárbaros em uma tentativa de tomar o castelo e o feudo.
Trata-se
de uma das melhores adaptações para o cinema do mundo medieval (século XI), que
consegue, além de uma trama envolvente e com
bastante ação, ser elucidativa das relações sociais, políticas, religiosas e
ideológicas da Europa dominada pela religião católica e pelos nobres
cavaleiros, mas ao mesmo tempo carregada de conflitos internos.
Nesta
resenha considero importante identificar os principais grupos sociais
envolvidos:
Normandos: habitantes da Normandia, antiga província do noroeste da França,
originalmente o lar das tribos celtas (gauleses), que se estabeleceram na
Britânia, Inglaterra, Gales, França e Irlanda. Em 1066 (século em que
transcorre a trama), o duque Guilherme da Normandia conquista a Inglaterra
tornando-se Guilherme I; são os cristãos do filme;
Frísios: tribo do noroeste da Europa,
parte do reino Franco (atual Holanda);no filme, invadem a França pelo mar do
Norte; são os chamados bárbaros pagãos pelos cristãos normandos;
Druidas: povos pagãos, antigos
sacerdotes bretões e gauleses; não possuíam
templos; acreditavam na imortalidade da alma e em seres da natureza, se reuniam
nas florestas e bosques. São os servos (camponeses) que sofrem no filme um
processo de aculturação cristã, mas que procuram mesmo assim manter suas
origens e tradições culturais e religiosas.
Contextualização histórica: a partir do reinado de Guilherme I, desenvolveu-se o processo de feudalização de vários
territórios europeus. Este Feudalismo consistia na concessão de terras a nobres
(vassalos) que em troca deste beneficio passam a dever obrigações a seus
senhores (chamados suseranos). Por sua vez, estes senhores passaram a ter cada
vez mais vassalos com um processo contínuo de conquistas de terras, trocas de
favores e formação de exércitos. Este processo passou com o tempo a fortalecer
o poder dos senhores, que passavam a ter um número cada vez maior de vassalos,
processo este que acabou por limitar e enfraquecer o poder centralizado dos
reis.
Ao
longo do filme podemos observar, em algumas cenas em que a câmera amplia o seu plano,
como era o interior “clássico” de um feudo, com a divisão do trabalho pelos
camponeses em suas roças e nas terras do senhor. Também
são mostradas as moradias destes trabalhadores que dependiam, na ausência de um governo forte e centralizado, da ajuda e proteção do exército do de seu Senhor. Trata-se de um mundo onde as relações de
solidariedade são amplas e muito mais concretas do que as existentes nas atuais
sociedades capitalistas. Em seu depoimento no livro Ano 1000 ano 2000, na pista dos nossos medos (Ed. Unesp, 1998), o brilhante
historiador Georges Duby assim caracteriza a
sociedade feudal na transição do milênio, período de O Senhor da Guerra: “(...) Como as sociedades africanas, as medievais
eram sociedades de solidariedade. O homem estava inserido em grupos: o grupo familiar,
o da aldeia, o senhorio, que era um organismo de exação, mas também de
segurança social. Quando sobrevinha um período de fome, o senhor abria seus
celeiros para alimentar os pobres. Esse era seu dever e ele estava convencido
disso. Esses mecanismos de ajuda mútua evitaram, nessas sociedades a miséria
terrível que conhecemos hoje. Existia o medo da penúria repentina, mas não
havia a exclusão de uma parte da sociedade lançada ao desespero. Era gente
muito pobre, mas unida. Os mecanismos de solidariedade comuns a todas as
sociedades tradicionais desempenhavam plenamente seu papel, como atualmente na
África Negra. Os ricos tinham o dever de dar e o cristianismo estimulava esse
dever de ajudar os outros.” (obra citada, pág.28).
Ainda dentro do feudo, outro local de destaque é
o castelo e sua fortificação. A torre, elemento mais alto e ao mesmo tempo de maior segurança. A tomada da torre
e do castelo simbolizavam a perda do poder do Senhor. Assim, é justamente na
defesa deste espaço com a utilização desde bestas e catapultas como elementos
modernos de luta até o lançamento de óleo fervendo que observamos os recursos
tecnológicos de guerra disponíveis na época. As armaduras, que tinham o valor
de verdadeiras fortunas, ainda não gozavam de todo o aparato que estamos
acostumados a ver, com elmos trabalhados e muito mais incrementadas (o que só
seria possível séculos depois), assim como as
armas, basicamente arcos, flechas e espadas, uma
vez que ainda estamos séculos distantes da invenção da pólvora.
O filme está centrado na figura do Senhor da guerra e nenhum ator foi capaz até hoje de melhor
representar e literalmente incorporar
personagens históricos como Charlton Heston (Moisés, Judah Ben Hur, El Cid
apenas para citar alguns). Aqui ele nos apresenta um ser gótico, sombrio e que
busca com sua paixão superar ou ao menos controlar seu passado e destino
trágico (a morte do pai, vitima dos “bárbaros”
frísios). A trama também enaltece suas virtudes de justiça, tendo como
contraponto a arrogância e prepotência do irmão. Apesar destas características,
não se pretende transformá-lo em herói, algo tão clichê nos filmes recentes
hollywoodianos. Respeitam-se aqui os preceitos históricos ao se retratar uma
sociedade extremamente hierarquizada e estanque. Assim,
o personagem de Heston está em cima de seu altivo cavalo em todas as tomadas em
que está em contato com seus servos, dirigindo-se a eles de cima para baixo. Ele não utiliza seu poder
como forma de ostentação, mas nunca o transfere a outrem ou deixa de exercê-lo.
Em uma cena, refere-se aos camponeses da
seguinte forma: “Para mim, são como
animais”.
Outro personagem que merece destaque é o padre
do feudo. Aqui há certa liberdade artística (trata-se de um filme de ficção que
contextualiza um período histórico) ao representar um personagem um tanto
quanto “abestalhado” e bastante hesitante ao longo da trama, características
estas que destoam do enorme poder e prestígio que a Igreja católica apresentava
no período. O padre nos é mostrado como alguém que tem a difícil tarefa de ser
um elemento conciliador de duas culturas, isto é, ao mesmo tempo em que busca
agradar ao seu senhor cristão e realizar um processo de catequese junto aos
servos pagãos, por outro lado sabe que pela força e imposição não irá obter
êxito. A figura do padre é bastante simpática, mas historicamente imprecisa.
Sabemos que o poder da igreja não foi fruto do diálogo e diplomacia, mas de
completa imposição e subordinação de uma cultura sobre outra, nem que para isso
fosse necessário (o que ocorria com frequência) o expediente da violência.
Então a representação de um membro do clero bonachão e vacilante talvez seja o
principal “furo” histórico do filme. Mesmo assim, há algumas passagens
em que este poder clerical se manifesta, como na cena em que o padre e o irmão
do Senhor discutem e este diz: “Eu sou um cavaleiro”, enquanto a resposta do
padre qualifica sua posição naquela sociedade iletrada: “E eu sei escrever”. E
foi justamente esta escrita que chegou até nós; foi
a partir do relato de monges copistas e membros do clero que os historiados
puderam, com os devidos filtros, escrever a
história medieval.
Outro
historiador, este brasileiro, nos apresenta a estruturação social clássica do
período medieval, estrutura esta que é reproduzida com precisão pelo filme:
“Para que o guerreiro possa defender o
religioso e o trabalhador, é necessário que o primeiro interceda junto a Deus
pelo sucesso, e que o segundo lhe forneça os meios materiais para tal; para que
o religioso possa pedir a proteção divina para a sociedade, é necessário que o
guerreiro o defenda, e que o trabalhador o sustente; e para que o trabalhador
consiga realizar sua tarefa produtiva, é necessário que o guerreiro o proteja
dos perigos terrestres e que o religioso o salve do desagrado divino”. (em
Guerra e guerreiros na Idade Média, Cyro Rezende Filho, Editora Contexto,
pág.74).
Embora
seja considerado um épico histórico, O Senhor
da Guerra desenvolve em sua trama uma história de amor, e para entender o
que isto representava neste período mais uma vez temos que recorrer ao que se
pensava a este respeito. O conceito de amor
como vários outros é uma construção histórica, fruto de uma correlação de
pensamentos que expressam sua significação. Assim, somente compreendendo como o
amor e a imagem de masculino e feminino eram representados somos capazes de
interagir com aquela sociedade e suas particularidades, que ora se aproximam e
ora se distanciam de nossos valores e conceitos atuais.
Na
literatura religiosa medieval, os padres destacaram algumas ideias a respeito
da mulher. Foram desenvolvidos dois conceitos: de um lado, o da mulher má por
natureza e do outro o da mulher perfeita. A história de Adão e Eva foi
retomada. Muitos pensadores não acreditavam que Eva, assim como Adão, tivesse sido criada à imagem de Deus. Preferiam
considerá-la criação de Adão. Assim sendo, o homem seria dotado da imagem
divina, enquanto a mulher apresentaria apenas semelhança divina.
Uma
peça teatral escrita entre 1150 e 1170 nos mostra a forte influência religiosa.
Nesta peça, Adão é apresentado como se fosse vassalo de Deus. O Paraíso, nesse
sentido, simboliza o feudo. Eva aparece como
vassala de Adão e apenas como segunda vassala do Criador.
Satã
tenta iludir Adão sem obter sucesso. Ele permanece fiel a Deus como um vassalo
deve manter-se fiel ao Seu Senhor. Satã então seduz Eva. Ao fazê-lo, tentou romper a hierarquia reinante no Paraíso para
estabelecer, entre a mulher e o homem, e ao mesmo tempo entre o homem e Deus, a
igualdade, isto é, a desordem. Seduzida, Eva levou Adão ao pecado. Deus, como
um Senhor Feudal exemplar, expulsou os dois do Paraíso e confiscou o feudo
cedido a Adão. Este, magoado e cheio de rancor, culpou a mulher. A confissão da
pecadora para o público que assistia à encenação deveria confirmar a
inferioridade do sexo feminino. O homem, bom vassalo, conseguiu resistir ao
mal. A mulher, a parte débil da natureza humana, ao mesmo tempo seduzida e
sedutora, foi a causa da perdição de ambos. Hoje o mito de Adão e Eva tem novas
roupagens que procuram interpretar a mulher como sendo criada de uma parte
lateral do homem (a costela), logo ela está ao seu lado para acompanha-lo em
uma igualdade de direitos e deveres. Mas não era esta a configuração da mulher
no mundo medieval. Vejamos outra definição para o sexo feminino:
“Toda mulher se alegra ao pensar no pecado e
ao praticá-lo. Nenhuma é boa, se alguém assim acha. Porque a mulher boa é coisa
ruim e quase nada de bom existe nela” (monge do século XII).
Assim, o desejo, que é obra do diabo,
destrói o homem. A mulher, inspiradora do desejo, é por excelência agente do
mal, causa do desespero, da morte, da danação eterna do sexo masculino.
Novamente
os historiadores Philippe Aries e Georges Duby nos apresentam a mentalidade
dominante a respeito das mulheres no período retratado em O Senhor da Guerra, “A mulher não pode viver sem o homem, deve estar no
poder de um homem (...) Por natureza, pela natureza de seu corpo, ela é
obrigada ao pudor, ao retiro; deve preservar-se; deve, sobretudo, ser colocada
sob o governo dos homens, desde o nascimento até a morte, porque seu corpo é
perigoso. Em perigo, e fonte de perigo: por ele, o homem perde sua honra, por
ele corre o risco de ser desencaminhado, por essa armadilha tanto mais perigosa
quanto esta mais preparada para seduzir (autores citados, em História da Vida
Privada, vol. II, pág.518, Cia das Letras).
A partir das informações acima, façamos
um exercício de imaginar qual seria a reação social para um fato inusitado: um
senhor feudal, um nobre, requerer o direito senhorial de passar a primeira
noite com sua serva (até este fato, algo socialmente aceito), mas recusar
devolvê-la ao noivo, querer ele se casar e viver com esta mulher. Tal situação
evidentemente não só abalaria esta sociedade como provocaria uma total
desestruturação de toda a ordem; seria portanto
algo impensável e totalmente inaceitável por todos os grupos sociais (clero,
nobreza e servos).
A
relação entre os dois personagens, serva e senhor, são
elucidativas para melhor entendermos as noções do que era considerado público e privado nessa sociedade, onde o desejo, que é algo pessoal e intimo, torna-se público.
Na
cena da posse sexual da noiva, o Senhor Feudal não quer, em seu intimo, possuí-la pela força, pela violência, conforme o costume (o que é público), mas sim quer
conquistá-la, ser capaz de seduzi-la, pois está apaixonado por ela. Assim,
devido à enorme diferença social entre eles, ele é obrigado a usar um
expediente que é público (o costume) para poder aproximar-se e concretizar seu
desejo que é intimo (privado).
Esta
paixão, entretanto, torna-se recíproca: a camponesa não só aceita o “amor
cortês” do Senhor como também é agente ativa nesta relação:
“Eu também estou enfeitiçada”, respondendo
e ao mesmo tempo correspondendo à paixão recebida.
“Dizem que é uma coisa sagrada conquistar o coração
de um homem”.
Evidentemente que tal situação torna-se explosiva quando temos tantos
interesses em jogo. A função e o objetivo do Senhor Feudal vassalo de outro
senhor eram manter e estabelecer a paz nas terras do seu Senhor e é justamente
a relação amorosa dos protagonistas que faz desmoronar toda uma ordem social
pré-estabelecida não pelos homens, mas, pelo que
se acreditava, pelo
próprio Deus.
“(...) quando pela homenagem alguém se
tornava vassalus de um sênior, estabelecia-se um pseudo parentesco entre pai e
filho. Entre eles devia haver respeito e fidelidade. O vassalo, filho simbólico
geralmente mais jovem, precisa de terra e camponeses; o Senhor Feudal, pai
simbólico, geralmente mais experiente, precisa de guerreiros. Segundo o bispo
Fulbert de Chartres (século XI) entre outras coisas, o vassalo deve ser
‘Honesto para que não prejudique os direitos de justiça do seu Senhor ou outras
prerrogativas que interessem à honra a que pode pretender. Útil, para que não
cause prejuízo aos bens do seu Senhor.’ (em Hilário Franco Júnior – O
Feudalismo, Ed. Brasiliense, pág.45/46). Ou seja, fica evidente pela
passagem acima que o Senhor da Guerra não
cumpre com seu papel e as consequências são desastrosas para todos.
Finalizando, este filme deve ser visto
e revisto, principalmente por aqueles que gostam da História, não apenas como
entretenimento, algo que em nenhum momento o filme deixa de ser, mas o que é
melhor, como um instrumento que consegue ao mesmo tempo transmitir toda uma
gama de informações sobre um período que aparentemente está muito distante de
nós, mas que a partir de um olhar mais atento e apurado interage com nossa
maneira de pensar e ver o mundo.
Marcelo, quanto esmero há nessa resenha! Ela é mais que completa, 101%. Uma aula de história, de cinema, uma mostra de como um filme pode ser muito mais que entretenimento apenas. O ideal seria que todas as resenhas pudessem ser assim: informações não só da produção, em si, mas do contexto - de todos os contextos, como no caso desse filme. Valeu muito a pena ler. Mesmo.
ResponderExcluirMuito bom. Vê-se que foi feito por um professor de história eamante de cinema.
ResponderExcluirMuito grato pelos comentários, fico muito feliz principalmente levando-se em conta quem fez tal avaliação! Abraços
ResponderExcluirNesta resenha utilizei minha experiência em sala de aula. Trabalhei este filme no Ensino Médio público por volta de 1997. Foi muito bom! Hoje, infelizmente torna-se muito difícil desenvolver tal grau de aprofundamento.
ResponderExcluir