domingo, 29 de junho de 2014

HARRY, O AMIGO DE TONTO





http://www.imdb.com/title/tt0071598/

RESENHA: HARRY, O AMIGO DE TONTO 

FICHA TÉCNICA:
DIR: Paul Mazursky / EUA / 1974
Elenco: Art Carney, Ellen Burstyn, Larry Hagman e Tonto.

Qual o papel do idoso na sociedade contemporânea? Talvez seja esta a principal questão suscitada pelo filme Harry and Tonto. Outros filmes também tentaram responder este questionamento, por exemplo, Umberto D (Vittorio de Sica, 1952), e mais recentemente Estamos Todos Bem (Giuseppe Tornatore, 1990). Enquanto o primeiro nos apresenta uma velhice crua e que nos choca pelo distanciamento da câmera semidocumental do neorrealista De Sica, o segundo nos comove com um apelo sentimental de um pai em busca dos filhos. Já Harry and Tonto pode ser classificado como estando no meio termo entre os dois, embora Tornatore provavelmente tenha “bebido na fonte” do filme de 74, pois ambos são um road movie da terceira idade.
Interessante nos atentarmos para o fato de que um filme com olhar para o idoso tenha sido produzido pouco depois do auge da contracultura com o verão do amor de 67, o movimento estudantil de 68, o Woodstook de 69 e o movimento hippie, talvez prenunciando a derrocada dos sonhos utópicos seiscentistas ou, como bem definiu Lennon, a constatação de que “o sonho acabou”.
Art Carney, vencedor do Oscar de melhor ator por este filme, é um professor aposentado de literatura com 70 anos de idade, fã de Shakespeare que o recita em momentos de tensão. Tem como amigo inseparável um gato alaranjado a que chama de Tonto, nome do personagem indígena que acompanha o Cavaleiro Solitário em seriado televisivo (e recentemente em longa da Disney estrelado por Johnny Depp). O gato é a sua razão de viver e motivo da peregrinação que Harry realiza ao longo do filme. Além de Tonto, um amigo polonês judeu crítico do capitalismo e sua casa são o que restam de suas “raízes”, além é claro, da família: filhos, netos, nora.
Logo nas primeiras tomadas vemos vários idosos andando pelas ruas de Nova York ou sentados conversando nas praças. Ao contrário do que poderíamos supor, mesmo os que estão sentados não sugerem passividade, algo que iremos constatar com o protagonista.
                    Ao longo do filme, Harry vai perdendo literalmente suas referências, começando pela casa que foi demolida, na verdade todo o conjunto residencial, para dar lugar a um estacionamento. Apesar de perdas serem um clichê em filmes para idosos, a maneira como a câmera corta de uma cena a outra e as reações de Harry denotam outro olhar: sua postura diante dos problemas, ora paciente e às vezes aparentemente descompromissado, colocam como um personagem sábio. Mas não aquela sabedoria sóbria, com uma visão estereotipada de que todo velho é bom e tem ensinamentos a nos legar. Harry não busca dar “lição de moral” em ninguém, o que ele quer é estar em paz, sem que para isso tenha que morrer.
          Sua família é como qualquer outra: o filho solteirão falido, imaturo emocionalmente e que aparentemente não fez nada de significativo ao longo da vida, a filha que passou por três casamentos e que só gosta do pai quando discute com ele, o mais velho que quer que o pai more com ele, mas é casado e, como sempre acontece, sua esposa rejeita o sogro, o neto estressado e o outro que faz uma terapia do silêncio comunicando-se apenas através da escrita. Enfim, nenhuma novidade em se tratando de família.
          Ao iniciar um trajeto rodoviário com a carteira vencida há mais de quinze anos e, ao se encontrar com um vendedor, uma prostituta, um religioso, um índio (este encontro se dá na cadeia), uma adolescente menor de idade fugindo de casa e, o próprio neto que o procura não só para dizer que acabou com o silêncio, mas para acompanhá-lo, Harry não julga ninguém e coleciona inúmeras pequenas aventuras que qualquer um poderia enfrentar, mas onde não há lugar para pessimismo e tristeza, pelo menos não para ele. Esta talvez seja a grande “sacada”: ao contrário dos outros filmes citados nesta resenha, em Hanry and Tonto a vida nos é apresentada como deveria ser enfrentada: sem pessimismo e tristezas, mas também sem um otimismo exagerado, principalmente com a experiência de quem já enfrentou muita coisa. Assim fica fácil entender por que naturalmente os jovens se apegam com Harry; afinal de contas, permitir que uma jovem menor de idade e fugindo de casa e o neto viajem em seu carro para viver em uma comunidade de jovens não é para qualquer um. Apenas alguém que se encontra em situação similar, apesar da idade, poderia ter a consciência e o não receio em aceitar a premissa de que para se cobrar responsabilidade é necessário que se conceda a liberdade.
Para Harry, tomar tais decisões não era difícil, mesmo que para isso tenha orientado o neto da seguinte forma: “Não se esqueça, prometa-me telefonar para sua mãe todos os dias”.
          Se há uma mensagem ou uma reflexão para a pergunta do inicio deste texto, talvez seja um clichê: a vida, mesmo na terceira idade, pode sempre ser um recomeço, seja através de uma nova moradia, a possibilidade de um novo amor, novos amigos (pessoas ou animais) e um novo trabalho. Harry que o diga e demonstre.
          Na cena final, caminhando pela praia, observa um garoto que está construindo um enorme castelo de areia. Diante da intromissão do “velho” o garoto mostra a língua. Harry não se zanga, sorri retribuindo a malcriação. Ele sabe muito bem os significados da língua para fora e daquele castelo de areia.

          Ao contrário do pessimismo dos filmes com esta temática, este aqui pode e deve ser indicado a todos aqueles que se consideram de terceira idade e também para aqueles que irão chegar lá.


















domingo, 22 de dezembro de 2013

FAUSTO


                                    http://www.cineplayers.com/filme.php?id=905
 
RESENHA – FAUSTO
FICHA TÉCNICA – Alemanha / 1926 / 106'
DIREÇÃO: F.W. Murnau
ELENCO: Emil Jannings / Gösta Ekman / Camilla Horn
Em Fausto, de F.W. Murnau, temos a linguagem cinematográfica perpetuando a famosa história mítica germânica, que foi imortalizada pela literatura de Goethe no século XIX.
          A ação transcorre no final da Idade Média quando há um embate entre o bem e o mal, entre um mensageiro de luz e o diabo. Em disputa, a Terra e seus habitantes. Como definidor deste conflito um médico sábio, idoso e querido pela comunidade: Dr. Fausto.
          Apesar de sua erudição e preocupação com o outro, em seu intimo há uma busca incessante pelo conhecimento supremo, uma busca pela “pedra filosofal”. E é justamente nesta sua procura pelo desconhecido que o mal irá estender seus tentáculos para corrompê-lo. Enquanto o mensageiro de Deus antecipa Rousseau ao dizer que “as pessoas são boas por natureza”, o diabo irá contra-argumentar que há em Fausto um sentimento capaz de levá-lo à ruina: o saber e a razão acima de todas as coisas.
          Estamos diante da dualidade que norteia o filme: fé e razão, ideais que se dispersam na mesma proporção em que o enviado do diabo, Mefistófeles, resolve tentar Fausto. Uma leitura um pouco mais atenta e podemos concluir que a busca pelo saber distancia o homem de Deus e, apesar da fé ser representada pela luz, afugenta o homem do conhecimento e o coloca no obscurantismo presente em todas as religiões.
          As decisões de Fausto irão determinar o futuro da humanidade: seguirem devotos de Deus e guiados pela fé ou se entregarem aos prazeres e caprichos mundanos, aproximando-se das mentiras, intrigas e maledicências, que são instrumentos daquele que representa as sombras? Sombras, aliás, que estão presentes em todo o filme.
           Para atingir seus objetivos, Mefistófeles lança a peste sobre todos. Diante de tanto sofrimento e dor, Fausto cai e não consegue se levantar mais. Consultando um livro de feitiçarias, evoca a presença do Maligno e sua força para enfrentar o mal que está alojado naqueles que foram esquecidos por Deus. Alguns poderão considerar orgulho e presunção de sua parte tentar fazer o papel de Deus, outros, ao contrário, tendem a considerá-lo um humanista apaixonado pelo seu ofício de curar vidas e inconformado com a dor alheia.
          Diante de Mefistófeles Fausto arrepende-se. Tenta fugir, mas é perseguido até em sua própria casa. É inútil ignorar presença tão ilustre que, ao contrário do livro de Goethe, foi evocado pelo próprio protagonista. Diferentemente de O retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde (1854 – 1890), aqui o mal não se apresenta diante da soberba e orgulho, mas diante da desesperança de Fausto. Observamos em diferentes closes de seu rosto, bem como através de seus gestos ritmados pelo sofrimento, seu estado de espirito e acabamos nos compadecendo de seus atos. Mesmo apelando para o mal, seus sentimentos são nobres.
          Conhecendo ou não o mito de Fausto e a versão de Murnau, temos uma certeza: estamos diante de um anti-herói por ter se permitido corromper, mas não deixamos de “torcer” por ele, por sua humanidade...
          O grande entrave está justamente no dilema moral e, acima de tudo religioso _ não nos esqueçamos do contexto histórico medieval_: posso atingir o bem utilizando instrumentos opostos para alcançar este fim?

Revestido do poder concebido pelo demônio, Fausto cura um doente. “Milagre! Milagre!” Gritam todos e logo uma turba de maltrapilhos e desesperados buscam tocar Fausto para atingir a cura. Murnau o transforma em uma nova versão do Cristo, mas um Cristo às avessas. Em seguida o encanto se desfaz e, diante da dificuldade em curar e até mesmo de se aproximar de uma doente que carrega um crucifixo, Fausto é posto à prova e taxado de estar mancomunado com o diabo. Ao ser apedrejado, a figura que sintetizava o Velho (Moisés guiando seu povo) e o Novo Testamento (Cristo curando) confronta-se com sua dura realidade.
          Quando mencionamos o mito de Fausto, o que até os leigos conhecem é sobre a eterna juventude. Diante da fuga desesperada de um Fausto quase linchado, Mefistófeles o seduz com a beleza de outrora. Firmam um pacto onde o diabo será seu servo em troca de sua alma.
          Como não ser seduzido diante da beleza das mulheres, da riqueza e da juventude? Ainda mais após ser destituído de seu saber, sua honra e sua glória na comunidade moribunda que o abandonou?
          Aceitando o acordo, Fausto viaja pelo mundo ao lado de Mefistófeles em maravilhosos e inovadores planos aéreos das lentes de Murnau, com a sombra da capa do seu companheiro encobrindo e escurecendo a tudo e a todos. Ao final de tantas orgias (talvez tenham se passado anos), Fausto sente-se abandonado, solitário e vazio _ arquétipo do ser humano? _ retorna então à sua vila e a encontra livre da peste e em festejos de Páscoa. Interessante observar que o sentimento de culpa e sofrimento são intrínsecos ao protagonista: o mal o acompanha, e é a partir dele que as tramas e intrigas maléficas se propagam para os demais personagens.
          A paixão por Margarida escancara sua ruina moral e, ao mesmo tempo, sua redenção.
          O filme de 1926 representou o final da escola Expressionista alemã (escola que irá exercer enorme influência em outras produções, como por exemplo, os clássicos de terror da Universal na década de 30), onde os efeitos de sombras e luz denotam a subjetividade dos personagens e, no caso, a visão pessoal do autor/diretor.
          Murnau utilizou vários efeitos especiais inovadores para a época e que seriam posteriormente utilizados em Metrópoles de Fritz Lang, fez uso de inúmeras gravuras e pinturas que as recriou em diversas cenas. Neste campo citamos os desenhos de Gustave Dorè (famoso no século XIX pelas ilustrações de grandes clássicos da literatura, como Dom Quixote) e, Rembrandt. Mas, além deles, outras pinturas receberam várias adaptações e tornaram-se parte integrante do universo cinematográfico de Fausto.
          A direção de arte, a riqueza e o detalhe dos cenários, o trabalho artesanal de todos os envolvidos na produção fazem de Fausto um marco na linguagem cinematográfica. A impressionante atuação de Emil Jannings (1884-1950) como Mefistófeles e de Camilla Horn (1903-1996) como Margarida, mesclando em suas cenas beleza casta, erotismo e o mais profundo sofrimento, enriquecem ainda mais aquela que foi considerada a obra-prima do importante diretor F.W. Murnau.
          Fausto é uma brilhante parábola sobre as relações de poder e conquista entre os homens. O bem e o mal representados pela fé e ausência desta reforçam os atos morais que são resultantes de ações humanas e não de intervenções divinas. O mensageiro da Paz e seu oposto representam estes dilemas, nossos pequenos atos cotidianos que podem fugir ao nosso controle e trazer consequências nefastas àqueles que nos cercam e que até mesmo amamos _ como a relação entre Fausto e Margarida, esta última apresentada em várias cenas como uma perfeita Virgem Maria que, ao tentar salvar o filho do frio congelante, nos leva a imaginar a mãe do Cristo rogando por todos os pecadores.
          Coube ao Nazismo, poucos anos depois da estreia de Fausto, levar à concretude o sorriso de Mefistófeles: o dilema moral deixou de existir na sociedade nazista e a decisão individual de Fausto tornou-se um delírio coletivo.
 

 
 


quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

FEIOS, SUJOS E MALVADOS


                                       http://filmow.com/feios-sujos-e-malvados-t2648/

RESENHA: FEIOS, SUJOS E MALVADOS (1976) / 115'
DIR: Ettore Scola
ELENCO: Nino Manfredi, Maria Santella, Francesco Anniballi
Como bem disse um crítico de cinema, Ettore Scola, um realizador geralmente identificado por obras poéticas, realizou aqui uma das obras mais corrosivas e debochadas do cinema.
A trama gira ao redor do personagem Giacinto (esplêndido Nino Manfredi) que mora em um barraco com esposa, seus dez filhos, netos, sobrinhos*, genros, noras e a mãe (a "nonna"). Anos atrás ele sofreu um acidente que praticamente o cegou de uma vista. Vive então da pensão e esconde dentro de “casa” o dinheiro que recebeu de indenização. Todos o odeiam sem exceção. O cenário se completa com os outros moradores da favela/comunidade: as irmãs usurárias (qualquer semelhança com Crime e Castigo de Dostoiévsky não é mera coincidência), o vendedor de produtos de limpeza que vai até os moradores com seu caminhão vender seus produtos, e os demais moradores, todos é claro representados como feios, sujos e malvados. Aqui não há lugar para redenção, todos são culpados por seus atos. Mesmo que não saibamos quais são tais atos, basta observarmos com um pouco de atenção a aparência sórdida de tais personagens para, de imediato, emitirmos juízos de valor depreciativos. Ou seja, o tão propalado e apregoado politicamente correto de nossos tempos passa bem distante das falas e imagens que se sucedem em um ritmo acelerado: os moradores e parentes de Giacinto que saem para roubar, o sujeito sem perna, o cachorro sem uma pata, os ratos e ratazanas que circulam livremente em vários espaços, o velho doente que pede chorando para a enfermeira masturbá-lo, a espingarda e o dinheiro de Giacinto como símbolos do poder, a amante na mesma cama que a esposa, a promiscuidade sexual de todos, etc, etc, etc.
Em todas as cenas, a miséria que transforma tudo em sordidez e a todos em canalhas. De simbólico, não nos esqueçamos nunca da cúpula da Basílica de São Pedro, que no plano ao fundo da cena a tudo observa e em nada é capaz de  intervir, assim como o ritual do batismo que une toda a família em seus interesses mais torpes e ao mesmo tempo revela o distanciamento entre espírito e matéria, entre seres que, da extrema miséria, não são capazes de alavancar qualquer sentimento de humanidade.
Se Karl Marx fosse depender destes trabalhadores urbanos para realizar sua revolução, teria que se conformar com sua teoria do lúpen. Pessoas que perderam toda a dignidade humana e incapazes de se organizar politicamente, economicamente e socialmente visando a transformação do estado em que vivem. Aqui o sistema capitalista (e sua exclusão) está tão enraizado que nada mais é possível, a não ser tentar uma brecha para entrar neste meio, onde o mais importante é ser um consumidor. Fato este magistralmente retratado no sonho de Giacinto onde felicidade é sinônimo de consumir e na proteção da mãe à filha que se prostitui como “modelo”. Tudo que represente alguma forma de ascensão social é válido.
Vivendo como animais e com total ausência de princípios morais, éticos e religiosos, os personagens de Scola são universais, presentes em vários tempos e espaços. Não estão apenas em um tempo cronológico, mas sim em um tempo histórico, eles estão na Roma dos césares, na Idade Média do clero católico, nos reinos católicos e protestantes do humanismo renascentista, no alvorecer da revolução Industrial, nos totalitarismos, na democracia capitalista, no que se denominou globalização. Basta olharmos ao nosso lado para identificar não a caricatura, mas sim os reais personagens de Scola.
De poesia resta a personagem ícone do filme, a garota que todas as manhãs fica responsável por levar todas as crianças da favela para uma área cercada que mais se assemelha a um chiqueirinho e que ao término da trama se apresenta grávida para as câmeras. Ou seja, aqui, o espaço da esperança também está ausente e dilacerado.   

PAPILLON

                          http://www.imdb.com/media/rm2493426688/tt0070511?ref_=tt_ov_i

RESENHA: PAPILLON / 1973 / 151’
DIREÇÃO: Franklin J. Schaffner
ELENCO: Steve McQueen / Dustin Hoffman
                                              
                                                                    Esta resenha é para meu grande amigo Márcio Leite.
            
            O filme é baseado em obra homônima do francês Henry Charrière, que esteve preso na cadeia de segurança máxima chamada de a Ilha do Diabo no período de 1931 a 1944. Em 1968 “escreveu” o livro e faleceu em 1973, ano da produção do filme. Esta é a versão oficial. Entretanto, o que poucos sabem é que o verdadeiro Papillon chamava-se Renè Belbenoit e fugiu juntamente com Charrière. Ao contrário deste, era um homem instruído (falava quatro idiomas) e acabou por se radicar em Roraima, no Brasil, onde faleceu em 1978, aos 73 anos. Foi este personagem que teve seus manuscritos roubados por Charrière que, com a ajuda de um jornalista francês, publicou a obra de grande sucesso como de fato fosse ele o verdadeiro Pappilon (inclusive chegou a tatuar uma borboleta em seu peito tal como o verdadeiro). Por fim, nenhum dos dois acabou por se beneficiar do verdadeiro sucesso da obra; enquanto  Belbenoit faleceu esquecido no Brasil, o falsário Charrière faleceu cinco anos antes, pobre e com sérios problemas com o alcoolismo.
            Esta resenha não irá se preocupar com a celeuma entre os personagens e tampouco com a obra literária. O foco aqui será exclusivamente a produção cinematográfica.
            Steve McQueen _ em espetacular atuação_ é o personagem título, preso e encaminhado para a famosa Ilha do Diabo, prisão de segurança máxima localizada na Guiana Francesa e local para onde eram encaminhados os prisioneiros franceses, os degredados do país europeu. Sua acusação: a de ter matado um gigolô, fato este negado pelo protagonista. Hoffman interpreta Louis Degà, um falsário que enriqueceu aplicando vários golpes e que conta com a segurança de Papillon para se manter vivo. É este personagem que financia os recursos para a fuga de Papillon. Enquanto este último sonha com a fuga desde o primeiro momento, o segundo acredita nos meios legais, a ajuda da esposa e do advogado para obter sua saída da prisão.
             A prisão assemelhava-se a um campo de concentração. Na prática, o objetivo era o de eliminar o maior número possível de prisioneiros, e não recuperá-los para o convívio em sociedade. As punições eram extremas: primeira tentativa de fuga, dois anos na solitária, segunda tentativa, cinco anos de solitária e mais o dobro de tempo da pena imposta, para penas mais graves, a morte na guilhotina (algo tão bem conhecido pelos franceses). Depois de todos os anos cumpridos, o infeliz poderia viver “livre” na ilha como colono (tinha uma pequena casa, com a criação de porcos e uma horta), mas a tentativa de fuga era suicídio: a ilha era cercada de tubarões e outros perigos. Alguns se tornavam “caçadores de prisioneiros após terem passado por todas as etapas. De qualquer forma, a ida para a ilha representava o fim do convívio social.
            Os poucos habitantes que se tornavam colonos chegavam a esta situação totalmente debilitados fisicamente, envelhecidos e quase que insanos. Os demais não passavam dos primeiros anos: ou cometiam suicídio, ou ficavam doentes, ou eram mortos nas tentativas de fuga (os guardas atiravam na cabeça do prisioneiro). Enfim, não era por acaso que a ilha era chamada de Ilha do Diabo.
            Algumas cenas são emblemáticas. Os vários anos vividos por Papillon comendo baratas e outros insetos na solitária, quando se recusa a fornecer o nome de Degà como quem estava lhe encaminhando coco nas refeições; fugindo de indígenas do Caribe, quando vemos em câmera lenta as expressões do rosto de Papillon (cenas que lembram, e muito, outro clássico de Schaffner, O Planeta dos Macacos) e o sonho emblemático do protagonista, em que, julgado por um júri, o juiz lhe dá a sentença: é culpado não por ter matado um homem, mas sim pelo maior crime que alguém pode cometer, que é o de ter desperdiçado sua vida. Simplesmente sensacional!!!
            Schafnner dá vida a Pappilon: ao humanizá-lo, transforma-o em um verdadeiro herói. Alguém acima do bem e do mal. Não estamos preocupados em saber se ele é um criminoso ou não, aliás, o sistema carcerário produzido pelos “civilizados” franceses que nos legaram os ideais de liberdade é tão hediondo que até mesmo o maior assassino poderia ser transformado em herói, sendo submetido a tratamento tão desumano. O que a lente de Schafnner enfatiza são os closes de um inconformismo sempre racional de McQueen; ele está sempre, mesmo nos piores momentos, centrado naquilo que deseja. Para ele, a fuga não é um sonho distante, mas sim uma realidade muito próxima, principalmente quando percebe que pode contar com o apoio financeiro de Degà. Assim, uma amizade que se inicia por interesses transforma-se em algo puro e cristalino. Até mesmo como um fim em si mesma, razão para enfrentar a luta pela sobrevivência cotidiana.
            Outra cena tocante é o encontro de ambos após tantos anos de solitária por parte de Pappilon. Degà chega a abraçá-lo e beijá-lo, algo impensável naquele mundo com tanta crueza e onde a expressão de qualquer sentimento parece tão desvinculada da realidade. Já ao término do filme, Degà mescla sua racionalidade e medo contido com momentos da mais pura insanidade. E é justamente nesta mescla entre seus atos e ações que conseguimos identificar o contraponto em Papillon com toda sua grandeza ao continuar mantendo ainda mais próxima de si sua “loucura racional”: a de sempre acreditar na fuga e na liberdade. Neste momento, o sentimento de dar a vida por uma causa, aproxima Papillon de outros ícones tão bem representados no cinema: El Cid, Ben Hur, Spartacus...
            Papillon também pode ser lido como um libelo contra toda forma de repressão e autoritarismo e como um ser humano pode e deve, por uma razão ética que está subjacente a todo individuo, lutar contra a opressão com todos os meios de que puder dispor, por mais insignificantes que aparentemente eles possam se configurar. Exemplos históricos recentes existem: Gandhi, Martin Luther King, Mandela. Papillon, ao contrário destes, não tem uma causa social e política a defender, mas o seu ideal é a premissa de tudo que se configura, é o alfa e o ômega, o cerne de “no início era o verbo”: a luta pela própria vida e sua liberdade.
            Um filme pesado, mas nunca lento e arrastado. Às vezes claustrofóbico com sua fotografia escura que realça ainda mais os sofrimentos e a angustia dos personagens. Que merece ser visto e revisto. Conhecido pelas novas gerações que assistem a uma Hollywood comercial, voltada apenas para explosões e cérebros vazios. Aqui temos um clássico de quando o cinema era cinema em sua plenitude.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O MAGNÍFICO TRAÍDO - IL MAGNIFICO CORNUTO



O MAGNÍFICO TRAÍDO / IL MAGNIFICO CORNUTO
Produção: Itália / 1964
Direção: Antonio Pietrangeli
Elenco: Claudia Cardinale / Ugo Tognazi / Gian Maria Volonté
Duração: 118 min.

Sinopse:Bem sucedido fabricante de chapéus vive feliz com sua família até que se envolve com uma respeitável senhora casada. Espantado com a esperteza de sua amante para ludibriar o marido, ele começa a se perguntar se a própria mulher não faz a mesma coisa.

            Com roteiro de Ettore Scola, temos aqui mais um filme italiano que trabalha muito bem a questão do amor e ciúme levado às últimas consequências, algo que só o cinema italiano soube fazer com maestria, evitando clichês e sabendo mesclar muito bem drama com comédia de costumes. Juntamente com Divórcio à Italiana (1962) e Seduzida e Abandonada (1963), ambos de Pietro Germi, O Magnífico Traído (1964) rompe com a tradição neorrealista do cinema italiano ao criar inúmeras situações cômicas, mas ao mesmo tempo mantêm traços ainda muito fortes desta filmografia ao expor um quadro social complexo.
            Logo nas primeiras cenas, enquanto acompanhamos o andar confiante daquele que logo identificamos como o protagonista, ouvimos a música que antevê a trama que irá desordenar o mundo deste personagem burguês: “Na noite em que parti, eu não dormi pensando em você/ Tinha um pressentimento e um grande tormento dentro de mim/ Pensava em não te encontrar, em não te ver/ No dia em que cheguei, você não estava me esperando...
            Ao contrário da maioria dos filmes europeus e italianos em particular, que procuram nos apresentar personagens “gente como a gente”, aqui estamos diante da burguesia italiana. É este microcosmo burguês que estará nas quase duas horas de filme sendo apresentado a nós com todas as suas nuances.
            Nas primeiras cenas conhecemos Andrea e sua esposa Maria Grazia, além de vários outros casais, todos bem situados em suas lindas casas e carros. A vida deles é recheada de convenções sociais, com jantares, palestras, conversas sobre negócios e amenidades onde a fofoca e a consequente maledicência dão o tom. Em um destes jantares a traição de Andrea se manifesta com um dos seus pares, a esposa de outro importante industrial. O que poderia tornar-se uma rotina diante da facilidade transforma-se em um pesadelo para nosso protagonista, uma vez que ele procura encontrar uma justificativa, uma razão para que sua amante traísse. Diante da tranquilidade desta, que, entre outras coisas, diz estar apaixonada pelo marido, Andrea começa a entrar em uma profunda confusão mental, onde mais do que ter o sentimento da culpa em trair, a possibilidade em ser o traído o leva ao desespero.
            Neste momento do filme temos várias cenas engraçadas, onde uma série de consequências o levam constantemente a interrogar a esposa. Ele procura a todo o momento encontrar alguma brecha que confirme sua tese de que é realmente vítima de traição. Por outro lado, Maria continua agindo com a maior tranquilidade diante das investidas insanas do marido. Ao contrário do clássico Dom Casmurro, onde permanecemos diante da dúvida se houve ou não traição de Capitu para com Betinho, aqui é muito fácil percebermos que a traição está apenas no imaginário de Andrea, que inclusive fantasia várias cenas da esposa em momentos íntimos com vários homens do seu ciclo social.
            A postura de Andrea realça muito bem os padrões sociais de uma sociedade machista onde o receio em ser cornudo (cornuto), vai muito além de qualquer sentimento de culpa por parte do homem em sendo ele o traidor, o que ocorre aqui. O personagem de Tognazi é casado com uma belíssima Cláudia Cardinale que, se não bastassem todos os seus atributos físicos, demonstra em várias cenas ser uma esposa dedicada, carinhosa e leal. Por outro lado sua amante, com quem ele aparece em apenas duas cenas íntimas, também demonstra ter um casamento ideal, ou seja, trai também sem pudor e mantém um casamento aparentemente sólido em todos os aspectos. Assim, o roteiro brinca com esta possibilidade da traição ser algo inato tanto em homens como em mulheres, algo que há tempos vem sendo discutido por psicoterapeutas que vez ou outra nos “brindam” com matérias na mídia. Isto é, continua sendo um assunto em voga e aparentemente sem estarmos diante de uma conclusão a respeito. Vejamos, por exemplo, o que nos diz a psicanalista Regina Navarro Lins, que lançou recentemente O Livro do Amor, volumes I e II, que procura traçar um panorama histórico deste sentimento desde a época da Pré-História até os dias atuais:
“(...) Não li em lugar algum o que me parece mais óbvio: embora haja insatisfação na maioria dos casamentos, as relações extraconjugais ocorrem, principalmente, porque as pessoas gostam de variar. O casamento pode ser plenamente satisfatório, do ponto de vista afetivo e sexual, e mesmo assim as pessoas terem relações extraconjugais. Penso que está mais do que na hora de se refletir sobre a questão da exclusividade. Essa é a maior preocupação das pessoas, mas ninguém deveria ser cobrado por isso. Em vez de nos preocuparmos se nosso parceiro (a) transou com outra pessoa, deveríamos apenas responder a duas perguntas: ‘Me sinto amado (a)? Sinto-me desejado (a)? ’ Se a resposta for positiva, ótimo. O que o outro faz quando não está comigo não é da minha conta, não me diz respeito. Não tenho dúvida que assim as pessoas viveriam muito melhor.” (em http://mulher.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2010/11/23/ter-parceiro-unico-pode-se-tornar-coisa-do-passado-diz-psicanalista.htm pesquisa em 26/12/12).
            Lins não termina aqui, tece várias interpretações libertárias sobre sua visão do que é o amor e como este sentimento mudou ao longo do tempo e como está caminhando para o futuro. Entretanto, enfatiza que, mesmo entre os seus pares, são poucos aqueles que pensam de forma similar a ela, citando os falecidos Roberto Freire e José Ângelo Gaiarsa. De qualquer forma, não deixam de ser pertinentes tais interpretações para roteiros como o de O Magnífico Traído.
            Impossível restringir a análise deste filme apenas sob a ótica romântica. Como pano de fundo é a política que está sendo revista. Nos anos 60 temos a divisão entre direita/esquerda, luta de classes, a predominante influência das questões sociais na filmografia italiana, a forte presença do PCO italiano, nada disso pode ser ignorado. Nada é por acaso, assim como Andrea ser fabricante de chapéus, que antes eram parte obrigatória da indumentária dos homens e que no filme surgem como uma possível peça em desuso. Como brinca José Simão, “o chifre faz parte do homem, o touro é que o tem de enxerido”. Assim, é a burguesia italiana que é colocada em cheque. A traição e as constantes trocas entre os casais burgueses nada mais é do que um meio para explicitar a decadência das relações capitalistas. Os burgueses nos são apresentados como fúteis e presunçosos e seus problemas como banais e egoístas. Neste sentido, o personagem Belisario, um empregado desde os tempos do pai de Andrea e que o acompanha desde a infância, em determinado momento diz a Maria Grazia: “(...) talvez porque tenhamos outras coisas em que pensar, acreditamos que os ciúmes são um luxo de quem tem dinheiro e saúde”.
            É justamente este personagem Belisario, que não é burguês, aquele que consegue através da narrativa dos seus problemas familiares - sua esposa que teve quatro abortos e que apresenta surtos psicóticos - nos mostrar que são nas lutas cotidianas que temos o verdadeiro combate e que as crises de um casal burguês são vazias de significados. Enquanto o mesmo Belisario é sinônimo de equilíbrio, bom senso e ético em suas condutas, sabemos que Andrea, ao contrário, desde criança nos mostra seu caráter ao roubar da própria caixa registradora do pai e pedir a intervenção do fiel empregado para ajudá-lo.
            A cena final, onde voltamos a ouvir a música tema da abertura, nos apresenta a dança de três esposas burguesas que marcam encontros de alcova com outros homens enquanto seus maridos, sentados, conversam e marcam uma caçada para domingo. Mal sabem eles que o objeto da caça já é sabido e conhecido de suas esposas. Assim, este desejo em enganar que é implícito ao ser humano ganha uma dimensão política: a traição conjugal é uma metáfora para explicar as relações de dominação e de poder que se perpetuam no seio da classe burguesa e se impõem sobre as demais classes sociais.   

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

PEIXE GRANDE E SUAS HISTÓRIAS MARAVILHOSAS



PEIXE GRANDE / BIG FISH

Produção: EUA / 2003

Direção: Tim Burton

Elenco: Ewan McGregor / Albert Finney / Jessica Lange

Duração: 125 min.

Sinopse: Durante toda sua vida, Edward Bloom tem sido um homem de grandes sonhos, paixões e histórias inesquecíveis. Em seus últimos anos de vida ele continua sendo um grande mistério para seu filho William. Agora, na tentativa de conhecer seu pai de verdade, Will começa a juntar as peças para montar uma ideia real de seu pai através de flashbacks de suas histórias maravilhosas.

 

          Após assistir ao filme de Tim Burton, li o livro que o originou: Peixe Grande de Daniel Wallace, publicado nos EUA em 1998. No livro o personagem interpretado por Finney nos delicia com passagens suprimidas na adaptação cinematográfica. Cito uma delas:

          “_ Acredito em quê?_ ele me pergunta, fitando-me com aqueles olhos, aqueles olhinhos azuis, acuando-me. Então eu digo.

          _ No Céu _ digo.

          _ Se acredito no Céu?

          _ E em Deus, e tudo o mais _ digo por que não sei. Não sei se ele acredita em Deus, ou na vida após a morte ou na possibilidade de todos nós voltarmos como outra pessoa ou outra coisa. Também não sei se ele acredita no Inferno, ou em Anjos, ou nos Campos Elíseos ou no Monstro do Lago Ness. Nunca conversamos sobre esses assuntos quando ele estava bom. (...)

          _ Que pergunta _ ele diz, com uma voz forte. _ Não sei se posso dizer que acredito ou que não acredito. Mas isso me faz lembrar, e me interrompa se já tiver contado antes, do dia em que Jesus estava guardando os portões para São Pedro. Bem, Jesus está dando uma mãozinha para ele quando um homem vem arrastando os pés pelo caminho do Céu.

          “O que foi que você fez para entrar no Reino do Céu?” Jesus pergunta a ele.

          E o homem diz: “Bem, não muito na verdade. Sou apenas um pobre carpinteiro que levou uma vida sossegada. A única coisa notável de minha vida foi meu filho.”

          “Seu filho?” Jesus diz interessando-se.

          “Sim, ele foi um filho incrível,” o homem diz. “Teve um nascimento inteiramente fora do comum e mais tarde sofreu uma grande transformação. Também se tornou muito conhecido em todo mundo e é amado por muitos até hoje.”

          Cristo olha para o homem, dá um abraço apertado nele e diz: “Pai, Pai!”

          E o velho o abraça de volta e diz: “Pinóquio?”

          Ele chia, eu sorrio, sacudindo a cabeça. (Peixe Grande, de Daniel Wallace, Ed. Rocco, pág.77/78, 2008).

          O traço pessoal de Burton permanece, quase dez anos depois, como um show de imagens que valorizam e até mesmo complementam o romance de Wallace. Para alguns críticos, o filme supera o livro. Não vamos entrar em um sistema comparativo, mas isto sim procurar mergulhar na história que é, na chamada literária, uma fábula do amor entre pai e filho.

          O pai é a fantasia e o emocional acima de todas as coisas, o filho é o caráter pragmático, lógico e real sobre tudo que o cerca. Em um mundo tão distante e ao mesmo tempo tão próximo, como podemos concluir ao término do filme, a relação entre pai e filho que floresce deste antagonismo é traumática e conflituosa, principalmente para Will, que, prestes a se tornar pai pela primeira vez, sente uma necessidade ainda maior de saber quem de fato é e foi seu pai.

          Conversando com sua nora, Edward diz que o filho “é capaz de contar uma história com todos os fatos, mas sem sabor.” Edward é na verdade, um grande “contador de histórias” e seu personagem me reporta à celebre cena de O homem que matou o facínora, de John Ford, onde um jornalista inescrupuloso(?) diz: “Quando a lenda se torna mais importante que o fato, publique-se a lenda.”

          Ao longo do tempo e da história, foi justamente este caráter inusitado e mítico o que sobrou dos “grandes fatos e personagens históricos”. Na grande maioria das vezes, é esta interpretação fantasiosa que move nossa história, construindo nosso imaginário sobre uma realidade que de fato não nos pertence, pois nem ao menos ocorreu. Como disse Will, “ao contar a história do meu pai é impossível separar os fatos da ficção, o homem do mito”.

          Edward viveu em dois mundos: o real, com a mulher (esposa) que amava e o filho, e o da fantasia, aquele em que ele se deparou com uma série de personagens bizarros como o gigante inofensivo que amedrontava sua cidade, os personagens do circo como o proprietário que se transforma em lobisomem e que, ao mesmo tempo o remunera não com o material, mas sim com o espiritual, isto é, informações mensais sobre a amada de Edward e futura esposa, Sandra. A exploração de três anos de trabalho apenas para receber notícias da amada, longe de ser uma agressão, transforma-se em sublime e, porque não dizer bela manifestação de amor, tal como aquela cantada em verso e prosa pelos menestréis medievais no mítico amor cortês.

          Um aspecto fascinante na relação entre pai e filho é que, ao contrário do segundo, que cresceu e, mesmo ainda jovem encontrava-se velho em espírito, para continuar acompanhando as histórias de seu pai, este permaneceu um eterno menino, quando criança Will mantinha com o pai uma sintonia de paridade para com seus sentimentos, mas, ao crescer, o pai não o acompanhou, por assim dizer, permanecendo como sempre foi, contando as mesmas fantasiosas histórias da infância. Fantasias que, ao serem montadas por Will, se apresentam muito mais verossímeis do que se poderia imaginar.

          O personagem de Edward é fascinante, emocionante e cativante, ao contrário de Will, que com sua constante busca pela lógica e verdade dos fatos acaba, isto sim, se distanciando ainda mais da beleza da vida, tão bem encarnada por seu pai. Ao impregnar de romantismo seus atos e atitudes, como quando da coragem em enfrentar o gigante desconhecido e até então ameaçador (como o Davi e Golias bíblicos) ou quando se preocupa em reconstruir sem benefício próprio a cidade de Espectrum, Edward leva o filho gradativamente a conhecê-lo melhor, e aqui suas histórias maravilhosas nos fornecem interpretações onde tudo aquilo que foi narrado e mostrado é de fato real, ou onde o que menos importa são os fatos em si, mas sim como os interpretamos e vivenciamos em nossas vidas. Ao contrário do filho, que se apresenta frágil, cansado e enfadonho antes mesmo de se tornar pai, Edward mesmo moribundo é a vitalidade em pessoa.

          Somente no leito de morte do pai, Will irá de fato conhecê-lo e, neste sentido interagir plenamente com o pai, como fazia quando era criança. Nesta cena, o filho entra no mundo mítico do pai e imagina (algo até então impensável em seu mundo material) como seria a morte do pai, onde este é levado no colo por ele até um rio, onde todos aqueles que o acompanharam ao longo de toda a vida estão presentes e, após uma rápida despedida, ao entrar em contato com a água transforma-se no enorme e maravilhoso Peixe Grande do feliz título. É nesta morte imaginada e narrada pelo filho em que temos não apenas o passamento de Edward, mas o nascimento de um homem que, como uma criança, se redescobre: após narrar e vivenciar a morte do pai, Will continua a transmitir oralmente ao seu filho as histórias do pai e, por sua vez, seu filho ainda garoto já as transmite aos colegas.

O filme abarca assim a importância do relato oral em sociedades capitalistas que estão ignorando a enorme importância da história de vida de pessoas e grupos sociais. A emoção em se saber contar bem uma história não pode nunca ser suprimida ou relegada a segundo plano. A forte carga emocional na narrativa tanto literária como cinematográfica de Peixe Grande nos mostra que as novas tecnologias e a forte presença das redes sociais podem caracterizar um distanciamento ainda maior nas relações interpessoais. A arte de bem contar uma história, apropriar-se de uma identidade cultural rica através da transmissão oral do conhecimento de geração a geração continuam sendo importantes armas na luta contra a alienação que impera em muitos círculos sociais e mediáticos.

Como finaliza Will em sua narrativa: “Um homem conta tantas vezes sua história, que se torna uma. Elas vivem após sua morte. E desse modo, ele se torna imortal”.

Belo filme de Burton!