domingo, 10 de março de 2019

FILME: FÚRIA / EUA / 1936


FÚRIA / EUA / 1936
DIR: Fritz Lang
Com: Spencer Tracy e Sylvia Sydney / 96min.


            https://agrandeilusaocaminha.wordpress.com/2015/02/15/furia-1936/

Cliente 1 – “Deixe-me lhe dizer professor, se vocês, os jovens gênios do Liceu enchem as cabeças das crianças de ideias radicais, nós, os pais temos que ter uma lei”.
Cliente 2 – “Não é possível haver uma lei que negue o direito de se dizer o que se pensa, pelo menos em tempos de paz”.
Cliente 1 ­– “ Quem o diz”?
Cliente 2 – “A Constituição dos EUA”.
Cliente 1 – “Eu não acredito”.
Barbeiro – “Deveria lê-la. Ficará surpreso. Tive que lê-la para tornar-me americano. Nunca teve que ler porque já nasceu aqui”.
       
    O diálogo acima não foi retirado de nenhum defensor do Escola sem partido, projeto criado em 2004 por pessoas que não pertencem à Educação e, muito menos, por algum membro do partido do presidente eleito do Brasil que encampou a censura como projeto educacional do seu futuro governo. O diálogo ocorre em uma cena de um filme que não tem como narrativa central a liberdade de cátedra do professor, mas que, nesta conversa com o barbeiro - este sendo o alter ego do diretor Fritz Lang (1890-1976) - exemplifica a posição pela defesa do indivíduo e dos princípios democráticos.

    Lang foi mais um criador que fugiu do Nazismo para os EUA e lá mesclou o cinema autoral com o comercial. Como já foi comentado neste blog, desta fusão surgiu um cinema do mais alto nível, fortalecendo a indústria cinematográfica e, ao mesmo tempo, propiciando sucesso de crítica e público. No caso de Lang, temos alguns elementos adicionais muito relevantes: ele é considerado um dos pais do Expressionismo alemão, escola que inovou com suas imagens cheias de sombras e luzes e um forte simbolismo visual. Dentre vários sucessos, destaco dois filmes em particular que sintetizam sua linguagem cinematográfica: Metropólis (1927) ainda muito atual como pioneiro da ficção científica, ao descrever uma sociedade futurista (atual?) distópica e M, o vampiro de Dusseldorf (1931), sobre um assassino de crianças. Em ambas as produções realizadas na Alemanha pré-nazista, as imagens impactantes de Lang não apenas retratam a atmosfera que se vivia em forma de um pesadelo urbano como também, de forma metafórica, antecipam a ascensão de Hitler. O assassino de Dusseldorf, por exemplo, baseado em um personagem real, é também uma alusão ao Fuher que dois anos depois chegaria ao poder.

    No mesmo dia em que foi convidado a chefiar o cinema do regime nazista (em 1933), Lang foge da Alemanha para os EUA, transferindo para suas produções norte-americanas, a mesma temática utilizada na Europa: o fatalismo no destino dos homens que, por mais que lutem e tentem se adequar ao meio em que vivem, são vítimas de estruturas coletivas (as massas) e jurídicas (o Estado) que impossibilitam sua inserção como cidadão. Neste aspecto, os seus dois primeiros filmes nos EUA se destacam: Fúria de 1936 e Vive-se uma só vez de 1937 com Henry Fonda e também Sylvia Sydney. Em ambos os filmes, os personagens de Tracy e Fonda sofrem nas mãos das Instituições e da sociedade que legitima e compactua com as falhas do Estado.

    Vamos nos ater aqui ao primeiro filme (não contém spoillers):

    Spencer Tracy é o pacato cidadão, vive com dois irmãos, adora amendoins (importante para a trama), é apaixonado por uma professora e ambos querem se casar e ter uma casa. Ao contrário do que seria o usual, é a noiva que se desloca para outra cidade com um emprego melhor. Ele fica com os irmãos e também consegue melhorar de vida ao adquirir um posto de gasolina. Com esse trabalho, retira os irmãos da criminalidade.Tudo caminha tão bem que, tal como em um filme de Hitchcock, temos a certeza absoluta que algo de muito ruim irá ocorrer, e, realmente ocorre.
          
    Em viagem para se encontrar com a noiva depois de tanto tempo de ausência, Tracy é preso e acusado de ter participado de um sequestro. Enquanto está sendo investigado, corre o boato pela comunidade que o homem que está preso é o culpado. (As cenas simultâneas entre mulheres espalhando o boato e galinhas cacarejando são metaforicamente brilhantes.)
         
    A comunidade então se organiza, pois não aceita a demora na aplicação da lei. Querem “justiça”, mesmo que seja de forma justiceira, através do linchamento. O xerife eleito pela comunidade tenta defender seu investigado, reconhece os “cidadãos de bem” que ignoram a lei, ao mesmo tempo em que apela ao governador e à guarda nacional. Pressionado por políticos, o governador recua em sua ajuda. Como consequência, o investigado, que é inocente, é linchado. Na impossibilidade de invadirem a cela, a cadeia é incendiada.
          
    Os planos em close dos linchadores são impactantes. As expressões de ódio e ao mesmo tempo de enorme prazer com o prisioneiro sendo queimado vivo retratam como poucos a histeria coletiva das massas.



https://medium.com/revista-salsaparrilha/os-anjos-maus-da-nossa-natureza-904cc48d7aba


    Há duas interpretações nestas primeiras obras de Lang nos EUA: a primeira, a de que ele continuava criticando o nazismo e a sociedade alemã que cegamente seguia um líder/mito; a segunda, a de que um cineasta estrangeiro que recentemente havia adquirido a cidadania norte-americana, não caiu em seu “canto dos cisnes”. Nestes filmes, Lang estaria apontando o dedo para as comunidades conservadoras e também fascistas dos EUA que vivem à margem de sua Constituição, como diz o barbeiro ao seu cliente ignorante: “Tive que lê-la (a Constituição) para tornar-me americano. Você nunca teve que ler porque já nasceu aqui”.
       
    Além da amostragem nazista pré-segunda guerra mundial, temos nestes filmes o espírito de uma época nos EUA: os anos de enorme turbulência com o crack de 1929 e também a enorme ascendência da Ku Klux Klan, com seus linchamentos de negros, que se estenderam até os anos 60 do século passado. Assim, ao expor de forma tão precisa o momento que se vivia, Lang denuncia que a ameaça à Democracia está presente tanto na Alemanha totalitária como no país ícone das liberdades individuais.
    
    A fala final do filme também é emblemática: independentemente do linchamento ser consumado ou não, a intenção dos seus agressores já os transforma em culpados. Acima das próprias leis, são os preceitos morais que determinam a consciência de nossos atos.
     
    Oitenta e dois anos depois, a obra de Lang e esse filme em particular dialogam ainda com mais fúria sobre nossas cabeças.
          

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