terça-feira, 25 de agosto de 2020

AS CONFISSÕES DE SCHMIDT - EUA / 2002

                  http://www.adorocinema.com/filmes/filme-28420/fotos/detalhe/?cmediafile=21157370

AS CONFISSÕES DE SCHMIDT / ABOUT SCHMIDT

EUA / 2002 / DUR: 125’

Dir: Alexander Payne

Elenco: Jack Nicholson, Kathy Bates, Hope Davis, Dermot Mulroney.

         “O que vou dizer quando parar, olhar para trás e perguntar: Que diferença eu fiz? O que fiz na vida de alguém? O mundo está melhor por minha causa”?

          Essas são as perguntas que Warren Schmidt, um recém- aposentado de 66 anos faz a si próprio durante a sua trajetória de vida que passamos a acompanhar em suas confissões que nada mais são do que cartas redigidas a um garoto de 6 anos da Tanzânia por ele adotado com uma ajuda mensal de vinte e dois dólares a uma ONG.

        Conhecemos melhor nosso protagonista na cena inicial  em que está sentado próximo a uma mesa vazia de escritório e acompanha pacientemente os últimos minutos e segundos que o aproximam da aposentadoria. É um sujeito calmo, pacato e pacífico, - a exata antítese de tantos personagens magistralmente interpretados por Jack Nicholson em seu estilo histriônico e compulsivo de interpretação. Aqui ele é contido na fala e nos gestos, em um papel que lhe deu mais uma indicação ao Oscar (é a ator com maior número de indicações: doze) e a conquista do Globo de Ouro de melhor ator.

        Warren é o americano médio e típico pertencente a uma época em que o sucesso profissional era  manter-se no mesmo emprego por mais de trinta anos. Sim, essa fase do capitalismo existiu no século passado! Aos poucos, conhecemos sua vida: ele respeita a esposa mas se pergunta quem é ela depois de quarenta e dois anos de casados e que o irrita em tudo que faz,  sua única filha reside longe  e está prestes a se casar com um sujeito “abaixo  dela”, tem a dificuldade em se adaptar à vida de aposentado e a raiva em constatar que seu substituto na empresa de seguros é um sujeito incapaz.

      Todos estes sentimentos explodem, quando repentinamente, ele passa também a conviver com a viuvez: do distanciamento surge a saudade, a valorização e o respeito, a decepção e a ira seguido do perdão redentor em um belo plano noturno com Schmidt sentado no teto do trailer comprado pela mulher. A partida da esposa o aproxima de um humanismo que ele próprio desconhecia possuir. É nesse momento que ele inicia um road movie a lugares marcantes em sua vida: a casa onde nasceu e viveu a primeira infância e que hoje é uma loja de pneus, a Universidade onde na juventude ele sonhou em ser um dia capa de uma revista de negócios. Após um incidente com um casal solicito e atencioso “além da conta” Schmidt chega à casa da futura sogra da filha (Kathy Bates em mais uma grande atuação).

        Após vários momentos engraçados (a cena do colchão d’água e do ensaio do casamento são hilárias), temos o casamento e o retorno à casa. Entretanto, Schmidt retorna muito diferente de quando partiu. A carta resposta de seu “filho adotivo” de seis anos escrita por uma irmã cristã o leva às lágrimas e à compreensão da diferença que ele fez e faz na vida de alguém. A interpretação de Nicholson apenas neste nesse momento já vale o ingresso!

          As confissões de Schmidt é o relato singelo de um homem comum, de alguém que demorou muito tempo para conhecer a si próprio. Só isto já daria um bom roteiro (que é melhor que o livro homônimo), mas, temos Jack Nicholson sempre em brilhante atuação e Kathy Bates que com apenas quinze minutos de interpretação recebeu indicação a melhor atriz coadjuvante.

          Acompanhar a vida de um homem refletindo sobre o significado e sentido de uma existência é um tema que transcende nossa existência.

QUANDO SÓ O CORAÇÃO VÊ / EUA / 1965

 

                                                      https://pt.fulltv.tv/a-patch-of-blue.html

QUANDO SÓ O CORAÇÃO VÊ / A PATCH OF BLUE

EUA / 1965 / DUR: 105’

DIR: Guy Green

Elenco: Sidney Poitier, Shelley Winters, Elizabeth Hartman, Wallace Ford

Baseado na obra Be ready with bells and drums / 1961 / Elizabeth Kata.

        Talvez ao lado de O sol é para todos (To kill a Mockinbird / 1962 - resenhado neste blog), este Quando só o coração vê (EUA/1965), seja o filme mais sensível e delicado da década de 60. Ao contrário do primeiro com ênfase centrada no conflito racial no sul dos EUA nos anos 30, este  é contemporâneo à aprovação da lei dos direitos civis de 1964. Entretanto, aqui a temática racial não é o aspecto central, mas sim uma espécie de “pano de fundo” dos problemas da protagonista cega e de sua relação com um homem negro.

          Sidney Poitier, um dos grandes atores da velha Hollywood, personificou em seus filmes o papel do “negro de bem”, do bom moço de classe média que se incorpora no mundo dos brancos em um país dividido racialmente. Aceito pelo establishment foi contestado pelos movimentos negros da época. Apesar de tentar fugir dessa  caracterização em seus filmes, Poitier ficou marcado justamente por isso . Aqui, interferiu no roteiro baseado em obra de Elizabeth Kata, de maneira que o filme explorasse muito mais a relação amorosa entre os protagonistas do que a questão racial.

          Selina (Elizabeth Hartman) é a personagem do abandono, pertence a uma baixa classe social, vive praticamente em um único cômodo com sua mãe Rose-Ann (Shelley Winters, que conquistou seu segundo Oscar de coadjuvante com este papel), e o avô Ole Pa (Wallace Ford). A mãe flerta com a prostituição e o avô é alcoólatra.  Ela tem 18 anos, tornou-se cega aos 5  por um ato involuntário da própria mãe, não tem amigas e nem estudo algum, não sabe o que é braile e vive como uma empregada doméstica: está envolvida na arrumação da casa, prepara o jantar para a mãe e o avô e ainda monta  bijuterias para um senhor que as revende. Trabalha em troca de uma cama e alimento. Não recebe afeto algum, o pai a abandonou quando flagrou uma traição da esposa.

        Sua única distração e alegria é  quando pode  passar um dia em um parque levada pelo avô ou pelo senhor que a contrata para os serviços com as miçangas e bijuterias. Só retorna à noite, quando o avô – sempre bêbado -  vai buscá-la. Ela é tão maltratada e rejeitada pela mãe que o expectador tem dificuldades em identificar Rose-Ann como sua genitora. O olhar de quem assiste direciona-se então ao avô no sentido de encontrar um ponto de referência e humanidade capaz de blindar a protagonista da mãe. Entretanto, não demora muito para observarmos que ambos possuem o mesmo repertório de maldades.

        A vida de Selina segue nesta rotina até que um dia ela conhece Gordon (Sidney Poitier). Em mais um papel de bom moço, ele logo se compadece da moça cega e abandonada no parque:  compra-lhe um óculos de sol para esconder as cicatrizes que possui no rosto devido ao acidente, leva-a ao mercado, ensina-lhe como atravessar a rua, mostra os pontos cardeais a partir da sensação do sol, presenteia-a com um manual da escrita em braile, convida-a com frequência para saborear suco de abacaxi que ela tanto gostou mas desconhecia até então, também a leva para almoçar em sua casa e  presenteia-lhe com uma caixinha de música que era de sua avó. É só neste momento que Gordon descobre que Selina teve uma única amiga com nove anos de idade que, entretanto, deixou de visita-la quando sua mãe descobriu que ela era “de cor” (termo muito utilizado na época para se referir a pessoas afrodescendentes).

        Reside com Gordon seu irmão que é médico. A princípio, com sutileza, mas, depois de forma mais direta é este personagem que apresenta de forma mais precisa a questão racial: “Deixe os brancos cuidarem de seus filhos brancos”. Na época, a relação entre um homem negro e uma mulher branca era punida em vários estados sulistas. No filme, observamos que estamos em uma cidade cosmopolita (provavelmente Nova York), mesmo assim, o fantasma da segregação racial ainda era muito forte em todo o país.

        Mesmo preocupado e aparentemente chocado com o racismo da mãe de Selina, Gordon segue em frente na sua motivação de proteger e oferecer melhores condições para sua amiga e pupila. Não há interesse carnal em suas motivações. Isso fica evidente quando ele explana as formas de amor que não se limitam a uma relação matrimonial. Selina, por sua vez, não se envergonha em narrar a ele, o que presenciamos em imagens, quando foi violentada por um dos “amigos da mãe”. Para ela aquilo era sinal de que “conhecia as coisas da vida”. A naturalidade com que relata o abuso consolida em Gordon a necessidade de ajudá-la:  coloca-la em uma escola para cegos passa a ser seu maior objetivo. Por sua vez, para quem foi maltratada a vida inteira, apaixonar-se pelo único “anjo da guarda” que surgiu em sua vida era algo mais do que natural.

        Fazer com que ela compreenda a diversidade de afetos existentes e dar um novo significado à sua vida, passa a ser o maior desafio de Gordon. Ao final, a vitória sobre o abandono, por mais doloroso que seja alegra o coração de quem acompanhou a triste trajetória de Selina.

          O filme tem como maior mérito a extrema simplicidade narrativa. A brilhante trilha sonora de Jerry Goldsmith (indicada ao Oscar) lembra a trilha de Elmer Bernstein em O sol é para todos, a fotografia em preto e branco de Robert Burks (colaborador em vários filmes de Hitchcock) também indicada ao Oscar juntamente com a direção de arte, é muito bonita. No parque, os planos se ampliam, simbolizando a vida que se abre a Selina, já no pequeno apartamento, se fecham de forma claustrofóbica demonstrando toda a angústia da personagem. Shelley Winters compõe o papel que a consagrou: a da matrona dura e rude, e, nesse caso, má. Sidney Poitier e Elisabeth Hartman (que na vida real suicidou-se em 1987 com 43 anos de idade) demonstram muita interação.

        Esse é mais um exemplo de uma época em que os grandes estúdios de Hollywood faziam filmes comerciais com temática adulta e sensibilidade. De rara beleza, trata-se de uma pequena obra-prima. Gordon é o alter ego da justiça ao realizar aquilo que aos olhos do expectador simbolizam a virtude e a compaixão. Já Selina é a representação daqueles que se encontram por várias razões excluídos socialmente. Do encontro de ambos nasce a redenção e a esperança.


segunda-feira, 11 de maio de 2020

AKIRA KUROSAWA (1910 – 1998): FILMES: VIVER (1952) / O BARBA RUIVA (1965)


VIVER: Kanji Watanabe (Takashi Shimura) é um veterano burocrata que há décadas trabalha diariamente na Prefeitura carimbando documentos. Ao descobrir que está com câncer no estômago, ele decide dar um sentido à sua até então desperdiçada vida.




O BARBA RUIVA: Um jovem e arrogante médico (Yuzo Kayama) chega a uma clínica de um velho médico apelidado de Barba Ruiva (Toshiro Mifune). Rebela-se contra a austeridade do lugar, mas, aos poucos, compreende porquê ele quer atender os pobres e necessitados.
          
          “Quero fazer filmes, filmes belos. Persigo esse objetivo há mais de 50 anos. (...), mas ainda não captei totalmente o que é um filme. (...) Quero que todos apreciem a beleza do cinema. Minha esperança é fazer um filme belo e maravilhoso. Quero transmitir de modo objetivo o que penso durante o filme para que todas as pessoas no mundo todo apreciem. Um filme projetado na tela permite que as pessoas no mundo todo compartilhem a vida dos personagens do filme. Dividir sofrimento e tristeza ajuda as pessoas a se entenderem. É um papel importante do filme. É a melhor coisa sobre os filmes. É através da beleza de um filme que se conquista isso. As pessoas apreciam a beleza no mundo todo. Através da beleza, podemos.... Se a beleza de um filme é apreciada então pode entender um ao outro. Esse é o tipo de filme que quero fazer. (...) Não se trata de passar uma mensagem”. (Doc. Uma mensagem de Kurosawa / 2000).
          Pode-se afirmar que o mestre japonês alcançou plenamente seus objetivos e esperanças. Seus filmes são atemporais, universais e sintetizam o mundo globalizado. Trata-se de um feito se considerarmos que ele advém de uma cultura, pelo menos em grande parte do século XX, muito diferenciada do chamado mundo Ocidental. Entretanto, em seus filmes tivemos: a criação do chamado gênero policial tal como o conhecemos hoje; adaptações muito particulares de Shakespeare, cineasta com o maior número de refilmagens no mundo, inovação em técnicas de filmagem entre elas formas de iluminação, forte presença de elementos naturais como a chuva e o sol, etc. Influenciado por John Ford e os westerns norte-americanos, serviu também de inspiração para o próprio western. Também foi parâmetro para os cineastas da nova geração de Hollywood como Copolla, Spielberg e Lucas. Esse último inclusive citando Kurosawa e seus filmes de samurais como influenciadores da saga que revolucionou o cinema contemporâneo que é Guerra nas Estrelas. Mas, sem dúvida a beleza nos filmes de Kurosawa é justamente compreendida pelo humanismo latente em suas tramas. A seguir, uma resenha (repleta de spoillers) de dois de seus filmes que comprovam esta tese: Viver de 1952 com Takashi Shimura um dos seus atores favoritos e O Barba Ruiva com seu principal ator Toshiro Mifune. Viver, obra posterior do aclamado Roshmon, em que o mestre nos apresenta uma história contemporânea do Japão pós II Guerra Mundial e O Barba Ruiva, último grande filme de sua primeira fase, que só seria retomada em 1975 com o sucesso de Dersu Uzala e o início de seus filmes coloridos.
          Cronologicamente, iniciamos por Viver. O filme tem dois momentos diferenciados: no primeiro, acompanhamos os últimos cinco meses de vida de um chefe de seção de uma repartição pública municipal. Há um narrador com pouco, mas precisas falas. Sabemos tratar-se de um burocrata que irá se arrepender pelos 30 anos de serviços prestados sem ter uma única falta, está com câncer e por ora, não sabe que irá morrer e, finalizando, após 5 meses da consulta médica morre. A surpresa da narrativa fica por conta da segunda fase do filme, em que Kurosawa utiliza o expediente de sucesso de Roshmon e apresenta pequenos flashbacks narrados por seus colegas de trabalho. Estas memórias ocorrem no velório ritualístico nipônico e vão nos revelando os últimos momentos do novo personagem e, o mais interessante, as diferentes e aparentemente desconectadas narrativas, celebram ao final a construção de um novo Watanabe, até então desconhecido por todos que o conheceram.
          A atuação de Takashi Shimura é emblemática: contido na maioria das cenas, com uma voz quase inaudível até explosões de sentimentos, revelados principalmente em suas expressões faciais como o close em seus olhos arregalados ou o olhar vago e perdido em suas comiserações, traduzidas por ele mesmo em mais de uma cena, o que dói não é o estômago enfermo, mas sim a angústia representada pela mão fechada junto ao peito.
          Sabemos a princípio por um parente e depois pelo próprio protagonista, que este tornou-se viúvo muito jovem e optou por ser um dedicado pai e funcionário público, renunciando mão de prazeres pessoais. Agora, no crepúsculo da vida, surge o arrependimento das coisas que poderiam ser realizadas ao longo de uma vida, no entanto, ficaram ao longo do caminho. Pior do que a velhice em si é a consciência da finitude que o transforma em um ser perplexo diante do aguardado, mas ao mesmo tempo assustador compromisso com a morte. O filme dialoga com o Neorrealismo italiano, particularmente Umberto D (Vittorio de Sica / 1952) e o mais recente Harry, o amigo de Tonto de 1974 e resenhado neste blog. Entretanto, a visão de Kurosawa é abrangente: a velhice e a presença constante da finitude não são os únicos tópicos a nos envolver. Podemos citar outros momentos reflexivos:
·       “Pense em você. Seu filho irá crescer e não irá se preocupar com você. Depois que casar então, irá lhe esquecer”. Estas palavras ditas a ele logo no início da viuvez, passam a ecoar em sua mente. Na convivência com o filho e a nora constata que não se relacionam como deveriam e que ambos estão mais preocupados com o que ele irá receber de prêmio após se aposentar. O protagonista toma ciência que é apenas e tão somente uma moeda de troca e sua importância é apenas material;
·       O Estado e o poder público não cumprem com o seu papel social: a politicagem e o jogo de interesses afastam funcionários dos seus reais objetivos. A burocracia estatal repele o cidadão. A Democracia é uma ilusão nesta engrenagem do poder;
·       A ação individual pode (e deve) ocorrer seja qual for a motivação, nesse caso, a aproximação da morte. Aguardar uma motivação coletiva pode não ser o melhor caminho. Sua ação deve ocorrer independentemente da aprovação ou não dos seus pares, objetivos individuais alcançados podem ou não gerarem transformações sociais.
Duas cenas são particularmente belas, ambas relatos de seus colegas de trabalho que a partir de flashbacks concluem que Watanabe tinha consciência da aproximação da morte: na primeira quando questionado sobre como se sentia sendo tratado como idiota nas repartições públicas em defesa de sua causa, sua resposta foi “não tenho tempo para odiar” e a segunda, enquanto caminha pela ponte observa o céu e admirado afirma o quanto é bonito o pôr do sol e que nunca havia reparado nisso, mas finaliza “Agora, não tenho mais tempo”.
          Fosse um filme comercial a ação final do protagonista que dá sentido à toda sua existência seria um exemplo a ser seguido por todos. Seus funcionários e colegas de profissão sentiram-se humilhados no velório quando diante de representantes da comunidade atendidos por Watanabe constataram a inutilidade de seus trabalhos. Embriagados com saquê propuseram a transformação: “Agora vamos trabalhar para atender a população”! O comodismo, covardia e acomodação entretanto falam mais alto: do alto da obra edificada através do esforço individual de Watanabe, o único funcionário que foi de fato sensibilizado, constata entristecido que a mudança cultural e coletiva ainda é um sonho distante.
          Apesar do tom melancólico e aparentemente pessimista, o filme carrega uma aura de perseverança e resiliência por parte do protagonista raramente presenciada no cinema e é justamente neste aspecto que a beleza tão procurada por Kurosawa é realçada.
    Assim como Hitchcock, Kurosawa procurava ter um controle total sobre suas obras. Desde o roteiro, - a maioria eram seus - até o acompanhamento da trilha sonora, fotografia, etc. Nesse sentido, ele tinha uma predileção pela edição. Filmava com várias câmeras desse modo o artista nunca sabia o que de fato seria colocado no filme. Para ele, editar era uma tarefa agradável e prazerosa. A matéria-prima não estava na filmagem em si, mas na edição. Entretanto, ela nunca a realizava como acontece geralmente, no término das filmagens. Como uma de suas técnicas, sempre que possível ele mostrava as filmagens para a sua equipe. Esse processo explica e justifica a necessidade em se passar dias gravando uma mesma cena e, ao mesmo tempo que acaba por unir e guiar a equipe de filmagem durante toda a produção. Nesse aspecto, Kurosawa não tinha dúvidas, quando uma cena parecia confusa ou entediante aos expectadores devia ser excluída, cortada do filme.
No documentário Uma mensagem de Kurosawa / 2000, ele afirma: “Dirigir inclui guiar atores, filmagem, iluminação, sonoplastia, direção de arte, trilha sonora, edição e dublagem. Embora todos sejam classificados como tarefas separadas todos se misturam em minha mente. É impossível pensar em cada um separado dos outros”.
No filme O Barba Ruiva podemos acompanhar algumas das técnicas de filmagem do mestre japonês: o hospital que existiu no século XIX foi recriado em detalhes para as filmagens que duraram dois anos. Ao vermos o filme nos sentimos como se fizéssemos parte daquele cenário tamanha a precisão dos detalhes. O trabalho da direção de arte é excepcional.
O filme tem em seu cunho social seu maior destaque. Apesar do título fazer alusão a um personagem e a trama também consolidar ações individuais desse personagem, a abrangência social é maior do que em Viver. O hospital público onde trabalha e chefia o “Barba Ruiva” é na verdade um microcosmos da sociedade. Temos a paciente com distúrbios mentais e há uma ala de isolamento apenas para ela por pertencer a um grupo social mais elevado e, a grande parte dos pacientes, a “ralé”, os pobres incapazes de terem um tratamento melhor mesmo com todo empenho e dedicação do dr. Barba Ruiva. Apesar de pecar ao mostrar a medicina como uma espécie de “sacerdócio” profissional, o filme contrapõe o profissionalismo e sua ausência em um mesmo espaço.
A princípio, somos levados a crer através de um dos seus funcionários, que Barba Ruiva é um tirano. Gradativamente, conforme o roteiro se desenvolve, constatamos que há um enorme senso de justiça nas ações daquele que coordena o hospital. Não apenas justiça, mas também uma série de sábias ações geradoras de mudança comportamental no personagem que faz o médico arrogante e prepotente que, mesmo inexperiente acredita tudo saber por ter estudado em sua formação pelo “método holandês”. Kurosawa nos apresenta no choque entre estes dois médicos a dualidade entre uma medicina humanista preocupada com o ser em sua totalidade e outra que é distante do paciente e apenas tecnicista. Por sua vez, Barba Ruiva não é um protagonista carregado de uma aura de santidade e é justamente esse fato que enobrece sua humanidade: ele chantageia o governador, espanca cafetões em um bordel – “Eu não vou matar, apenas quebrar alguns ossos”, utiliza todos os expedientes necessários para alcançar o objetivo de conseguir manter seu hospital e atender sua clientela pobre e necessitada.
A trama e o roteiro nos apresentam a história de vida de alguns personagens que se apresentam diante do expectador despidos de falsos pudores. Em uma dessas cenas, Barba Ruiva diz ao médico novato que a medicina se volta para as misérias humanas e a ignorância talvez seja a maior doença a ser enfrentada.
Do garotinho que rouba o hospital para comer à garota de 12 anos retirada à força do bordel, da ausência do Estado que corta investimentos em saúde, Kurosawa relata o drama das pessoas comuns. O hospital poderia ser uma repartição pública ou uma escola, o que se sobrepõem a tudo e a todos é o dilema do homem diante das misérias humanas.
Ainda sobre a prática de dirigir Kurosawa disse: “(...) construir é fácil e coisas práticas podem ser ensinadas. Mas o talento não pode ser ensinado. Ensinar o que é o cinema também é muito difícil. Aqueles que não entendem isso, não conseguem aprender. Explicar o que é o cinema em palavras abstratas é algo que não sou capaz de fazer”. (Doc. Uma mensagem de Kurosawa / 2000).
O velho mestre não precisou ensinar o que é o cinema através de palavras. Basta assistirmos a seus filmes para compreendermos toda a magnitude da sétima arte.


domingo, 10 de março de 2019

FILME: O VALOR DE UM HOMEM / FRANÇA / 2015


O VALOR DE UM HOMEM / FRANÇA / 2015
DIR: Stéphane Brizé
Com: Vincent Lindon / Dur: 93min.




    
     Assim como Dois dias, uma noite (França / 2014) e Eu, Daniel Blake (Ing / 2016), O valor de um homem (França / 2015) segue temática semelhante: a colocação do homem / trabalhador em um mundo do trabalho em constante modificação, e, como o próprio título aponta e questiona, qual o valor deste homem/trabalhador neste contexto?
          
     Ao contrário do filme britânico, que é convencional em sua forma e estética, em O valor de um homem estamos diante de um formato documental. A narrativa, os closes e os planos são tão crus e realistas que não sugerem, em momento algum, que estamos diante de uma obra de ficção. A sensação é a de que os fatos realmente estão ocorrendo enquanto assistimos. A excelente atuação de Vincent Lindon (ganhador da Palma de Ouro em Cannes) reforça ainda mais esta impressão. Apesar da crítica considerá-lo maniqueísta, apresentando apenas a visão ou o ponto de vista do trabalhador desempregado e, segundo essas críticas, o filme ser “simplista” por não aprofundar uma situação complexa, acredito ser justamente essa posição da direção e roteiro que, ao invés de subtrair, multiplicam as qualidades desta produção.
     
     Thierry é um ferramenteiro de meia idade e bastante experiente em seu ofício, mas que está desempregado faz meses e vê reduzidas suas reservas financeiras. Entretanto, longe de serem qualidades tais atributos tornam-se entraves. Sua busca por emprego faz com que qualquer pessoa independentemente de época e lugar se identifique com o personagem. Nas entrevistas a câmera foca apenas em Thierry com suas falas e, mais do que isso, suas expressões de agonia e tensão diante dos comentários de seus interlocutores, dos quais ouvimos apenas suas vozes. Tal como em uma entrevista realizada por Skype onde após uma série de perguntas sobre aceitação de diminuição salarial e flexibilidade de horário com críticas ao curriculum do entrevistado, a voz finaliza dizendo “Daremos uma resposta em até duas semanas, mas já lhe adianto que a possibilidade de contratá-lo é remota”.
     
     Assim, o filme persiste na tentativa quixotesca do protagonista conseguir novamente um posto de trabalho. Ficamos sabendo que ele e vários outros trabalhadores realizaram por indicação do Estado um curso que, ao invés de acrescentar maiores possibilidades de contratação, teve, na verdade, efeito contrário. Sabemos também que o protagonista não quer mais ficar lutando judicialmente. Sente-se cansado de continuar enfrentando o poder patronal e se distancia de colegas que estavam na mesma situação. Assim como Daniel Blake, o roteiro não é panfletário: o movimento sindical é colocado à margem dessa engrenagem. Por isso, discordo daqueles que o classificam como um filme maniqueísta. Não se trata de simplesmente definir patrões contra trabalhadores defendidos por sindicatos ou centrais, ou da eterna luta de classes (o que muitos ainda acreditam não existir), mas sim de focar em um olhar seco e árido sobre todos aqueles que se encontram desamparados e sozinhos diante de forças que os oprimem. A denúncia maior está justamente na quebra dos laços de solidariedade entre as pessoas.
     
     A sensação de vazio e desesperança são ampliadas com um personagem que não expressa em palavras suas angústias. Esperamos que ele as expresse nas cenas com a esposa, mas esse não é o objetivo. Ela é também afetada e cúmplice desse sofrimento, comunicando sua dor com silêncio.
     
     A angústia é apenas quebrada nas cenas de aulas de dança entre o casal e com o filho. Como “desgraça pouca é bobagem”, ele é um adolescente inteligente, mas com necessidades especiais. Assim como o pai, o jovem também é pressionado. Seu esforço e dedicação em estudar não estão sendo suficientes para lhe garantir uma vaga na faculdade de engenharia.
     
   O sistema financeiro complica ainda mais a situação de Thierry e sua família. Exemplo disso é a fala do gerente do banco: ”O senhor pode vender seu apto para quitar seus débitos e ter um respiro” (mesmo sendo o único bem que possuem e a poucos anos da quitação) ou “O sr. já pensou em adquirir um seguro de vida? Já imaginou como sua família irá ficar, caso o sr. falte”? Resumindo, às vezes é necessário que alguém morra para que a situação possa, ao menos provisoriamente, melhorar.
     
     É neste momento que entramos na segunda etapa do filme. Sem qualquer aviso prévio, depois de ter passado por várias humilhações, incluindo o ápice de ser avaliado pessoalmente por várias pessoas (também pretendentes à vaga de trabalho), e ser considerado “pouco esforçado”, com “voz baixa”, “sem confiança”, etc, nosso protagonista aparece vestido de terno e gravata, com um crachá e rádio na mão. O posto conquistado de segurança em uma rede de supermercados está muito distante de sua formação e daquilo que, a princípio, pretendia. Aqui a trama passa por uma inversão de papéis: Thierry tem uma função de controle e defesa do contratante, do patrão e, ao mesmo tempo, torna-se uma espécie de “capitão do mato” para aqueles que serão vigiados. É justamente neste paradoxo que o conflito interno se torna ainda mais violento. O filme não toma a defesa daqueles que roubam, desde um rapaz que dá uma desculpa improvável para seu ato, até um senhor que nos comove por de fato nos convencer que roubou um alimento por necessidade. Não há, entretanto, a pretensão de acolher os que roubam, independentemente dos motivos que os levaram a tal ato. Apesar do constrangimento inerente à sua função, Thierry continua a exercer com profissionalismo o que que lhe foi estipulado, mas as coisas realmente se complicam quando a fiscalização não se restringe apenas aos consumidores, mas também aos funcionários. A crítica mais direta às empresas e ao poder que elas exercem sobre as pessoas, utilizando meios lícitos ou ilícitos, está justamente no momento em que Thierry ouve instruções para observar os caixas com muita atenção, pois, às vezes, os funcionários não fazem (deliberadamente ou não) a leitura de barras de algum produto. Como a maioria não aderiu ao plano de aposentadorias antecipadas, o gerente pretendia aumentar a lucratividade. Qualquer “descuido” dos empregados seria muito bem recebido pela política da empresa.
     
     Como reagir diante disto? Thierry observa que qualquer um poderia estar naquela situação. Em um momento, seus “colegas” e chefias estão todos reunidos para comemorar a aposentadoria de uma funcionária, em seguida, estão, cada um a seu modo, degladiando-se por uma melhor colocação ou para simplesmente manterem seus empregos e a própria sobrevivência.
     
     Tragédias se sucedem neste meio culminando com um clímax previsível, mas que nem por isto diminui o impacto deste filme. Em O valor de um homem o big brother previsto por Orwell não está no Estado opressor e onipresente, mas sim no empregador que utiliza qualquer artifício para propagar seus valores e seu poder. Quanto a Thierry, resta a pergunta que insiste em não se calar: “Qual o valor de um homem”?



FILME: O DELATOR / EUA / 1935


O DELATOR / EUA / 1935
Dir: John Ford
Com: Victor McLaglen / Hearther Angel / 91 min.





John Ford é considerado pela crítica especializada o precursor na linguagem cinematográfica da nação norte-americana. Obteve tal título principalmente através dos faroestes onde narrava o surgimento dos EUA nos eternos confrontos com os índios e a expansão e conquista do Oeste. Entretanto, seus filmes abarcam vários gêneros: cinebiografias, dramas de guerra, dramas históricos, etc. Em todos, algumas características se sobrepõem: seus personagens são seres taciturnos, marginalizados e bêbados. Em O delator não é diferente. Produzido em 1935 com poucos recursos, o filme não era bem-vindo pelos produtores e teve que ser produzido a fórceps. Ford não tinha à mão cenários e acabou colocando em prática imagens herdadas do expressionismo alemão, com destaque para a iluminação e o forte jogo de sombras através das névoas, intensificadas pelo fato de toda ação do filme ocorrer em uma noite/madrugada. Neste trabalho, Ford evidencia a forte influência de diretores alemães como F.W.Murnau (Nosferatu / 1922) e Fritz Lang (Metropólis / 1927). Assim, meio sem querer, tais limitações orçamentárias acabaram construindo um clássico e uma obra-prima do cinema nos anos 30, ainda hoje impactante.
         
     O protagonista é fisicamente parecido com John Wayne, ator preferido de Ford e destaque em várias de suas produções. Entretanto, as semelhanças se iniciam e param no tamanho grandalhão do personagem. Ao contrário de Wayne, com seu tipo durão, temos em Victor McLaglen (Gypo Nolan) o sujeito atormentado emocionalmente e com um baixo desenvolvimento cognitivo, características tão bem exploradas pelo ator que o levaram a vencer o Oscar. O filme também foi agraciado com a estatueta nas categorias de diretor (o primeiro dos quatro vencidos por Ford), trilha sonora original (Max Steiner) e roteiro adaptado.
          
     A ação se passa em 1922, na tumultuada Irlanda e sua luta pela emancipação do domínio britânico. Gypo era um membro da resistência que, depois de uma ação atabalhoada, é expulso da organização, escapando por pouco de ser punido com a morte. Assim torna-se um pária em sua própria pátria: é renegado pelos dominadores ingleses e pelo seu próprio povo, onde quem não é membro do movimento político armado é, ao menos, simpatizante. Suas primeiras imagens mostram um homem perdido em névoas, perseguido pelo cartaz que coloca a prêmio, a cabeça de seu amigo, procurado pelos ingleses.

     E é justamente esta premiação que o irá levar à delação do título e, por consequência, ao maior crime que poderia ser cometido naquela estrutura social na qual ele pertence.
          
     O filme é cheio de simbolismo católico, religião processada por Ford com sua origem irlandesa. Assim temos: o cartaz que aparece várias vezes e insiste em responsabilizar o protagonista (tal como o galo que canta representando a traição a Cristo), a prostituta de bom coração que conclama o perdão, a representação do Judas traidor, as imagens católicas, a paga pela traição e a entrega do dinheiro (momento no qual o próprio pagador recusa-se a colocar sua mão). Em uma cena marcante, a mãe que perde o filho, mas, tal como uma Nossa Senhora, tudo perdoa. Assim, a delação para Ford é um pretexto religioso para obtermos a redenção de nossos pecados.

     É na figura da prostituta que Gypo é levado a trair. O dinheiro na verdade não é para ele, mas sim para tirar daquela vida miserável a mulher que ele ama e que também o ama. Entretanto, as coisas fogem do controle. Enquanto uns velam a morte da vítima da delação, outros, sob o comando de um embriagado Gypo divertem-se às custas do dinheiro que é fruto do pecado e gasto de forma também pecaminosa (com bebidas, mulheres e comida). As cenas paralelas são interessantes, enquanto temos aqueles que velam seus mortos vítimas da luta por independência e liberdade, temos aqueles que, alienados a tudo, apenas buscam a satisfação de seus desejos imediatos e mundanos.
          
     Gypo não demonstra arrependimento por ter traído o amigo, antes finge dor, como na cena em que vai no velório e longe de afastar suspeitas acaba ainda mais por se complicar devido sua falta de inteligência. Apenas diante do cartaz com a recompensa (o nosso galo cristão), conseguimos encontrar um pouco de dilema moral pelo seu ato. Apesar da constante embriaguez, ele não reluta na tentativa de salvar a própria pele, ao acusar e tentar levar à morte outro inocente, um velho e doente alfaiate. Assim, Gypo é um personagem dotado de extrema humanidade, que acaba por contrastar com o sentido religioso do filme, onde o perdão será o último estágio de sua redenção.
         
     Ford disse que foi o filme mais fácil de ser filmado em sua vasta carreira. Longe do estereótipo de força, tão evidente em sua filmografia, foi justamente na fraqueza de seu protagonista, em O delator, que Ford talvez tenha conseguido seu momento mais singelo e introspectivo de toda sua brilhante carreira.



FILME: FÚRIA / EUA / 1936


FÚRIA / EUA / 1936
DIR: Fritz Lang
Com: Spencer Tracy e Sylvia Sydney / 96min.


            https://agrandeilusaocaminha.wordpress.com/2015/02/15/furia-1936/

Cliente 1 – “Deixe-me lhe dizer professor, se vocês, os jovens gênios do Liceu enchem as cabeças das crianças de ideias radicais, nós, os pais temos que ter uma lei”.
Cliente 2 – “Não é possível haver uma lei que negue o direito de se dizer o que se pensa, pelo menos em tempos de paz”.
Cliente 1 ­– “ Quem o diz”?
Cliente 2 – “A Constituição dos EUA”.
Cliente 1 – “Eu não acredito”.
Barbeiro – “Deveria lê-la. Ficará surpreso. Tive que lê-la para tornar-me americano. Nunca teve que ler porque já nasceu aqui”.
       
    O diálogo acima não foi retirado de nenhum defensor do Escola sem partido, projeto criado em 2004 por pessoas que não pertencem à Educação e, muito menos, por algum membro do partido do presidente eleito do Brasil que encampou a censura como projeto educacional do seu futuro governo. O diálogo ocorre em uma cena de um filme que não tem como narrativa central a liberdade de cátedra do professor, mas que, nesta conversa com o barbeiro - este sendo o alter ego do diretor Fritz Lang (1890-1976) - exemplifica a posição pela defesa do indivíduo e dos princípios democráticos.

    Lang foi mais um criador que fugiu do Nazismo para os EUA e lá mesclou o cinema autoral com o comercial. Como já foi comentado neste blog, desta fusão surgiu um cinema do mais alto nível, fortalecendo a indústria cinematográfica e, ao mesmo tempo, propiciando sucesso de crítica e público. No caso de Lang, temos alguns elementos adicionais muito relevantes: ele é considerado um dos pais do Expressionismo alemão, escola que inovou com suas imagens cheias de sombras e luzes e um forte simbolismo visual. Dentre vários sucessos, destaco dois filmes em particular que sintetizam sua linguagem cinematográfica: Metropólis (1927) ainda muito atual como pioneiro da ficção científica, ao descrever uma sociedade futurista (atual?) distópica e M, o vampiro de Dusseldorf (1931), sobre um assassino de crianças. Em ambas as produções realizadas na Alemanha pré-nazista, as imagens impactantes de Lang não apenas retratam a atmosfera que se vivia em forma de um pesadelo urbano como também, de forma metafórica, antecipam a ascensão de Hitler. O assassino de Dusseldorf, por exemplo, baseado em um personagem real, é também uma alusão ao Fuher que dois anos depois chegaria ao poder.

    No mesmo dia em que foi convidado a chefiar o cinema do regime nazista (em 1933), Lang foge da Alemanha para os EUA, transferindo para suas produções norte-americanas, a mesma temática utilizada na Europa: o fatalismo no destino dos homens que, por mais que lutem e tentem se adequar ao meio em que vivem, são vítimas de estruturas coletivas (as massas) e jurídicas (o Estado) que impossibilitam sua inserção como cidadão. Neste aspecto, os seus dois primeiros filmes nos EUA se destacam: Fúria de 1936 e Vive-se uma só vez de 1937 com Henry Fonda e também Sylvia Sydney. Em ambos os filmes, os personagens de Tracy e Fonda sofrem nas mãos das Instituições e da sociedade que legitima e compactua com as falhas do Estado.

    Vamos nos ater aqui ao primeiro filme (não contém spoillers):

    Spencer Tracy é o pacato cidadão, vive com dois irmãos, adora amendoins (importante para a trama), é apaixonado por uma professora e ambos querem se casar e ter uma casa. Ao contrário do que seria o usual, é a noiva que se desloca para outra cidade com um emprego melhor. Ele fica com os irmãos e também consegue melhorar de vida ao adquirir um posto de gasolina. Com esse trabalho, retira os irmãos da criminalidade.Tudo caminha tão bem que, tal como em um filme de Hitchcock, temos a certeza absoluta que algo de muito ruim irá ocorrer, e, realmente ocorre.
          
    Em viagem para se encontrar com a noiva depois de tanto tempo de ausência, Tracy é preso e acusado de ter participado de um sequestro. Enquanto está sendo investigado, corre o boato pela comunidade que o homem que está preso é o culpado. (As cenas simultâneas entre mulheres espalhando o boato e galinhas cacarejando são metaforicamente brilhantes.)
         
    A comunidade então se organiza, pois não aceita a demora na aplicação da lei. Querem “justiça”, mesmo que seja de forma justiceira, através do linchamento. O xerife eleito pela comunidade tenta defender seu investigado, reconhece os “cidadãos de bem” que ignoram a lei, ao mesmo tempo em que apela ao governador e à guarda nacional. Pressionado por políticos, o governador recua em sua ajuda. Como consequência, o investigado, que é inocente, é linchado. Na impossibilidade de invadirem a cela, a cadeia é incendiada.
          
    Os planos em close dos linchadores são impactantes. As expressões de ódio e ao mesmo tempo de enorme prazer com o prisioneiro sendo queimado vivo retratam como poucos a histeria coletiva das massas.



https://medium.com/revista-salsaparrilha/os-anjos-maus-da-nossa-natureza-904cc48d7aba


    Há duas interpretações nestas primeiras obras de Lang nos EUA: a primeira, a de que ele continuava criticando o nazismo e a sociedade alemã que cegamente seguia um líder/mito; a segunda, a de que um cineasta estrangeiro que recentemente havia adquirido a cidadania norte-americana, não caiu em seu “canto dos cisnes”. Nestes filmes, Lang estaria apontando o dedo para as comunidades conservadoras e também fascistas dos EUA que vivem à margem de sua Constituição, como diz o barbeiro ao seu cliente ignorante: “Tive que lê-la (a Constituição) para tornar-me americano. Você nunca teve que ler porque já nasceu aqui”.
       
    Além da amostragem nazista pré-segunda guerra mundial, temos nestes filmes o espírito de uma época nos EUA: os anos de enorme turbulência com o crack de 1929 e também a enorme ascendência da Ku Klux Klan, com seus linchamentos de negros, que se estenderam até os anos 60 do século passado. Assim, ao expor de forma tão precisa o momento que se vivia, Lang denuncia que a ameaça à Democracia está presente tanto na Alemanha totalitária como no país ícone das liberdades individuais.
    
    A fala final do filme também é emblemática: independentemente do linchamento ser consumado ou não, a intenção dos seus agressores já os transforma em culpados. Acima das próprias leis, são os preceitos morais que determinam a consciência de nossos atos.
     
    Oitenta e dois anos depois, a obra de Lang e esse filme em particular dialogam ainda com mais fúria sobre nossas cabeças.
          

Saber mais:









terça-feira, 20 de outubro de 2015

RESENHA TEMPOS MODERNOS


TEMPOS MODERNOS / MODERN TIMES
Produção: EUA / 1936
Direção: Charles Chaplin
Elenco: Charles Chaplin / Paulette Goddard
Duração: 83 min.

            Tempos Modernos é o ápice criativo do maior gênio que o cinema conheceu. Todo seu conhecimento, sua técnica, caráter inovador e domínio da arte que o consagrou estão presentes de maneira total e absoluta: a pantomima levada ao extremo, o forte e absoluto reinado do drama social, o apelo ao sentimental e a irreverência e ironia de Chaplin em sua primeira participação sonora transformaram Tempos Modernos em um clássico absoluto às vésperas de completar seu octogésimo aniversário.
          Este filme foi fundamental para a consolidação do cineasta como um anti-herói por parte da conservadora sociedade norte-americana. Enquanto o grande público e a crítica o transformavam em um ícone do cinema, os políticos e os representantes das elites econômicas do país o enxergavam como uma eventual ameaça. Tal fato confirmou-se em 1940 quando do lançamento de outro clássico: O Grande Ditador. Em uma época em que os EUA não desejavam se posicionar em relação à II Grande Guerra, um Hitler ridicularizado por Carlitos não era nem um pouco bem visto. O ditador nazista ainda não era o “inimigo da América” _ não nos esqueçamos de que ao longo da década de 30, o nazismo e seu líder eram bem vistos por setores da sociedade norte-americana: a eugenia e ideia de superioridade racial estavam enraizadas principalmente no sul dos EUA, grandes empresas e corporações eram parceiras comerciais e o governo norte-americano via a princípio com bons olhos um aliado econômico em uma época em que havia a ameaça do stalinismo na Europa (ver notas *).
Assim, após o lançamento do filme no início da guerra Chaplin passou a ser persona non grata ao establishment. Tal fato gerou uma verdadeira perseguição pessoal ao artista, que sofreu acusações e investigações pela HUAC - Comissão para Investigação de Atividades Antiamericanas - e posteriormente pela famosa comissão do senado do republicano Joseph McCarthy, na qual vários norte-americanos acusados de serem comunistas ou simpatizantes de tais ideais tiveram que se explicar perante os senadores, a famosa “caça às bruxas”. Tal situação levou Chaplin a um exílio voluntário na Suíça, no início dos anos 50, que só foi quebrado em 1972 quando a Academia de Hollywood resolveu, de maneira envergonhada, homenageá-lo e premiá-lo com um Oscar honorário.
          Além das questões políticas, Chaplin ousou: criticou de maneira jocosa, irônica e por vezes cínica, o que a sociedade norte-americana defende até hoje como o que tem de mais valioso, que são seus princípios de liberdade, trabalho e ascensão social, o famoso American way of life. Nascido de uma família pobre, filho de atores mambembes do cenário londrino, o artista representava justamente o protótipo dos valores norte-americanos, ou seja, alguém que “veio de baixo” e com seu esforço, competência e habilidade alcançou o topo da escala social. Entretanto, mesmo sendo fruto desta sociedade que o acolheu, ao contrário de tantos que se renderam ao modelo hegemônico e aceitaram imposições sobre seu estilo, Chaplin utiliza a linguagem cinematográfica para criar através do seu personagem denominado de vagabundo a imagem de um herói urbano.
          Em uma sociedade em que o sucesso é ícone de ascensão social, onde supostamente as oportunidades de conquista profissional e financeira são para todos, onde “o céu é o limite” para se obter os bens materiais,  transformar um “vagabundo” em herói, sem dúvida alguma não poderia colocá-lo como uma unanimidade. Para muitos, o simpático Carlitos era uma ameaça.
          A arte cênica ao longo do tempo sempre foi vista como um importante elemento de conscientização e transformação social. Da Antiguidade temos o legado das famosas tragédias gregas. As comédias sempre tiveram um apelo muito grande junto ao público, do teatro às apresentações de ruas, dos circos etc. Chaplin insere neste contexto a nova linguagem do cinema para ocupar este espaço, a das “fotos em movimento”: ao rir das agruras cotidianas do personagem criado por Chaplin, as plateias se identificavam com seu dia a dia, principalmente em uma época de reconstrução do país com a quebra da bolsa de valores em Nova York (1929), onde a crise do capitalismo escancara ainda mais as contradições daquela sociedade criada pelos sonhos de consumo.
          Os traumas de sua infância, com pai alcoólatra, mãe internada em manicômio, abandono e miséria transformaram-no em um artista que, ao invés de renegar seu passado, colocou tais situações como protagonista em suas tramas. Sua arte e seu estilo eram um meio que o levava a depurar seus sentimentos mais íntimos, afastar seus fantasmas e colocar o homem comum_ sempre se metendo em confusões e sem dinheiro, mas cheio de afeto_ como o centro do universo: o humanismo chapliniano. E é justamente disto que estamos tratando quando analisamos Tempos Modernos: não é uma suposta ideologia que deve rotular sua obra. Chaplin critica o patrão, mas também apresenta o operário em algumas situações que estão longe de caracterizá-lo apenas como vítima. Evidentemente que a crítica maior e mais contundente é sobre o capital e por uma razão bem simples, não é a máquina que representa o retrocesso, mas sim o mau uso deste instrumento que transforma pessoas em não pessoas. Como humanista que era, a dissecação do trabalho em uma linha de montagem desumaniza o homem, e é justamente este processo que será duramente criticado pelo artista naquilo que ele tinha de melhor em sua arte: o humor!
          Em Tempos Modernos, logo na apresentação a primeira imagem é a de um relógio com os ponteiros em movimento. Anuncia-se aqui o tempo das fábricas, das indústrias, o predomínio da medida cronológica monitorando as sociedades industriais e pós-industriais, pois ainda é justamente este tempo ao qual nos reportamos e nos submetemos na chamada pós-modernidade atual. Ao contrário de outros momentos históricos em que a religiosidade e a vida agrária eram controladas pelo tempo da Igreja Católica Ocidental através do badalar dos sinos, assim como a presença de relógios sem a existência de ponteiros para os minutos, a partir da Revolução Industrial (final do século XVIII e séc. XIX) o tempo deixa de ser “lento” e passa a seguir o ritmo da linha de montagem. A indústria e sua organização tornam-se um modelo que molda várias instituições, até mesmo as escolas, que passam a ter uma estrutura similar, inclusive com os sinais tais como os de uma fábrica. A linha de montagem estabelece não apenas o ritmo do dinheiro como também o movimento da própria vida. É esta pressa, esta rapidez que leva o trabalhador à completa neurose que irá determinar o sentido de sua própria subsistência. Trata-se de um homem máquina, ou a visão do homem enquanto continuidade desta engrenagem em que o elemento humano perde a sua qualidade de ser e transforma-se em um fim em si mesmo, ou a partir dos estudos de Marx, em um alienado, isto é, “(...) quando o ser humano se afasta de sua natureza, (...) não controla sua atividade essencial, pois os objetos que produz (as mercadorias) passam a adquirir existência independente do seu poder e contrária aos seus interesses. Estado do indivíduo que não mais se pertence, que não detém o controle de si mesmo ou que se vê privado de seus direitos fundamentais, passando a ser considerado uma "coisa". Falta de percepção de si mesmo”. (Iniciação à Filosofia, Marilena Chauí, ed. Ática, 2012, pág. 363).
          Historicamente, ao deixar de ser um artesão que acompanha todas as etapas da produção, o operário da nascente indústria anula sua criatividade, submete-se ao controle completo e absoluto do capital. É este ser fragmentado e sem poder sobre os seus próprios corpo e mente _ satirizado nas cenas em que a linha de montagem é desligada para o almoço e no processo repetitivo que bloqueia qualquer lampejo de criação_ que Chaplin coloca este homem em sua real posição: a de um ser em profundo processo de desumanização.
          A genialidade de Chaplin manifesta-se naquela que talvez seja a cena mais engraçada e, ao mesmo tempo, mais trágica, surreal e assustadora: o momento em que um comerciante tenta vender ao proprietário da indústria uma máquina que iria colocar na boca do operário o alimento. Seu objetivo seria o de reduzir o tempo de almoço e consequentemente agilizar a produção. Ao divulgar seu produto, o comerciante enaltece suas qualidades dizendo: “Veja, o operário não faz nada, a máquina faz tudo”. Estes são os Tempos Modernos...

         O paradoxo em uma sociedade que enaltece a liberdade acima de todo e qualquer valor é o personagem de Chaplin fazer de tudo ao longo do filme para voltar à prisão, onde por ter “sem querer” evitado uma fuga em massa, nosso simpático protagonista passa a ter um tratamento diferenciado e privilegiado. Assim, ao ganhar sua liberdade, o vagabundo faz de tudo para perdê-la, voltar a ser preso é seu objetivo maior. Nestas cenas, vemos então o humor irônico de seu criador em plena forma: de que adianta ser livre em uma sociedade que nos aprisiona?
          Em seus filmes, os personagens que representam o poder e o Estado são constantemente humilhados, os guardas e a polícia em si, suas maiores vítimas. Chutar a bunda de um policial era um exercício metafísico. Nestas cenas o poder coercitivo do Estado e sua autoridade são duramente criticados. Em Tempos Modernos, a viatura policial mais parece um ônibus, um coletivo, pois para com frequência para prender bêbados, desocupados e acima de tudo pobres. Através do riso torna-se muito fácil identificar quem são os “cidadãos”, quem os defende e contra quem. Há uma sequência esplêndida onde o vagabundo e sua amiga estão sentados na calçada de um bonito bairro residencial, então um homem bem vestido sai para trabalhar e sua esposa dona-de-casa despede-se do marido com entusiasmo. O vagabundo imita os gestos exagerados da mulher e imagina como seria maravilhoso viver em uma casa como aquela. O seu sonho encerra-se com a chegada de um guarda prestes a prendê-los por vadiagem. A cena a seguir na loja de departamentos nos apresenta também o contraste entre a sociedade de ostentação, que é para poucos, com a realidade de muitos que, além do preconceito e humilhação, ainda enfrentam a forte repressão policial (como na cena em que Chaplin sem querer balança uma bandeira caída de um caminhão – provavelmente vermelha – e é preso como líder grevista e quando o pai desempregado é morto em uma manifestação).


          Não é apenas o capital que merece críticas; em um momento tão difícil como aquele, a conquista do emprego era uma realização. Assim, quando no final do filme nosso protagonista consegue este feito, no mesmo dia_ para sua decepção e de seu encarregado_ as máquinas novamente são paradas e mais uma vez inicia-se uma greve. Os dois trabalhadores demonstram claramente a insatisfação diante daquele quadro. Aqui, o trabalhador é colocado entre um patrão opressor e um sindicato incapaz de realizar uma leitura adequada do momento.
          Recentemente ouvi no rádio a entrevista de um importante representante do sindicato patronal defendendo a lei de terceirização que foi aprovada na Câmara dos Deputados e segue para o Senado Federal. Infelizmente não me recordo de seu nome, mas entre outras coisas chegou a dizer que era um absurdo o trabalhador ter uma hora para o almoço, que muitos não utilizam este tempo e que poderiam, por exemplo, fazer como nos EUA, onde o operário come um lanche em quinze minutos, podendo assim sair antes do término de sua jornada de trabalho. Ao ouvir tamanho absurdo, foi imediata a relação com a famosa cena de um coitado e atabalhoado Carlitos tendo que comer rapidamente através de uma máquina que colocava o alimento em sua boca.
          Também em pleno 2015, a linha de montagem continua funcionando tal como aquela imortalizada no filme, a repressão policial faz parte dos principais Estados de Direito ditos democráticos no mundo e não apenas das ditaduras denominadas de direita ou esquerda, relógios de ponto, hoje eletrônicos,  baseados na biometria são instalados em instituições de ensino público, como se o trabalho intelectual de um profissional da educação pudesse ser mensurado e quantificado. É possível controlar o tempo de um trabalho criativo como o de um professor? Quando até mesmo sobre um trabalho essencialmente mental se busca o controle e a consequente alienação, devemos nos perguntar se Charles Chaplin era de fato um comediante ou se estava muito além desta denominação quase quarenta anos depois de sua morte.
          Façamos um exercício: se estivesse vivo, se fosse brasileiro e filmasse Tempos Modernos em 2015, evidentemente com algumas atualizações, como Chaplin seria visto por importantes setores de nossa sociedade?
          Será que seria rotulado de comunista? Esquerdista? Ou pior: será que teria que ouvir Vai pra Cuba! ?
          Evitar apontar erros, falhas que existem em todos os sistemas econômicos e políticos existentes levam as pessoas a ter opiniões fechadas. Muitos setores de nossa sociedade pretendem fechar os olhos para situações em que o capital e sua estrutura são incapazes de resolver o que Chaplin apontava com fina ironia oitenta anos atrás. Longe de uma pregação revolucionária ou da substituição de um sistema por outro, Chaplin nos diz com Tempos Modernos que o capitalismo está muito longe de ser o melhor dos mundos e que não querer ver que há diferenças sociais gritantes e absurdas é um erro maior do que aquele cometido pela igreja católica ao condenar Galileu Galilei. Infelizmente ainda sustenta-se em nosso país o discurso da cordialidade do brasileiro e de uma total ausência de conflitos sociais; para estes, denunciar a desigualdade é algo não patriótico e capaz de incitar o ódio e uma luta de classes. É este discurso antiquado, baseado no medo e na ignorância _ mas, ao mesmo tempo oportunista_ de importantes setores sociais respaldado pelos mais importantes veículos de comunicação de massa, que nos afasta de nossos reais problemas. Para estes grupos, Charles Chaplin, o maior gênio da mais importante arte do século XX, o cinema, deve ser visto apenas e tão somente como um comediante e seus filmes, assistidos apenas como entretenimento. Ou seja, rir e não pensar.
          Chaplin não cria em Carlitos uma consciência de classe, mas faz de seu personagem central o protótipo do homem desconcertado diante do mundo que o cerca. Se Euclides da Cunha caracterizou o sertanejo como um forte, Chaplin com seu personagem recria a famosa obra de Dali a persistência da memória de 1931 onde surge uma nova visão de homem: a da resistência e resiliência e, acima de tudo, a coragem e o otimismo diante de tantas incertezas. A emocionante cena final é um convite a tudo isso.


         

NOTAS (*)