domingo, 10 de março de 2019

FILME: O DELATOR / EUA / 1935


O DELATOR / EUA / 1935
Dir: John Ford
Com: Victor McLaglen / Hearther Angel / 91 min.





John Ford é considerado pela crítica especializada o precursor na linguagem cinematográfica da nação norte-americana. Obteve tal título principalmente através dos faroestes onde narrava o surgimento dos EUA nos eternos confrontos com os índios e a expansão e conquista do Oeste. Entretanto, seus filmes abarcam vários gêneros: cinebiografias, dramas de guerra, dramas históricos, etc. Em todos, algumas características se sobrepõem: seus personagens são seres taciturnos, marginalizados e bêbados. Em O delator não é diferente. Produzido em 1935 com poucos recursos, o filme não era bem-vindo pelos produtores e teve que ser produzido a fórceps. Ford não tinha à mão cenários e acabou colocando em prática imagens herdadas do expressionismo alemão, com destaque para a iluminação e o forte jogo de sombras através das névoas, intensificadas pelo fato de toda ação do filme ocorrer em uma noite/madrugada. Neste trabalho, Ford evidencia a forte influência de diretores alemães como F.W.Murnau (Nosferatu / 1922) e Fritz Lang (Metropólis / 1927). Assim, meio sem querer, tais limitações orçamentárias acabaram construindo um clássico e uma obra-prima do cinema nos anos 30, ainda hoje impactante.
         
     O protagonista é fisicamente parecido com John Wayne, ator preferido de Ford e destaque em várias de suas produções. Entretanto, as semelhanças se iniciam e param no tamanho grandalhão do personagem. Ao contrário de Wayne, com seu tipo durão, temos em Victor McLaglen (Gypo Nolan) o sujeito atormentado emocionalmente e com um baixo desenvolvimento cognitivo, características tão bem exploradas pelo ator que o levaram a vencer o Oscar. O filme também foi agraciado com a estatueta nas categorias de diretor (o primeiro dos quatro vencidos por Ford), trilha sonora original (Max Steiner) e roteiro adaptado.
          
     A ação se passa em 1922, na tumultuada Irlanda e sua luta pela emancipação do domínio britânico. Gypo era um membro da resistência que, depois de uma ação atabalhoada, é expulso da organização, escapando por pouco de ser punido com a morte. Assim torna-se um pária em sua própria pátria: é renegado pelos dominadores ingleses e pelo seu próprio povo, onde quem não é membro do movimento político armado é, ao menos, simpatizante. Suas primeiras imagens mostram um homem perdido em névoas, perseguido pelo cartaz que coloca a prêmio, a cabeça de seu amigo, procurado pelos ingleses.

     E é justamente esta premiação que o irá levar à delação do título e, por consequência, ao maior crime que poderia ser cometido naquela estrutura social na qual ele pertence.
          
     O filme é cheio de simbolismo católico, religião processada por Ford com sua origem irlandesa. Assim temos: o cartaz que aparece várias vezes e insiste em responsabilizar o protagonista (tal como o galo que canta representando a traição a Cristo), a prostituta de bom coração que conclama o perdão, a representação do Judas traidor, as imagens católicas, a paga pela traição e a entrega do dinheiro (momento no qual o próprio pagador recusa-se a colocar sua mão). Em uma cena marcante, a mãe que perde o filho, mas, tal como uma Nossa Senhora, tudo perdoa. Assim, a delação para Ford é um pretexto religioso para obtermos a redenção de nossos pecados.

     É na figura da prostituta que Gypo é levado a trair. O dinheiro na verdade não é para ele, mas sim para tirar daquela vida miserável a mulher que ele ama e que também o ama. Entretanto, as coisas fogem do controle. Enquanto uns velam a morte da vítima da delação, outros, sob o comando de um embriagado Gypo divertem-se às custas do dinheiro que é fruto do pecado e gasto de forma também pecaminosa (com bebidas, mulheres e comida). As cenas paralelas são interessantes, enquanto temos aqueles que velam seus mortos vítimas da luta por independência e liberdade, temos aqueles que, alienados a tudo, apenas buscam a satisfação de seus desejos imediatos e mundanos.
          
     Gypo não demonstra arrependimento por ter traído o amigo, antes finge dor, como na cena em que vai no velório e longe de afastar suspeitas acaba ainda mais por se complicar devido sua falta de inteligência. Apenas diante do cartaz com a recompensa (o nosso galo cristão), conseguimos encontrar um pouco de dilema moral pelo seu ato. Apesar da constante embriaguez, ele não reluta na tentativa de salvar a própria pele, ao acusar e tentar levar à morte outro inocente, um velho e doente alfaiate. Assim, Gypo é um personagem dotado de extrema humanidade, que acaba por contrastar com o sentido religioso do filme, onde o perdão será o último estágio de sua redenção.
         
     Ford disse que foi o filme mais fácil de ser filmado em sua vasta carreira. Longe do estereótipo de força, tão evidente em sua filmografia, foi justamente na fraqueza de seu protagonista, em O delator, que Ford talvez tenha conseguido seu momento mais singelo e introspectivo de toda sua brilhante carreira.



2 comentários:

  1. Vi o filme e li o livro. A análise é perfeita. Uma história que nos incomoda e nos perturba. A cada cena nos sentimos quase obrigados a perguntar: eu seria capaz de fazer isso? Tem o mesmo impacto de "Crime e castigo", obra que, segundo Woody Allen, foi importantíssima na sua formação de homem e de artista - o que se pode ver sem nenhum esforço no admirável "Match point".

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  2. Muito boa a analogia com CRIME E CASTIGO e o filme do ALLEN. Um tema que realmente nos incomoda. Grande abraço!

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