HARVEY /
MEU AMIGO HARVEY
Produção:
EUA / 1950
Direção: Henry Koster
Elenco: James Stewart / Josephine Hull
Duração:
104 min
Alguns anos atrás Spielberg
anunciou que faria uma refilmagem deste clássico. Para alegria de muitos o
projeto foi arquivado. Embora com certeza possamos afirmar que seria um filme
inferior ao original, creio que foi uma pena.
Ter esta história no século XXI com uma nova roupagem seria fascinante,
principalmente para as novas gerações. Meses atrás fiz o teste, coloquei o
filme para meu filho de nove anos e ele adorou, mesmo tendo que ler legendas e
assistir em preto e branco.
Trata-se
de uma fábula baseada em uma peça de Mary Chase, ganhadora
do Pulitzer. Nos anos 40, a peça foi encenada em Londres, tendo como atores principais os mesmos que anos
depois participaram da montagem cinematográfica: o inesquecível James Stewart,
aqui em um papel que o marcou no cinema, e Josephine Hull, vencedora do Oscar
de coadjuvante como irmã de Stewart.
A trama é simples e singela: um homem de meia idade, Elwood P. Dowd, tem como amigo imaginário um coelho de dois metros de
altura que só ele vê e que o acompanha em todos os lugares que frequenta, principalmente o bar do “Charlie”. Ele não apenas vê
como se comunica com o coelho. Este, por sua vez, além de ser o melhor amigo de Elwood o aconselha e
lhe dá ideias e ensinamentos. Destes diálogos aparentemente imaginários ficamos
na dúvida se a sabedoria que El apresenta é fruto de sua mente ou se realmente
há “outro ser” que é despertado sempre que necessário.
Nos
extras, há um depoimento de Stewart de 1990 onde ele narra a experiência
teatral de seis meses em Londres. Aos sábados havia uma matinê para crianças. Elas
iam ao teatro levadas pelos pais na expectativa de verem o enorme coelho. No
primeiro ato ele observava que elas se mexiam apreensivas nas cadeiras e
cochichavam com os genitores; no segundo ato sempre
havia uma criança que não resistia, se levantava e dizia: “Onde está o coelho?” Fico imaginando a decepção delas por não verem o
personagem em carne e osso. Em outro momento do seu depoimento, Stewart cita
que, após o filme, quando andava pela rua era
parado pelas pessoas que lhe perguntavam se o coelho estava ao seu lado. A
principio ele pensou ser gozação, mas depois notou que as pessoas levavam a
sério a pergunta. Também recebeu várias cartas onde os comentários eram “sabe,
eu gostaria de ter um amigo como você”, ou “às vezes meu amigo interior me
ajuda a tomar decisões”. Embora crianças menores com certeza tenham se
decepcionado, as maiores e principalmente as “bem maiores” identificaram-se com
Harvey, talvez porque ele esteja muito mais próximo de nós do que imaginamos.
Li em algumas resenhas e sinopses que Stewart faz o
personagem de um “beberrão” e de um “lunático. Trata-se de uma visão distorcida
e por demais simplista. Um olhar um pouco mais atento e observamos que as
constantes incursões de Elwood ao bar do Charlie em
nenhum momento o transformam em um alcoólatra e tampouco
ter um amigo imaginário, mesmo sendo um coelho gigante, o qualificam a ser
alienado. Quem assim o rotula não foi capaz de captar a essência da trama.
Há
uma frase dita pelo protagonista que talvez consiga explicitar o que foi citado
acima: “Lutei trinta e cinco anos com a
realidade e estou feliz por finalmente vencê-la”.
Esta frase genial sintetiza o filme. Se você que está lendo esta resenha
já se satisfez com este comentário, pare por aqui
e vá correndo ver este filme, que inclusive já foi lançado em blu-ray no
Brasil, mas... tem mais. Em determinado momento, ouvimos o seguinte: “Há anos minha mãe me disse: ‘Neste mundo, Wood,
você tem que ser muito esperto ou muito gentil’. Fui esperto por anos, mas
recomendo a gentileza”. Entretanto, ser gentil não foi suficiente, uma vez
que a irmã de Wood decide trancafiá-lo em um hospício, pois as “esquisitices”
do irmão estão afastando suas amigas, acabando com sua vida social e o pior,
dificultando seu trabalho em encontrar um pretendente à mão de sua desajeitada
e, politicamente correto falando, pouco bonita filha.
As
confusões e desdobramentos decorrentes desta decisão é o recheio da trama, mas
o mais importante e significativo são os momentos de puro lirismo e poesia
quando Wood se encontra com aqueles que gostam dele, aqueles que o vêem com
desconfiança e os que simplesmente não o levam a serio. Wood não tem inimigos.
Faz amizades com todos independentemente de classe social: um juiz, a esposa do
médico proprietário do hospício, o funcionário que vai sempre atrás dele com a
camisa de força, o taxista, seus familiares e até um simples porteiro. Para
todos estes personagens ele entrega um cartão com seu nome e endereço e os
convida para irem jantar em sua casa, para desespero da irmã, esta sim cada vez
mais próxima de um ataque de “nervos”.
Há
outro momento, que transcrevo abaixo, em que a
personagem da enfermeira procura saber no bar do Charlie quem é aquele sujeito que tanto espanto e fascínio provoca nas
pessoas. Enquanto o médico procura causas freudianas para explicar a loucura de
Wood, ela opta por seguir em outra direção:
“E o que o Sr. faz, Sr. Down?”
“Harvey e eu ficamos em bares, tomamos um ou dois drinks, ouvimos
músicas do jukebox. E após pouco tempo, todos olham para mim e sorriem.
Eles dizem: ‘Nós não sabemos o seu
nome, mas você é muito simpático’.
Harvey e eu ficamos muito enternecidos
nestes momentos especiais. Nós chegamos como estranhos e logo já temos amigos.
Eles se sentam à nossa mesa, bebem conosco, falam conosco e nos contam as
grandes, horríveis coisas que fizeram e as grandes, maravilhosas coisas que vão
fazer. Falam das suas esperanças e dos seus arrependimentos, dos seus amores e
dos seus ódios; e tudo é muito importante, pois ninguém vai a um bar contar
algo banal.
E aí... apresento Harvey a eles, e ele
é maior e melhor do que tudo que eles me contam.
E quando vão embora estão muito
impressionados.
As mesmas pessoas raramente voltam,
mas isto... é a inveja, querida.
Mesmo nos melhores de nós, há um pouco
de inveja. Uma pena, não é?”
Wood sabe ouvir, tem paciência, não ignora o estranho e diferente, tem o
seu coração aberto a todos, por isto é simpático e justamente por isso as
pessoas o transformam em confidente. Reparem que elas contam aquilo que fizeram
de horrível, pois o que irão fazer de bom e maravilhoso é sempre o porvir, mas
Wood não as julga. Enquanto nós, que vivemos
sempre presos na realidade há muito subjugada por nosso protagonista, julgamos
e condenamos os frequentadores de bares, ouvimos dele justamente o contrário
daquilo que imaginamos: “ninguém vai a um bar contar algo banal”. É justamente
esta sua sensibilidade de artista que o aliena do mundo da razão. Mas, basta
lembrarmos de O Alienista de Machado
de Assis para constatarmos que ver e conversar com um coelho de dois metros de
altura pode não ser loucura.
Voltar ao bar e a conversar
com Edwood é demonstrar que compactuam com a loucura, é perder o senso da
realidade. Aceitar o coelho gigante é aceitar ser livre em todos os sentidos e
é justamente isto que as pessoas não conseguem ser: livres da realidade. É esta
a inveja a que se refere nosso
simpático Elwood P. Down.
Mais uma resenha criadora, que abre mil atalhos, principalmente para a imaginação, com a qual os artistas conseguem criar realidades mais aceitáveis e interessantes que a realidade "comum". Eu gostaria de ver coelhos gigantes todos os dias de minha vida - e não das janelas de um sanatório... Gostaria de vê-los saltando pela rua, sob os olhos agradecidos não só das crianças, mas dos adultos.
ResponderExcluirConcordo plenamente. A imaginação superando a realidade é sempre algo cheio de beleza!
ResponderExcluirAcho que nada moderno pode superar a grandeza deste filme .É uma pena que esteja tão ruim a imagem ,mas mesmo assim vale a pena . Assisti mais de uma vez e recomendo.
ResponderExcluirConcordo plenamente. Grato pela leitura
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