O SOL É
PARA TODOS
Produção: EUA / 1962
Direção: Robert Mulligan
Elenco: Gregory Peck / Robert Duvall
Duração: 129 min.
Sinopse: Jean Louise Finch (Mary
Badham) recorda que em 1932, quando tinha seis anos, Macomb, no Alabama, já era
um lugarejo velho. Nesta época Tom Robinson (Brock Peters), um jovem negro, foi
acusado de estuprar Mayella Violet Ewell (Collin Wilcox Paxton), uma jovem
branca. Seu pai, Atticus Finch (Gregory Peck), um advogado extremamente
íntegro, concordou em defendê-lo e, apesar de boa parte da cidade ser contra
sua posição, ele decidiu ir adiante e fazer de tudo para absolver o réu.
Não me recordo da primeira vez que
assisti a este filme, provavelmente era garoto e, com certeza gostei muito,
pois passados vários anos, eu lecionando em uma escola particular montei um
projeto a respeito da utilização do vídeo em sala de aula, algo que na época
ainda não era muito habitual. Como temática escolhi a questão racial
norte-americana. Um dos filmes selecionados por mim foi este maravilhoso libelo
à liberdade, que na verdade vai muito além da questão racial. Tal aspecto
apenas reveste este filme, que gradativamente se revela muito mais poderoso,
pois nos leva ao âmago de algo muito mais importante: o humanismo presente em
nossos atos e condutas morais. As imagens e diálogos precisos nos remetem à
seguinte reflexão: vale a pena ser bom? O que é ser bom? Será que para sermos
bons, íntegros e honestos temos que lutar e por que não dizer perder? Quando
lutamos por nossos princípios, ideais e valores somos sempre vencedores,
independentemente do resultado final? Para Atticus Finch, o protagonista, a
resposta para todas estas perguntas é sim.
Quando me interessei em incluir este
filme em meu projeto procurei ler o livro de Harper Lee, vencedor do Pulitzer
em 1961, To kill a Mockingbird , um
belo título que infelizmente foi substituído em sua versão para o português..
Ao ler o livro me apaixonei ainda mais pela história, com a facilidade da
autora em colocar em uma única trama a reflexão a respeito de tantos temas: o
mundo da infância com suas fantasias e incompreensões, a gradativa
transformação para o mundo dos adultos com toda sua violência e sofrimento, a
miséria e ignorância presentes em uma sociedade que vivia as conseqüências da
grande crise de 29, o racismo, preconceito e intolerância, e acima de tudo:
ética e valores morais sólidos diante de um mundo com tantas resistências em se
tornar justo e livre.
A trilha sonora de Elmer Bernstein é
uma das mais belas do cinema. A cena de abertura também é de uma delicadeza e
encantamento raramente vistos. Desfila diante de nossos olhos uma série de
objetos: uma bola de gude, um pião, um relógio, bonecos de madeira, etc. Ao
mesmo tempo uma mão de criança faz em um caderno o desenho de um pássaro, o tal
do sabiá do título, de repente um rasgo e estamos nas primeiras imagens de
Maycomb, a velha cidade sulista. Ouvimos é claro, o som dos pássaros e a voz da
agora mulher, Scout ou Jean Loise, filha
de Atticus, e narradora da história. A abertura na verdade é uma síntese da
trama, daí a sua mérito e beleza. A direção é sensível, um pleonasmo, em se
tratando de Robert Mulligan, a reconstituição de época precisa, com um
brilhante trabalho de direção de arte além da maravilhosa fotografia em preto e
branco.
Maycomb é uma cidade monótona, onde
as pessoas não têm muito que fazer e nem comprar, como diz Scout, para ela a
sensação é a de que o dia tem uma duração muito maior do que 24 horas, fato
este que realmente pode ser comprovado pela imagem da cidade como também pelo
fato de ser criança e como tal, o tempo ter outra duração, diferentemente do
chamado “mundo dos adultos.” Ela tem seis anos e seu irmão, Jem, dez. São
órfãos de mãe e vivem com o pai e a empregada Cal. Ao final do filme se
passaram cerca de dois a três anos e podemos observar que os dois irmãos já não
são as crianças do início da trama, pois os acontecimentos que se desenrolaram
na cidade e que os atingiram diretamente acabaram por trazer mudanças
significativas em suas formações. Atticus é advogado e provavelmente por sua
retidão de caráter é chamado pelo Juiz da pequena cidade a defender um negro
acusado de estupro contra uma moça branca. Mesmo quem não leu o livro e que
está assistindo o filme pela primeira vez, sabe que o negro é inocente e que,
com certeza, Atticus irá sofrer na pele as conseqüências de sua decisão.
Enquanto isso, os dois irmãos vivem em um mundo de fantasias, criando
personagens ameaçadores na vizinhança, como o famoso Boo Radley, um sujeito que
segundo eles, vivia acorrentado no porão de sua casa e que, ao final da trama
irá se revelar a todos, originando o título original. Se junta a eles o garoto
Dill, um menino com quase sete anos que se vangloria do pai que, entretanto, é
ausente em sua formação. Este menino aparece durante as férias e fica na casa
de uma tia, vizinha de Atticus. Cada vez que ele surge, observamos com mais
detalhes a passagem do tempo e as mudanças em nossos personagens.
O personagem de Atticus é
fascinante. Em vários momentos ele demonstra não só em sua fala, mas também em
seus atos e olhares sua profunda convicção em fazer aquilo que acreditava ser o
correto. Dá-nos maravilhosos exemplos de como se educar crianças, estando
sempre presente e valorizando a todo o momento a fala dos filhos, ele não os
pune, mas os leva a observar suas falhas e erros. Gregory Peck, que ganhou um
Oscar por esse papel, declarou várias vezes que foi o personagem que mais se
identificou com ele, isto porque ele era um ator atuante nos movimentos civis
da sociedade americana. Mas, retomando a questão educacional, Atticus permite,
por exemplo, que sua filha o chame pelo nome e não de pai, em outra cena,
quando o filho se recusa a descer de sua casa na árvore para comer, ele apenas
diz “Você quem sabe.” Ou seja, sua autoridade não é imposta, percebemos desde o
início que estamos diante de um personagem incompatível em uma sociedade
sulista, conservadora e autoritária em sua essência, isto se torna ainda mais
evidente não só através da conduta de outros personagens, como também pelo fato
de estarmos nos referindo ao início dos anos 30.
Seu filho Jem reclama que Atticus
não aceita jogar futebol, ele não se conforma com os argumentos do pai que diz
estar “velho”, mas passa realmente a aceitar esta possibilidade, a de que tem
um pai, digamos “superado”. Até que um dia, Atticus mata com grande distância
um cachorro com raiva e Jem fica sabendo pelo xerife que ele é o melhor
atirador da cidade. Esta questão é muito pertinente para o universo infantil, o
pai que é visto como herói passa em um determinado momento a ser questionado:
“será que meu pai é realmente aquilo que eu acho que ele é?” O olhar de
admiração e surpresa do filho após a morte do cão, ilustra como nunca a
reconquista do posto de herói por parte de Atticus, mas sem que para isso ele
se vangloriasse, nisto esta uma das virtudes de um grande educador, deixar com
que o outro adquira sua própria percepção. Naquele momento Jem aprendeu o que é
responsabilidade. A arma também é muito importante na trama, pois fundamenta o
título original do livro/filme: Atticus diz aos filhos que quando recebeu do
pai uma espingarda, este o orientou que era pecado matar um sabiá. Questionado
pela filha, sua resposta é a seguinte:
“Acho que porque é a única coisa que
os sábias fazem é cantar para o nosso deleite. Não mexem no jardim, não fazem
ninho no milharal. Eles simplesmente cantam muito para nós.”
Temos outras cenas onde o pai
demonstra todo seu afeto, carinho e responsabilidade em bem educar os filhos.
Quando Scout briga na escola, sua
orientação é a seguinte:
“Se você aprender um truque vai se
dar melhor com todo mundo. Você nunca entende realmente uma pessoa até ver as
coisas do ponto de vista dela. Até estar na pele dela e sentir o que ela
sente.”
“Eu apenas estou defendendo um negro,
Tom Robinson. Andam falando pela cidade que eu não deveria defender este homem.”
A garota insiste:
“Se não deveria porque o defende?”
“Por várias razões... a principal é
que se não o defendesse eu não andaria de cabeça erguida. E não teria direito
de dizer a você ou ao Jem para não fazerem algo.”
Isto é Humanismo.
As crianças por sua vez assimilam
rapidamente os ensinamentos do pai e percebemos que o medo infantil da
escuridão da noite com suas sombras e ruídos de animais e do vento, cedem lugar
a violência do mundo adulto:
“Há muita coisa feia neste mundo
filho, queria poder mantê-las todas longe de você. Nunca é possível.”
Quando Atticus é obrigado a passar a
noite na frente da cadeia para evitar o linchamento de seu cliente, acaba sendo
salvo pelos próprios filhos que se recusam a voltar para casa e deixar o pai
naquela situação, Jem, o mais velho age com profunda coragem enquanto Scout,
faz uso da inocência infantil que está com os dias contados para ela.
A conduta de Atticus é política, ele
aplica preceitos da não violência de Gandhi e de Luther King. Ele recebe um
cuspe na cara, mas não revida, ele perde no tribunal, seus filhos são
agredidos, mas... Ele desmascara seus delatores, ele tem dignidade moral para
criticar a sociedade em que vive, ele é reconhecido como um homem de bem como
na arrepiante cena do final do julgamento, onde todos os negros se levantam e o
reverendo, líder da comunidade afrodescendente, diz a Scout:
“Srta. Jean Louise levante-se. O seu
pai está passando.”
Sem dúvida o mundo seria muito melhor
se tivéssemos mais Atticus Finch por perto, não só para educar nossas crianças
como para enfrentar as injustiças que sofremos todos os dias, em todos os
momentos, nas mais variadas situações e, por uma quantidade cada vez maior de
pessoas.