TEMPOS MODERNOS / MODERN TIMES
Produção: EUA / 1936
Direção: Charles Chaplin
Elenco: Charles Chaplin /
Paulette Goddard
Duração: 83 min.
Tempos Modernos é o ápice criativo do maior gênio que o cinema
conheceu. Todo seu conhecimento, sua técnica, caráter inovador e domínio da
arte que o consagrou estão presentes de maneira total e absoluta: a pantomima
levada ao extremo, o forte e absoluto reinado do drama social, o apelo ao
sentimental e a irreverência e ironia de Chaplin em sua primeira participação
sonora transformaram Tempos Modernos
em um clássico absoluto às vésperas de completar seu octogésimo aniversário.
Este filme foi fundamental para a
consolidação do cineasta como um anti-herói por parte da conservadora sociedade
norte-americana. Enquanto o grande público e a crítica o transformavam em um
ícone do cinema, os políticos e os representantes das elites econômicas do país
o enxergavam como uma eventual ameaça. Tal fato confirmou-se em 1940 quando do
lançamento de outro clássico: O Grande
Ditador. Em uma época em que os EUA não desejavam se posicionar em relação
à II Grande Guerra, um Hitler ridicularizado por Carlitos não era nem um pouco
bem visto. O ditador nazista ainda não era o “inimigo da América” _ não nos
esqueçamos de que ao longo da década de 30, o nazismo e seu líder eram bem
vistos por setores da sociedade norte-americana: a eugenia e ideia de
superioridade racial estavam enraizadas principalmente no sul dos EUA, grandes
empresas e corporações eram parceiras comerciais e o governo norte-americano
via a princípio com bons olhos um aliado econômico em uma época em que havia a
ameaça do stalinismo na Europa (ver notas *).
Assim, após o lançamento do filme no início da guerra Chaplin passou a
ser persona non grata ao establishment. Tal fato gerou uma
verdadeira perseguição pessoal ao artista, que sofreu acusações e investigações pela HUAC - Comissão para Investigação de Atividades
Antiamericanas - e posteriormente pela famosa comissão do senado do republicano Joseph McCarthy, na
qual vários norte-americanos acusados de serem comunistas ou simpatizantes de
tais ideais tiveram que se explicar perante os senadores, a famosa “caça às
bruxas”. Tal situação levou Chaplin a um exílio voluntário na Suíça, no início
dos anos 50, que só foi quebrado em 1972 quando a Academia de Hollywood
resolveu, de maneira envergonhada, homenageá-lo e premiá-lo com um Oscar
honorário.
Além das questões políticas, Chaplin
ousou: criticou de maneira jocosa, irônica e por vezes cínica, o que a
sociedade norte-americana defende até hoje como o que tem de mais valioso, que são seus princípios de liberdade, trabalho e
ascensão social, o famoso American way of
life. Nascido de uma família pobre, filho de atores mambembes do cenário londrino,
o artista representava justamente o protótipo dos valores norte-americanos, ou
seja, alguém que “veio de baixo” e com seu esforço, competência e habilidade
alcançou o topo da escala social. Entretanto, mesmo sendo fruto desta sociedade
que o acolheu, ao contrário de tantos que se renderam ao modelo hegemônico e
aceitaram imposições sobre seu estilo, Chaplin utiliza a linguagem
cinematográfica para criar através do seu personagem denominado de vagabundo a imagem de um herói urbano.
Em uma sociedade em que o sucesso é
ícone de ascensão social, onde supostamente
as oportunidades de conquista profissional e financeira são para todos, onde “o
céu é o limite” para se obter os bens materiais, transformar um “vagabundo” em herói, sem
dúvida alguma não poderia colocá-lo como uma unanimidade. Para muitos, o
simpático Carlitos era uma ameaça.
A arte cênica ao longo do tempo sempre
foi vista como um importante elemento de conscientização e transformação
social. Da Antiguidade temos o legado das famosas tragédias gregas. As comédias
sempre tiveram um apelo muito grande junto ao público, do teatro às
apresentações de ruas, dos circos etc. Chaplin insere neste contexto a nova
linguagem do cinema para ocupar este espaço, a das “fotos em movimento”: ao rir
das agruras cotidianas do personagem criado por Chaplin, as plateias se identificavam com seu dia a dia, principalmente em
uma época de reconstrução do país com a quebra da bolsa de valores em Nova York
(1929), onde a crise do capitalismo escancara ainda mais as contradições
daquela sociedade criada pelos sonhos de consumo.
Os traumas de sua infância, com pai
alcoólatra, mãe internada em manicômio, abandono e miséria transformaram-no em
um artista que, ao invés de renegar seu passado, colocou tais situações como protagonista
em suas tramas. Sua arte e seu estilo eram um meio que o levava a depurar seus
sentimentos mais íntimos, afastar seus fantasmas e colocar o homem comum_
sempre se metendo em confusões e sem dinheiro, mas cheio de afeto_ como o
centro do universo: o humanismo chapliniano. E é justamente disto que estamos
tratando quando analisamos Tempos
Modernos: não é uma suposta ideologia que deve rotular sua obra. Chaplin
critica o patrão, mas também apresenta o operário em algumas situações que
estão longe de caracterizá-lo apenas como vítima. Evidentemente que a crítica
maior e mais contundente é sobre o capital e por uma razão bem simples, não é a
máquina que representa o retrocesso, mas sim o mau uso deste instrumento que
transforma pessoas em não pessoas. Como humanista que era, a dissecação do
trabalho em uma linha de montagem desumaniza o homem, e é justamente este
processo que será duramente criticado pelo artista naquilo que ele tinha de
melhor em sua arte: o humor!
Em Tempos
Modernos, logo na apresentação a primeira imagem é a de um relógio com os
ponteiros em movimento. Anuncia-se aqui o tempo das fábricas, das indústrias, o
predomínio da medida cronológica monitorando as sociedades industriais e
pós-industriais, pois ainda é justamente este tempo ao qual nos reportamos e nos submetemos na chamada
pós-modernidade atual. Ao contrário de outros momentos históricos em que a
religiosidade e a vida agrária eram controladas pelo tempo da Igreja Católica
Ocidental através do badalar dos sinos, assim como a presença de relógios sem a
existência de ponteiros para os minutos, a partir da Revolução Industrial
(final do século XVIII e séc. XIX) o tempo
deixa de ser “lento” e passa a seguir o ritmo da linha de montagem. A
indústria e sua organização tornam-se um modelo que molda várias instituições,
até mesmo as escolas, que passam a ter uma estrutura similar, inclusive com os
sinais tais como os de uma fábrica. A linha de montagem estabelece não apenas o
ritmo do dinheiro como também o movimento da própria vida. É esta pressa, esta
rapidez que leva o trabalhador à completa neurose que irá determinar o sentido
de sua própria subsistência. Trata-se de um homem
máquina, ou a visão do homem enquanto continuidade desta engrenagem em que o
elemento humano perde a sua qualidade de ser
e transforma-se em um fim em si mesmo, ou a partir dos estudos de Marx, em um alienado, isto é, “(...) quando o ser
humano se afasta de sua natureza, (...) não controla sua atividade essencial,
pois os objetos que produz (as mercadorias) passam a adquirir existência
independente do seu poder e contrária aos seus interesses. Estado do indivíduo
que não mais se pertence, que não detém o
controle de si mesmo ou que se vê privado de seus direitos fundamentais,
passando a ser considerado uma "coisa". Falta de percepção de si
mesmo”. (Iniciação à Filosofia, Marilena
Chauí, ed. Ática, 2012, pág. 363).
Historicamente, ao deixar de ser um
artesão que acompanha todas as etapas da produção, o operário da nascente
indústria anula sua criatividade, submete-se ao controle completo e absoluto do
capital. É este ser fragmentado e sem poder sobre os seus próprios corpo e
mente _ satirizado nas cenas em que a linha de montagem é desligada para o
almoço e no processo repetitivo que bloqueia qualquer lampejo de criação_ que
Chaplin coloca este homem em sua real posição: a de um ser em profundo processo
de desumanização.
A genialidade de Chaplin manifesta-se
naquela que talvez seja a cena mais engraçada e, ao mesmo tempo, mais trágica,
surreal e assustadora: o momento em que um comerciante tenta vender ao
proprietário da indústria uma máquina que iria colocar na boca do operário o
alimento. Seu objetivo seria o de reduzir o tempo de almoço e consequentemente
agilizar a produção. Ao divulgar seu produto, o comerciante enaltece suas
qualidades dizendo: “Veja, o operário não
faz nada, a máquina faz tudo”. Estes são os Tempos Modernos...
O
paradoxo em uma sociedade que enaltece a liberdade acima de todo e qualquer
valor é o personagem de Chaplin fazer de tudo ao longo do filme para voltar à
prisão, onde por ter “sem querer” evitado uma fuga em massa, nosso simpático
protagonista passa a ter um tratamento diferenciado e privilegiado. Assim, ao
ganhar sua liberdade, o vagabundo faz
de tudo para perdê-la, voltar a ser preso é seu objetivo maior. Nestas cenas,
vemos então o humor irônico de seu criador em plena forma: de que adianta ser
livre em uma sociedade que nos aprisiona?
Em seus filmes, os personagens que
representam o poder e o Estado são constantemente humilhados, os guardas e a
polícia em si, suas maiores vítimas. Chutar a bunda de um policial era um
exercício metafísico. Nestas cenas o poder coercitivo do Estado e sua
autoridade são duramente criticados. Em Tempos
Modernos, a viatura policial mais parece um ônibus, um coletivo, pois para
com frequência para prender bêbados, desocupados e acima de tudo pobres.
Através do riso torna-se muito fácil identificar quem são os “cidadãos”, quem
os defende e contra quem. Há uma sequência esplêndida onde o vagabundo e sua amiga estão sentados na
calçada de um bonito bairro residencial, então um homem bem vestido sai para
trabalhar e sua esposa dona-de-casa despede-se do marido com entusiasmo. O vagabundo imita os gestos exagerados da
mulher e imagina como seria maravilhoso viver em uma casa como aquela. O seu
sonho encerra-se com a chegada de um guarda prestes a prendê-los por vadiagem.
A cena a seguir na loja de departamentos nos apresenta também o contraste entre
a sociedade de ostentação, que é para poucos, com a realidade de muitos que,
além do preconceito e humilhação, ainda enfrentam a forte repressão policial
(como na cena em que Chaplin sem querer balança uma bandeira caída de um
caminhão – provavelmente vermelha – e é preso como líder grevista e quando o
pai desempregado é morto em uma manifestação).
Não é apenas o capital que merece
críticas; em um momento tão difícil como aquele,
a conquista do emprego era uma realização. Assim, quando no final do filme
nosso protagonista consegue este feito, no mesmo dia_ para sua decepção e de
seu encarregado_ as máquinas novamente são paradas e mais uma vez inicia-se uma
greve. Os dois trabalhadores demonstram claramente a insatisfação diante
daquele quadro. Aqui, o trabalhador é colocado entre um patrão opressor e um
sindicato incapaz de realizar uma leitura adequada do momento.
Recentemente ouvi no rádio a
entrevista de um importante representante do sindicato patronal defendendo a
lei de terceirização que foi aprovada na Câmara dos Deputados e segue para o
Senado Federal. Infelizmente não me recordo de seu nome, mas entre outras
coisas chegou a dizer que era um absurdo o trabalhador ter uma hora para o
almoço, que muitos não utilizam este tempo e que poderiam, por exemplo, fazer
como nos EUA, onde o operário come um lanche em quinze minutos, podendo assim
sair antes do término de sua jornada de trabalho. Ao ouvir tamanho absurdo, foi
imediata a relação com a famosa cena de um coitado e atabalhoado Carlitos tendo
que comer rapidamente através de uma máquina que colocava o alimento em sua
boca.
Também em pleno 2015, a linha de
montagem continua funcionando tal como aquela imortalizada no filme, a
repressão policial faz parte dos principais Estados de Direito ditos
democráticos no mundo e não apenas das ditaduras denominadas de direita ou
esquerda, relógios de ponto, hoje eletrônicos, baseados na biometria são instalados em
instituições de ensino público, como se o trabalho intelectual de um
profissional da educação pudesse ser mensurado e quantificado. É possível
controlar o tempo de um trabalho criativo como o de um professor? Quando até
mesmo sobre um trabalho essencialmente mental se busca o controle e a
consequente alienação, devemos nos perguntar se Charles Chaplin era de fato um
comediante ou se estava muito além desta denominação quase quarenta anos depois
de sua morte.
Façamos um exercício: se estivesse vivo, se fosse brasileiro e filmasse Tempos Modernos em 2015, evidentemente
com algumas atualizações, como Chaplin seria visto por importantes setores de
nossa sociedade?
Será que seria rotulado de comunista? Esquerdista? Ou pior: será
que teria que ouvir Vai pra Cuba! ?
Evitar apontar erros, falhas que existem em
todos os sistemas econômicos e políticos existentes levam as pessoas a ter
opiniões fechadas. Muitos setores de nossa sociedade pretendem fechar os olhos
para situações em que o capital e sua estrutura são incapazes de resolver o que
Chaplin apontava com fina ironia oitenta anos atrás. Longe de uma pregação
revolucionária ou da substituição de um sistema por outro, Chaplin nos diz com Tempos Modernos que o capitalismo está
muito longe de ser o melhor dos mundos e que não querer ver que há diferenças
sociais gritantes e absurdas é um erro maior do que aquele cometido pela igreja
católica ao condenar Galileu Galilei. Infelizmente ainda sustenta-se em nosso
país o discurso da cordialidade do brasileiro e de uma total ausência de
conflitos sociais; para estes, denunciar a
desigualdade é algo não patriótico e capaz de incitar o ódio e uma luta de classes. É
este discurso antiquado, baseado no medo e na ignorância _ mas, ao mesmo tempo
oportunista_ de importantes setores sociais respaldado pelos mais importantes
veículos de comunicação de massa, que nos afasta de nossos reais problemas.
Para estes grupos, Charles Chaplin, o maior gênio da mais importante arte do
século XX, o cinema, deve ser visto apenas e tão somente como um comediante e
seus filmes, assistidos apenas como entretenimento. Ou seja, rir e não pensar.
Chaplin não cria em Carlitos uma
consciência de classe, mas faz de seu personagem central o protótipo do homem
desconcertado diante do mundo que o cerca. Se Euclides da Cunha caracterizou o
sertanejo como um forte, Chaplin com seu personagem recria a famosa obra de
Dali a persistência da memória de
1931 onde surge uma nova visão de homem: a da resistência e resiliência e,
acima de tudo, a coragem e o otimismo diante de tantas incertezas. A
emocionante cena final é um convite a tudo isso.
NOTAS
(*)