FÚRIA / EUA / 1936
DIR:
Fritz Lang
Com: Spencer Tracy e Sylvia Sydney
/ 96min.
https://agrandeilusaocaminha.wordpress.com/2015/02/15/furia-1936/
Cliente 2 – “Não é possível haver uma lei que negue o
direito de se dizer o que se pensa, pelo menos em tempos de paz”.
Cliente 1 – “ Quem o diz”?
Cliente 2 – “A Constituição dos EUA”.
Cliente 1 – “Eu não acredito”.
Barbeiro – “Deveria lê-la. Ficará surpreso. Tive que lê-la
para tornar-me americano. Nunca teve que ler porque já nasceu aqui”.
O diálogo acima não foi retirado de nenhum defensor do Escola sem partido, projeto criado em 2004
por pessoas que não pertencem à Educação e, muito menos, por algum membro do partido do presidente eleito
do Brasil que encampou a censura como projeto educacional do seu futuro
governo. O diálogo ocorre em uma cena de um filme que não tem como narrativa
central a liberdade de cátedra do professor, mas que, nesta conversa com o
barbeiro - este sendo o alter ego do
diretor Fritz Lang (1890-1976) - exemplifica a
posição pela defesa do indivíduo e dos
princípios democráticos.
Lang foi mais um criador que fugiu do Nazismo para os EUA e
lá mesclou o cinema autoral com o comercial. Como já foi comentado neste blog,
desta fusão surgiu um cinema do mais alto nível, fortalecendo a indústria
cinematográfica e, ao mesmo tempo, propiciando
sucesso de crítica e público. No caso de Lang,
temos alguns elementos adicionais muito relevantes: ele é considerado um dos
pais do Expressionismo alemão, escola
que inovou com suas imagens cheias de sombras e luzes e um forte simbolismo
visual. Dentre vários sucessos, destaco
dois filmes em particular que sintetizam sua linguagem cinematográfica: Metropólis (1927) ainda muito atual como pioneiro da ficção científica, ao descrever
uma sociedade futurista (atual?) distópica e M, o vampiro de Dusseldorf (1931), sobre um assassino de crianças.
Em ambas as produções realizadas na Alemanha pré-nazista, as imagens
impactantes de Lang não apenas retratam a atmosfera que se vivia em forma de um
pesadelo urbano como também, de forma metafórica, antecipam a ascensão de
Hitler. O assassino de Dusseldorf, por exemplo, baseado em um personagem real,
é também uma alusão ao Fuher que dois
anos depois chegaria ao poder.
No mesmo dia em que foi convidado a chefiar o cinema do
regime nazista (em 1933), Lang foge da Alemanha para os EUA, transferindo para suas produções norte-americanas, a mesma
temática utilizada na Europa: o fatalismo no destino dos homens que, por mais
que lutem e tentem se adequar ao meio em que vivem, são vítimas de estruturas
coletivas (as massas) e jurídicas (o Estado) que impossibilitam sua inserção
como cidadão. Neste aspecto, os seus dois primeiros filmes nos EUA se destacam:
Fúria de 1936 e Vive-se uma só vez de 1937 com Henry Fonda e também Sylvia Sydney.
Em ambos os filmes, os personagens de Tracy e Fonda sofrem nas mãos das
Instituições e da sociedade que legitima e compactua com as falhas do Estado.
Vamos nos ater aqui ao
primeiro filme (não contém spoillers):
Spencer Tracy é o pacato cidadão, vive com dois irmãos,
adora amendoins (importante para a trama), é apaixonado por uma professora e
ambos querem se casar e ter uma casa. Ao contrário do que seria o usual, é a
noiva que se desloca para outra cidade com um emprego melhor. Ele fica com os irmãos e também consegue
melhorar de vida ao adquirir um posto de gasolina. Com esse trabalho, retira os
irmãos da criminalidade.Tudo
caminha tão bem que, tal como em um filme de Hitchcock, temos a certeza
absoluta que algo de muito ruim irá ocorrer, e, realmente ocorre.
Em viagem para se encontrar com a noiva depois de tanto
tempo de ausência, Tracy é preso e acusado de ter participado de um sequestro.
Enquanto está sendo investigado, corre o boato pela comunidade que o homem que
está preso é o culpado. (As cenas simultâneas entre mulheres espalhando o boato
e galinhas cacarejando são metaforicamente brilhantes.)
A comunidade então se organiza, pois não aceita a demora na
aplicação da lei. Querem “justiça”, mesmo que seja de forma justiceira, através
do linchamento. O xerife eleito pela comunidade tenta defender seu investigado,
reconhece os “cidadãos de bem” que ignoram a lei, ao mesmo tempo em que apela
ao governador e à guarda nacional. Pressionado por políticos, o governador
recua em sua ajuda. Como consequência, o investigado, que é inocente, é
linchado. Na impossibilidade de invadirem a cela, a cadeia é incendiada.
Os planos em close dos linchadores são impactantes. As
expressões de ódio e ao mesmo tempo de enorme prazer com o prisioneiro sendo
queimado vivo retratam como poucos a histeria coletiva das massas.
https://medium.com/revista-salsaparrilha/os-anjos-maus-da-nossa-natureza-904cc48d7aba
Há duas interpretações nestas
primeiras obras de Lang nos EUA: a primeira, a de que ele continuava criticando
o nazismo e a sociedade alemã que cegamente seguia um líder/mito; a segunda, a
de que um cineasta estrangeiro que recentemente havia adquirido a cidadania
norte-americana, não caiu em seu “canto dos cisnes”. Nestes filmes, Lang
estaria apontando o dedo para as comunidades conservadoras e também fascistas
dos EUA que vivem à margem de sua Constituição, como diz o barbeiro ao seu
cliente ignorante: “Tive que lê-la (a Constituição) para tornar-me americano.
Você nunca teve que ler porque já nasceu aqui”.
Além da amostragem nazista pré-segunda guerra mundial,
temos nestes filmes o espírito de uma época nos EUA: os anos de enorme
turbulência com o crack de 1929 e
também a enorme ascendência da Ku Klux Klan, com seus linchamentos de negros,
que se estenderam até os anos 60 do século passado. Assim, ao expor de forma
tão precisa o momento que se vivia, Lang denuncia que a ameaça à Democracia
está presente tanto na Alemanha totalitária como no país ícone das liberdades
individuais.
A fala final do filme também é emblemática:
independentemente do linchamento ser consumado ou não, a intenção dos seus
agressores já os transforma em culpados. Acima das próprias leis, são os
preceitos morais que determinam a consciência de nossos atos.
Oitenta e dois anos depois, a obra de Lang e esse filme em
particular dialogam ainda com mais fúria sobre nossas cabeças.
Saber mais:
https://piaui.folha.uol.com.br/cinema-brasileiro-e-fritz-lang-um-cineasta-exemplar/ (de 01 de novembro de 2018).
https://medium.com/revista-salsaparrilha/os-anjos-maus-da-nossa-natureza-904cc48d7aba ( de
14 de agosto de 2015).
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário