O VALOR DE UM HOMEM /
FRANÇA / 2015
DIR: Stéphane Brizé
Com: Vincent Lindon /
Dur: 93min.
Assim como Dois dias, uma noite (França / 2014) e Eu, Daniel Blake (Ing / 2016), O valor de um homem (França / 2015)
segue temática semelhante: a colocação do homem / trabalhador em um mundo do
trabalho em constante modificação, e, como o próprio título aponta e questiona,
qual o valor deste homem/trabalhador neste contexto?
Ao contrário do filme britânico, que é convencional em sua
forma e estética, em O valor de um homem
estamos diante de um formato documental. A narrativa, os closes e os planos são
tão crus e realistas que não sugerem, em momento algum, que estamos diante de
uma obra de ficção. A sensação é a de que os fatos realmente estão ocorrendo
enquanto assistimos. A excelente atuação de Vincent Lindon (ganhador da Palma
de Ouro em Cannes) reforça ainda mais esta impressão. Apesar da crítica considerá-lo
maniqueísta, apresentando apenas a visão ou o ponto de vista do trabalhador
desempregado e, segundo essas críticas, o filme ser “simplista” por não
aprofundar uma situação complexa, acredito ser justamente essa posição da
direção e roteiro que, ao invés de subtrair, multiplicam as qualidades desta
produção.
Thierry é um ferramenteiro de meia idade e
bastante experiente em seu ofício, mas que está desempregado faz meses e vê
reduzidas suas reservas financeiras. Entretanto, longe de serem qualidades tais
atributos tornam-se entraves. Sua busca por emprego faz com que qualquer pessoa
independentemente de época e lugar se identifique com o personagem. Nas entrevistas
a câmera foca apenas em Thierry com suas falas e, mais do que isso, suas
expressões de agonia e tensão diante dos comentários de seus interlocutores,
dos quais ouvimos apenas suas vozes. Tal como em uma entrevista realizada por Skype onde após uma série de perguntas sobre aceitação de diminuição salarial
e flexibilidade de horário com críticas ao curriculum do entrevistado, a voz
finaliza dizendo “Daremos uma resposta em
até duas semanas, mas já lhe adianto que a possibilidade de contratá-lo é
remota”.
Assim, o filme persiste na tentativa
quixotesca do protagonista conseguir novamente um posto de trabalho. Ficamos
sabendo que ele e vários outros trabalhadores realizaram por indicação do
Estado um curso que, ao invés de acrescentar maiores possibilidades de
contratação, teve, na verdade, efeito contrário. Sabemos também que o
protagonista não quer mais ficar lutando judicialmente. Sente-se cansado de
continuar enfrentando o poder patronal e se distancia de colegas que estavam na
mesma situação. Assim como Daniel Blake, o
roteiro não é panfletário: o movimento sindical é colocado à margem dessa
engrenagem. Por isso, discordo daqueles que o classificam como um filme
maniqueísta. Não se trata de simplesmente definir patrões contra trabalhadores
defendidos por sindicatos ou centrais, ou da eterna luta de classes (o que
muitos ainda acreditam não existir), mas sim de focar em um olhar seco e árido
sobre todos aqueles que se encontram desamparados e sozinhos diante de forças
que os oprimem. A denúncia maior está justamente na quebra dos laços de
solidariedade entre as pessoas.
A sensação de vazio e desesperança são
ampliadas com um personagem que não expressa em palavras suas angústias.
Esperamos que ele as expresse nas cenas com a esposa, mas esse não é o
objetivo. Ela é também afetada e cúmplice desse sofrimento, comunicando sua dor
com silêncio.
A angústia é apenas quebrada nas cenas de
aulas de dança entre o casal e com o filho. Como “desgraça pouca é bobagem”,
ele é um adolescente inteligente, mas com necessidades especiais. Assim como o
pai, o jovem também é pressionado. Seu esforço e dedicação em estudar não estão
sendo suficientes para lhe garantir uma vaga na faculdade de engenharia.
O sistema financeiro complica ainda mais a
situação de Thierry e sua família. Exemplo disso é a fala do gerente do banco: ”O senhor pode vender seu apto para quitar
seus débitos e ter um respiro” (mesmo sendo o único bem que possuem e a
poucos anos da quitação) ou “O sr. já
pensou em adquirir um seguro de vida? Já imaginou como sua família irá ficar,
caso o sr. falte”? Resumindo, às vezes é necessário que alguém morra para
que a situação possa, ao menos provisoriamente, melhorar.
É neste momento que entramos na segunda
etapa do filme. Sem qualquer aviso prévio, depois de ter passado por várias
humilhações, incluindo o ápice de ser avaliado pessoalmente por várias pessoas
(também pretendentes à vaga de trabalho), e ser considerado “pouco esforçado”,
com “voz baixa”, “sem confiança”, etc, nosso protagonista aparece vestido de
terno e gravata, com um crachá e rádio na mão. O posto conquistado de segurança
em uma rede de supermercados está muito distante de sua formação e daquilo que,
a princípio, pretendia. Aqui a trama passa por uma inversão de papéis: Thierry
tem uma função de controle e defesa do contratante, do patrão e, ao mesmo tempo,
torna-se uma espécie de “capitão do mato”
para aqueles que serão vigiados. É justamente neste paradoxo que o conflito
interno se torna ainda mais violento. O filme não toma a defesa daqueles que
roubam, desde um rapaz que dá uma desculpa improvável para seu ato, até um
senhor que nos comove por de fato nos convencer que roubou um alimento por
necessidade. Não há, entretanto, a pretensão de acolher os que roubam,
independentemente dos motivos que os levaram a tal ato. Apesar do
constrangimento inerente à sua função, Thierry continua a exercer com
profissionalismo o que que lhe foi estipulado, mas as coisas realmente se
complicam quando a fiscalização não se restringe apenas aos consumidores, mas
também aos funcionários. A crítica mais direta às empresas e ao poder que elas
exercem sobre as pessoas, utilizando meios lícitos ou ilícitos, está justamente
no momento em que Thierry ouve instruções para observar os caixas com muita
atenção, pois, às vezes, os funcionários não fazem (deliberadamente ou não) a
leitura de barras de algum produto. Como a maioria não aderiu ao plano de
aposentadorias antecipadas, o gerente pretendia aumentar a lucratividade. Qualquer
“descuido” dos empregados seria muito bem recebido pela política da empresa.
Como reagir diante disto? Thierry observa
que qualquer um poderia estar naquela situação. Em um momento, seus “colegas” e
chefias estão todos reunidos para comemorar a aposentadoria de uma funcionária,
em seguida, estão, cada um a seu modo, degladiando-se por uma melhor colocação
ou para simplesmente manterem seus empregos e a própria sobrevivência.
Tragédias se sucedem neste meio culminando
com um clímax previsível, mas que nem
por isto diminui o impacto deste filme. Em O
valor de um homem o big brother
previsto por Orwell não está no Estado opressor e onipresente, mas sim no
empregador que utiliza qualquer artifício para propagar seus valores e seu
poder. Quanto a Thierry, resta a pergunta que insiste em não se calar: “Qual o valor de um homem”?
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