domingo, 10 de março de 2019

FILME: O VALOR DE UM HOMEM / FRANÇA / 2015


O VALOR DE UM HOMEM / FRANÇA / 2015
DIR: Stéphane Brizé
Com: Vincent Lindon / Dur: 93min.




    
     Assim como Dois dias, uma noite (França / 2014) e Eu, Daniel Blake (Ing / 2016), O valor de um homem (França / 2015) segue temática semelhante: a colocação do homem / trabalhador em um mundo do trabalho em constante modificação, e, como o próprio título aponta e questiona, qual o valor deste homem/trabalhador neste contexto?
          
     Ao contrário do filme britânico, que é convencional em sua forma e estética, em O valor de um homem estamos diante de um formato documental. A narrativa, os closes e os planos são tão crus e realistas que não sugerem, em momento algum, que estamos diante de uma obra de ficção. A sensação é a de que os fatos realmente estão ocorrendo enquanto assistimos. A excelente atuação de Vincent Lindon (ganhador da Palma de Ouro em Cannes) reforça ainda mais esta impressão. Apesar da crítica considerá-lo maniqueísta, apresentando apenas a visão ou o ponto de vista do trabalhador desempregado e, segundo essas críticas, o filme ser “simplista” por não aprofundar uma situação complexa, acredito ser justamente essa posição da direção e roteiro que, ao invés de subtrair, multiplicam as qualidades desta produção.
     
     Thierry é um ferramenteiro de meia idade e bastante experiente em seu ofício, mas que está desempregado faz meses e vê reduzidas suas reservas financeiras. Entretanto, longe de serem qualidades tais atributos tornam-se entraves. Sua busca por emprego faz com que qualquer pessoa independentemente de época e lugar se identifique com o personagem. Nas entrevistas a câmera foca apenas em Thierry com suas falas e, mais do que isso, suas expressões de agonia e tensão diante dos comentários de seus interlocutores, dos quais ouvimos apenas suas vozes. Tal como em uma entrevista realizada por Skype onde após uma série de perguntas sobre aceitação de diminuição salarial e flexibilidade de horário com críticas ao curriculum do entrevistado, a voz finaliza dizendo “Daremos uma resposta em até duas semanas, mas já lhe adianto que a possibilidade de contratá-lo é remota”.
     
     Assim, o filme persiste na tentativa quixotesca do protagonista conseguir novamente um posto de trabalho. Ficamos sabendo que ele e vários outros trabalhadores realizaram por indicação do Estado um curso que, ao invés de acrescentar maiores possibilidades de contratação, teve, na verdade, efeito contrário. Sabemos também que o protagonista não quer mais ficar lutando judicialmente. Sente-se cansado de continuar enfrentando o poder patronal e se distancia de colegas que estavam na mesma situação. Assim como Daniel Blake, o roteiro não é panfletário: o movimento sindical é colocado à margem dessa engrenagem. Por isso, discordo daqueles que o classificam como um filme maniqueísta. Não se trata de simplesmente definir patrões contra trabalhadores defendidos por sindicatos ou centrais, ou da eterna luta de classes (o que muitos ainda acreditam não existir), mas sim de focar em um olhar seco e árido sobre todos aqueles que se encontram desamparados e sozinhos diante de forças que os oprimem. A denúncia maior está justamente na quebra dos laços de solidariedade entre as pessoas.
     
     A sensação de vazio e desesperança são ampliadas com um personagem que não expressa em palavras suas angústias. Esperamos que ele as expresse nas cenas com a esposa, mas esse não é o objetivo. Ela é também afetada e cúmplice desse sofrimento, comunicando sua dor com silêncio.
     
     A angústia é apenas quebrada nas cenas de aulas de dança entre o casal e com o filho. Como “desgraça pouca é bobagem”, ele é um adolescente inteligente, mas com necessidades especiais. Assim como o pai, o jovem também é pressionado. Seu esforço e dedicação em estudar não estão sendo suficientes para lhe garantir uma vaga na faculdade de engenharia.
     
   O sistema financeiro complica ainda mais a situação de Thierry e sua família. Exemplo disso é a fala do gerente do banco: ”O senhor pode vender seu apto para quitar seus débitos e ter um respiro” (mesmo sendo o único bem que possuem e a poucos anos da quitação) ou “O sr. já pensou em adquirir um seguro de vida? Já imaginou como sua família irá ficar, caso o sr. falte”? Resumindo, às vezes é necessário que alguém morra para que a situação possa, ao menos provisoriamente, melhorar.
     
     É neste momento que entramos na segunda etapa do filme. Sem qualquer aviso prévio, depois de ter passado por várias humilhações, incluindo o ápice de ser avaliado pessoalmente por várias pessoas (também pretendentes à vaga de trabalho), e ser considerado “pouco esforçado”, com “voz baixa”, “sem confiança”, etc, nosso protagonista aparece vestido de terno e gravata, com um crachá e rádio na mão. O posto conquistado de segurança em uma rede de supermercados está muito distante de sua formação e daquilo que, a princípio, pretendia. Aqui a trama passa por uma inversão de papéis: Thierry tem uma função de controle e defesa do contratante, do patrão e, ao mesmo tempo, torna-se uma espécie de “capitão do mato” para aqueles que serão vigiados. É justamente neste paradoxo que o conflito interno se torna ainda mais violento. O filme não toma a defesa daqueles que roubam, desde um rapaz que dá uma desculpa improvável para seu ato, até um senhor que nos comove por de fato nos convencer que roubou um alimento por necessidade. Não há, entretanto, a pretensão de acolher os que roubam, independentemente dos motivos que os levaram a tal ato. Apesar do constrangimento inerente à sua função, Thierry continua a exercer com profissionalismo o que que lhe foi estipulado, mas as coisas realmente se complicam quando a fiscalização não se restringe apenas aos consumidores, mas também aos funcionários. A crítica mais direta às empresas e ao poder que elas exercem sobre as pessoas, utilizando meios lícitos ou ilícitos, está justamente no momento em que Thierry ouve instruções para observar os caixas com muita atenção, pois, às vezes, os funcionários não fazem (deliberadamente ou não) a leitura de barras de algum produto. Como a maioria não aderiu ao plano de aposentadorias antecipadas, o gerente pretendia aumentar a lucratividade. Qualquer “descuido” dos empregados seria muito bem recebido pela política da empresa.
     
     Como reagir diante disto? Thierry observa que qualquer um poderia estar naquela situação. Em um momento, seus “colegas” e chefias estão todos reunidos para comemorar a aposentadoria de uma funcionária, em seguida, estão, cada um a seu modo, degladiando-se por uma melhor colocação ou para simplesmente manterem seus empregos e a própria sobrevivência.
     
     Tragédias se sucedem neste meio culminando com um clímax previsível, mas que nem por isto diminui o impacto deste filme. Em O valor de um homem o big brother previsto por Orwell não está no Estado opressor e onipresente, mas sim no empregador que utiliza qualquer artifício para propagar seus valores e seu poder. Quanto a Thierry, resta a pergunta que insiste em não se calar: “Qual o valor de um homem”?



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