GOD BLESS AMERICA
Produção: EUA / 2011
Direção: Bobcat Goldthwait
Elenco: Joel Murray / Tara Lynne Bar
Duração: 100 min.
Sinopse: Frank tem insônia
e os piores vizinhos do mundo. Toda noite ele tenta achar algo na televisão
para ajudá-lo a dormir. Rodando pelos canais ele se frustra cada vez mais com
os programas fúteis, os reality shows que exploram as pessoas, os jornalistas
sensacionalistas etc. Quando perde o emprego e descobre uma doença terminal,
Frank decide sair por aí com uma arma, fazendo uma "limpeza" na
população. No caminho ele conhece Roxy, uma garota de 16 anos que o instiga a
continuar com sua missão.
Resumidamente,
as imagens e os diálogos presentes em God Bless América nos revelam:
“(...)
o pior do Ocidente, onde as pessoas são manipuladas pela televisão, pela ilusão
do poder de escolha, pelo prazer do consumismo, pela educação superficial e sem
ideais dos seus filhos, de gerações que idolatram quem rebaixa por puro
entretenimento, e rebaixados que se vendem para aparecer na televisão.”
Consulta em 23/05/12:
Criticar
a dita sociedade de consumo, o american way life e a cultura
norte-americana em geral é algo corriqueiro. Isto sempre ocorre quando um país
ou Estado passa a ser hegemônico. Entretanto, observarmos no filme que tal
crítica parte do interior desta mesma cultura e utiliza como instrumento de
contestação uma de suas melhores ferramentas de propagação de seus valores: o
próprio cinema norte-americano, neste caso, o cinema independente.
É
justamente isto que o filme God Bless America procura estabelecer:
questionar o ideal narcisista da cultura norte-americana a partir dos pilares
que a moldam. Observamos isso através do próprio título do filme que, de maneira
irônica, longe de valorizar o chavão de seu próprio hino nacional (Deus abençoe
a América), busca, isto sim, realizar um pedido de socorro para uma sociedade
que, no dizer do protagonista Frank, deixou de ser uma civilização e caminha
rumo à sua inevitável queda.
A
bandeira dos EUA está presente em várias cenas do filme: em adesivos nos
carros, pintada em murais, nos sonhos, nas ruas, no interior da casa da filha
de Frank, etc. Esta exposição não é por acaso: ao contrário do nacionalismo
presente nos filmes de John Ford a Steven Spielberg, a bandeira assim como a
estátua da “Liberdade” prestes a se suicidar no cartaz promocional, nos sugere
que, longe de serem símbolos irretocáveis, estão cada vez mais distantes
daquilo que representam, como, por exemplo, a tão propalada “liberdade de
expressão” que é um ícone nas sociedades autodenominadas “democráticas”. A este
respeito, o diálogo entre Frank e seu abestalhado e, ao mesmo tempo, provocador
colega de trabalho é emblemático:
“Então
você é contra a liberdade de expressão agora. Está na Declaração de Direitos,
cara.”
“Eu
defenderia a sua liberdade de expressão, se achasse que estava ameaçada. Eu
defenderia a sua liberdade de expressão de querer mostrar piadas racistas, de
gays, de estupros e de mau gosto sob o pretexto de ser ‘ousado’, mas isso não é
ser ‘ousado’, isso é apenas o que vende. Eles não podiam abusar mais da
baixaria comercial. Por que essa é a geração do ‘não, você não pode’, onde um
comentário chocante tem mais peso do que a verdade. Ninguém mais tem vergonha,
e nós deveríamos celebrar isso? Eu vi uma mulher jogando um absorvente usado em
outra na TV. Em um canal que alega ser para mulheres modernas. Crianças batendo
umas nas outras e postando no youtube. Lembra-se quando comer ratos e vermes em
Survivor era chocante? Hoje é quase banal. Tenho certeza que as garotas de 2
girls, 1 cup vão ter seu próprio programa de encontros, a qualquer momento.
Assim,
por que ter uma civilização se não queremos ser civilizados?”
Recentemente
no programa do Jô, as “meninas do Jô”, estavam em uma discussão ferrenha sobre
“liberdade de expressão”. A voz corrente e unânime de todos os presentes
(inclusive do famoso apresentador) era a de criticar uma tentativa do movimento
cigano de retirar via judicial do novo dicionário Houaiss termos como “sujos” e
“ladrões” ao se referir ao vocábulo cigano. Convenhamos, não são termos
nem um pouco lisonjeiros como sinônimos para um grupo social. Bradavam em nome
da volta da “censura”, citavam as famosas queima de livros em praças públicas
realizadas pelos nazistas. Para eles, quando um grupo social sentir-se
injustiçado, prejudicado e ofendido, tem o direito de reclamar, mas seu direito
finda quando começa o direito do ofensor, pois este não pode ser limitado em
sua “liberdade de expressão”.
Como
disse Frank, “(...) porque devemos apoiar a sua liberdade de expressão se
eles não estão nem aí com a nossa?”.
Um
instrumento linguístico carregado de valores e ideologias como um dicionário, é
livre para rotular um grupo social de ladrões? Será que uma denominação
ofensiva a outros grupos, com maior representatividade como o movimento negro
(afrodescendentes) ou o feminista seria aceito pelas “meninas do Jô” em nome de
uma pretensa “liberdade de expressão”?
Ainda
“dialogando” com seu “colega” de trabalho, Frank continua seu discurso: “Não
é divertido rir de quem nem está lá. É o mesmo show de aberrações que sempre
aparece quando um poderoso Império começa a ruir. American Superstar é o novo
coliseu. Eu não vou participar e assistir um programa que mostra pessoas fracas
e retardadas para nos entreter. Eu estou cansado. É tudo tão cruel. Eu só
queria que tudo isso terminasse.”
“(...)
ninguém fala mais sobre nada. Apenas regurgitam o que veem na TV, ouvem no
rádio ou veem na Web. Quando foi realmente a última vez que você conversou com
alguém sem que ficasse mandando mensagens ou olhando para uma tela ou monitor?
Uma conversa que não fosse sobre celebridades, fofocas, esportes ou política?
Sobre algo importante, algo pessoal.”
A fala
de Frank nos leva a refletir sobre o conceito de alienação. Para a
filósofa Marilena Chauí, temos a “(...) alienação social, na qual os humanos
não se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam
entre duas atitudes: ou aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido
como natural, divino ou racional, ou se rebelam individualmente, julgando que,
por sua própria vontade e inteligência, podem mais do que a realidade que os
condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o ‘outro’ (alienus), algo externo a
nós, separado de nós, diferente de nós e com poder total ou nenhum poder sobre
nós.(Marilena Chauí, Convite à Filosofia, ed. Ática, p.172/175).
Na
primeira atitude descrita por Chauí, temos a grande massa, o grupo receptor da
indústria cultural. São as vítimas preferenciais de Frank e Roxy e seu símbolo
máximo no filme é o personagem Steven Clark, a celebridade de American
Superstar.
Quando
mencionamos o termo alienação, este primeiro grupo é de fácil
identificação: o sujeito que está alheio e indiferente ao que o circunda e que
perdeu ou não processou nenhuma criticidade (perda do senso crítico), estando
entregue ao conformismo.
Já o
filósofo e sociólogo alemão Adorno, que criou o termo indústria cultural
em 1947, a define como um “(...) mecanismo de manutenção da estrutura
sociocultural vigente, não criando nada de novo, somente canalizando os modelos
já estabelecidos e apontando-os nas direções desejadas”.
Consulta em 23/05/12: (http://retransmitir.blogspot.com.br/2008/11/mass-media-industria-cultural.html)
Assim, o individuo alienado
socialmente torna-se refém desta indústria cultural que, através de sua
produção voltada ao entretenimento, transmite valores antiéticos e
desumanizados, com a única preocupação de fazer a “roda girar”, isto é, obter
lucro com uma programação que não possibilita ao individuo pensar e refletir,
mas apenas ser levado a consumir, mantendo intocável a estrutura
sociocultural mencionada por Adorno. Por outro lado, o que raramente
pensamos é que, a partir da definição de Chauí, os protagonistas Frank e Roxy
também são seres alienados, estando enquadrados no segundo grupo: o daqueles
que se revoltam quixotescamente, realizando ações (assassinatos), que nada irão
influenciar na alteração do Status Quo.
O filme brinca com o conceito de politicamente
correto, pois através do humor da trama, constatamos que estamos convivendo
com dois monstros: o do politicamente incorreto e a imposição daquilo
que socialmente passa a ser considerado politicamente correto. Há uma
cena que ilustra bem este pensamento, quando Frank chega ao escritório e escuta
seu chefe repetir, em uma roda de funcionários (subalternos), uma frase dita no
rádio como sendo sua, uma piada sobre um jogador que está com câncer. Todos
seguem o interlocutor e acham graça no que foi dito. Pouco depois Frank é
chamado pelo chefe e é demitido por ter infringido as normas da empresa, ao
almoçar e enviar flores a uma funcionária.
Frank não tem a menor oportunidade
de defesa, sua liberdade de expressão não é respeitada em nenhum
momento. Esta mesma sociedade que através de sua indústria cultural “alimenta”
o politicamente incorreto, cria, abraça e defende cegamente o conceito
de politicamente correto, tal como o Leviatã de Hobbes. Neste
mundo, enviar flores e até mesmo conversar com alguém do sexo oposto pode nos
colocar em uma grande enrascada.
A forma
como Frank é demitido e a maneira como o médico lhe dá (erroneamente) o
diagnóstico de câncer são, em minha opinião, as cenas mais violentas do filme,
pois refletem a que ponto chegou o processo de desumanização nas relações
interpessoais.
Uma
análise mais atenta dos protagonistas e podemos defini-los da seguinte forma:
Frank, como sendo o lado emocional, até mesmo romântico e Roxy, o lado
racional, mas ao mesmo tempo explosivo e com forte carga ideológica. Ambos
interagem e se complementam com harmonia. Os “inimigos” são comuns: os
mal-educados, os consumistas, os xenófobos, os racistas, os fanáticos
religiosos, aqueles que perpetuam o medo como meio de dominação e poder, os
opositores aos gays, os alienados em geral, os nacionalistas que amam
incondicionalmente os EUA (Frank chega a dizer Eu odeio este país e Roxy
quer morar em um lugar que deteste os EUA, na opinião dela a cidade de Paris).
Resumindo, são contrários aos valores transmitidos pela chamada direita,
pelos conservadores. Entretanto, utilizam como método de enfrentamento o
mesmo instrumento utilizado pela direita extremista que tanto criticam:
uma violência nazifascista. Ironicamente podemos defini-los como uma espécie de
alienados esclarecidos.
Roxy,
ao tentar transparecer sua maturidade, escancara sua fragilidade: uma
adolescente tímida e isolada socialmente que sofre com a cultura da banalização
imposta pelos demais adolescentes que não a aceitam. Ao questionar sua beleza,
nos revela sua baixa autoestima. Por outro lado, seus pais, na cena em que
dizem que a irão levar à Disney, demonstram o distanciamento enorme na relação
que estabelecem com a filha e a dificuldade em procurar compreender a
adolescente que “foge” ao padrão imposto pela mídia. Roxy é diferente dos
demais, tanto para o bem como para o mal.
Frank representa ou quer representar
o homem adulto de meia-idade. Neste sentido, vai à contramão de uma sociedade
que está cada vez mais infantilizada, onde pais e mães querem ser iguais aos
filhos e são verdadeiros capachos de tiranos que eles mesmos criaram,
como a protagonista adolescente de um reality show da TV (primeira vítima de
Frank) ou de sua própria filha que, apesar da pouca idade, já está totalmente
inserida na sociedade consumista. Nesta infantilização exacerbada do mundo
adulto sobram críticas a Nabokov, autor de Lolita e ao “queridinho” da
crítica, o cineasta Woody Allen. Em sua metralhadora giratória, Frank encontra
em personagens cultuados pelos meios intelectuais a permissividade para a
pedofilia, sinal mais que evidente de nossa patologia social.
Nem tudo são críticas, decepções e
frustrações. Mesmo que através de um sonho, Frank imagina outra América. Assim,
não é por acaso que ele aparece como John F. Kennedy e Roxy como Jackie
Kennedy: nos anos 60, mesmo que de forma idealizada, havia uma esperança de
mudanças, o movimento pelos direitos civis e, como disse Martin Luther King,
havia um sonho. O barulho do tiro que estourou a cabeça de Kennedy é o
mesmo que o faz acordar para esta América da segunda década do século XXI,
assim definida por Frank:
“(...) A América se tornou um
lugar cruel e corrompido.”
“(...) Nos tornamos um país de
traficantes de ódio e injustiça”.
“(...) Nós perdemos a nossa bondade.
Nós perdemos a nossa alma.”
O discurso final de Frank, longe do
pacifismo de Chaplin em O Grande Ditador, nos aproxima, em vários
sentidos do genial cineasta:
“Meu nome é Frank, mas isso não é
importante. O que importa é: quem são vocês?
A América se tornou um lugar cruel e
corrompido. Nós recompensamos o que há de mais superficial, mais estúpido, pior
e mais barulhento.
Não temos mais senso de decência, de
vergonha, de certo ou errado.
As piores qualidades nas pessoas é o
que nos chama atenção e atrai.
Mentir e espalhar o medo é bom.
Contanto que se ganhe dinheiro.
Nos tornamos um país de traficantes
de ódio e violência.
Nós perdemos a nossa bondade. Nós
perdemos a nossa alma.
O que nos tornamos? Pegamos os mais
fracos da nossa sociedade, ridicularizamos e rimos deles por puro
entretenimento.”
A questão que fica é exatamente esta:
quem somos nós?
Como espécie de pais satélite dos
EUA desde o final da II Guerra e com a Globalização, não somos muito diferentes
da sociedade norte-americana criticada no filme. A mesma indústria cultural
presente nas terras do Tio Sam é a que se apresenta por aqui e na grande
maioria dos países: são os mesmos canais televisivos, os mesmos programas, os
mesmos reality shows, só que com nossos próprios “heróis”.
Nas cenas finais, o cenário de American
Superstar, como disse Frank, nos remete ao antigo coliseu romano: os que
aplaudem o candidato são os mesmos que em seguida irão vaiá-lo e exigir sua
eliminação. Frank e Roxy são os mártires dos “novos tempos” que buscam a
redenção não através de orações como os primeiros cristãos, mas, sim, pelo
mesmo expediente utilizado pelo opressor: a violência.
O que deveria nos atingir e chocar
não é a espécie de “solução final” colocada em prática por Frank e Roxy, mas
sim o que os levou a agir daquela forma, como chegaram àquela situação.
God Bless America é polêmico
por nos colocar diante de um espelho e nos mostrar algo repelente.
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