domingo, 2 de setembro de 2012

DEUS ABENÇOE A AMÉRICA


GOD BLESS AMERICA
 


 

GOD BLESS AMERICA / DEUS ABENÇOE A AMÉRICA

Produção: EUA / 2011

Direção: Bobcat Goldthwait

Elenco: Joel Murray / Tara Lynne Bar

Duração: 100 min.

 

Sinopse: Frank tem insônia e os piores vizinhos do mundo. Toda noite ele tenta achar algo na televisão para ajudá-lo a dormir. Rodando pelos canais ele se frustra cada vez mais com os programas fúteis, os reality shows que exploram as pessoas, os jornalistas sensacionalistas etc. Quando perde o emprego e descobre uma doença terminal, Frank decide sair por aí com uma arma, fazendo uma "limpeza" na população. No caminho ele conhece Roxy, uma garota de 16 anos que o instiga a continuar com sua missão.

Resumidamente, as imagens e os diálogos presentes em God Bless América nos revelam:

“(...) o pior do Ocidente, onde as pessoas são manipuladas pela televisão, pela ilusão do poder de escolha, pelo prazer do consumismo, pela educação superficial e sem ideais dos seus filhos, de gerações que idolatram quem rebaixa por puro entretenimento, e rebaixados que se vendem para aparecer na televisão.” Consulta em 23/05/12:


Criticar a dita sociedade de consumo, o american way life e a cultura norte-americana em geral é algo corriqueiro. Isto sempre ocorre quando um país ou Estado passa a ser hegemônico. Entretanto, observarmos no filme que tal crítica parte do interior desta mesma cultura e utiliza como instrumento de contestação uma de suas melhores ferramentas de propagação de seus valores: o próprio cinema norte-americano, neste caso, o cinema independente.

É justamente isto que o filme God Bless America procura estabelecer: questionar o ideal narcisista da cultura norte-americana a partir dos pilares que a moldam. Observamos isso através do próprio título do filme que, de maneira irônica, longe de valorizar o chavão de seu próprio hino nacional (Deus abençoe a América), busca, isto sim, realizar um pedido de socorro para uma sociedade que, no dizer do protagonista Frank, deixou de ser uma civilização e caminha rumo à sua inevitável queda.

A bandeira dos EUA está presente em várias cenas do filme: em adesivos nos carros, pintada em murais, nos sonhos, nas ruas, no interior da casa da filha de Frank, etc. Esta exposição não é por acaso: ao contrário do nacionalismo presente nos filmes de John Ford a Steven Spielberg, a bandeira assim como a estátua da “Liberdade” prestes a se suicidar no cartaz promocional, nos sugere que, longe de serem símbolos irretocáveis, estão cada vez mais distantes daquilo que representam, como, por exemplo, a tão propalada “liberdade de expressão” que é um ícone nas sociedades autodenominadas “democráticas”. A este respeito, o diálogo entre Frank e seu abestalhado e, ao mesmo tempo, provocador colega de trabalho é emblemático:

“Então você é contra a liberdade de expressão agora. Está na Declaração de Direitos, cara.”

“Eu defenderia a sua liberdade de expressão, se achasse que estava ameaçada. Eu defenderia a sua liberdade de expressão de querer mostrar piadas racistas, de gays, de estupros e de mau gosto sob o pretexto de ser ‘ousado’, mas isso não é ser ‘ousado’, isso é apenas o que vende. Eles não podiam abusar mais da baixaria comercial. Por que essa é a geração do ‘não, você não pode’, onde um comentário chocante tem mais peso do que a verdade. Ninguém mais tem vergonha, e nós deveríamos celebrar isso? Eu vi uma mulher jogando um absorvente usado em outra na TV. Em um canal que alega ser para mulheres modernas. Crianças batendo umas nas outras e postando no youtube. Lembra-se quando comer ratos e vermes em Survivor era chocante? Hoje é quase banal. Tenho certeza que as garotas de 2 girls, 1 cup vão ter seu próprio programa de encontros, a qualquer momento.

Assim, por que ter uma civilização se não queremos ser civilizados?”

Recentemente no programa do Jô, as “meninas do Jô”, estavam em uma discussão ferrenha sobre “liberdade de expressão”. A voz corrente e unânime de todos os presentes (inclusive do famoso apresentador) era a de criticar uma tentativa do movimento cigano de retirar via judicial do novo dicionário Houaiss termos como “sujos” e “ladrões” ao se referir ao vocábulo cigano. Convenhamos, não são termos nem um pouco lisonjeiros como sinônimos para um grupo social. Bradavam em nome da volta da “censura”, citavam as famosas queima de livros em praças públicas realizadas pelos nazistas. Para eles, quando um grupo social sentir-se injustiçado, prejudicado e ofendido, tem o direito de reclamar, mas seu direito finda quando começa o direito do ofensor, pois este não pode ser limitado em sua “liberdade de expressão”.

Como disse Frank, “(...) porque devemos apoiar a sua liberdade de expressão se eles não estão nem aí com a nossa?”.

Um instrumento linguístico carregado de valores e ideologias como um dicionário, é livre para rotular um grupo social de ladrões? Será que uma denominação ofensiva a outros grupos, com maior representatividade como o movimento negro (afrodescendentes) ou o feminista seria aceito pelas “meninas do Jô” em nome de uma pretensa “liberdade de expressão”?

Ainda “dialogando” com seu “colega” de trabalho, Frank continua seu discurso: “Não é divertido rir de quem nem está lá. É o mesmo show de aberrações que sempre aparece quando um poderoso Império começa a ruir. American Superstar é o novo coliseu. Eu não vou participar e assistir um programa que mostra pessoas fracas e retardadas para nos entreter. Eu estou cansado. É tudo tão cruel. Eu só queria que tudo isso terminasse.”

“(...) ninguém fala mais sobre nada. Apenas regurgitam o que veem na TV, ouvem no rádio ou veem na Web. Quando foi realmente a última vez que você conversou com alguém sem que ficasse mandando mensagens ou olhando para uma tela ou monitor? Uma conversa que não fosse sobre celebridades, fofocas, esportes ou política? Sobre algo importante, algo pessoal.”

A fala de Frank nos leva a refletir sobre o conceito de alienação. Para a filósofa Marilena Chauí, temos a “(...) alienação social, na qual os humanos não se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes: ou aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido como natural, divino ou racional, ou se rebelam individualmente, julgando que, por sua própria vontade e inteligência, podem mais do que a realidade que os condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o ‘outro’ (alienus), algo externo a nós, separado de nós, diferente de nós e com poder total ou nenhum poder sobre nós.(Marilena Chauí, Convite à Filosofia, ed. Ática, p.172/175).

Na primeira atitude descrita por Chauí, temos a grande massa, o grupo receptor da indústria cultural. São as vítimas preferenciais de Frank e Roxy e seu símbolo máximo no filme é o personagem Steven Clark, a celebridade de American Superstar.

Quando mencionamos o termo alienação, este primeiro grupo é de fácil identificação: o sujeito que está alheio e indiferente ao que o circunda e que perdeu ou não processou nenhuma criticidade (perda do senso crítico), estando entregue ao conformismo.

Já o filósofo e sociólogo alemão Adorno, que criou o termo indústria cultural em 1947, a define como um “(...) mecanismo de manutenção da estrutura sociocultural vigente, não criando nada de novo, somente canalizando os modelos já estabelecidos e apontando-os nas direções desejadas”.


            Assim, o individuo alienado socialmente torna-se refém desta indústria cultural que, através de sua produção voltada ao entretenimento, transmite valores antiéticos e desumanizados, com a única preocupação de fazer a “roda girar”, isto é, obter lucro com uma programação que não possibilita ao individuo pensar e refletir, mas apenas ser levado a consumir, mantendo intocável a estrutura sociocultural mencionada por Adorno. Por outro lado, o que raramente pensamos é que, a partir da definição de Chauí, os protagonistas Frank e Roxy também são seres alienados, estando enquadrados no segundo grupo: o daqueles que se revoltam quixotescamente, realizando ações (assassinatos), que nada irão influenciar na alteração do Status Quo.

            O filme brinca com o conceito de politicamente correto, pois através do humor da trama, constatamos que estamos convivendo com dois monstros: o do politicamente incorreto e a imposição daquilo que socialmente passa a ser considerado politicamente correto. Há uma cena que ilustra bem este pensamento, quando Frank chega ao escritório e escuta seu chefe repetir, em uma roda de funcionários (subalternos), uma frase dita no rádio como sendo sua, uma piada sobre um jogador que está com câncer. Todos seguem o interlocutor e acham graça no que foi dito. Pouco depois Frank é chamado pelo chefe e é demitido por ter infringido as normas da empresa, ao almoçar e enviar flores a uma funcionária.

            Frank não tem a menor oportunidade de defesa, sua liberdade de expressão não é respeitada em nenhum momento. Esta mesma sociedade que através de sua indústria cultural “alimenta” o politicamente incorreto, cria, abraça e defende cegamente o conceito de politicamente correto, tal como o Leviatã de Hobbes. Neste mundo, enviar flores e até mesmo conversar com alguém do sexo oposto pode nos colocar em uma grande enrascada.

A forma como Frank é demitido e a maneira como o médico lhe dá (erroneamente) o diagnóstico de câncer são, em minha opinião, as cenas mais violentas do filme, pois refletem a que ponto chegou o processo de desumanização nas relações interpessoais.

Uma análise mais atenta dos protagonistas e podemos defini-los da seguinte forma: Frank, como sendo o lado emocional, até mesmo romântico e Roxy, o lado racional, mas ao mesmo tempo explosivo e com forte carga ideológica. Ambos interagem e se complementam com harmonia. Os “inimigos” são comuns: os mal-educados, os consumistas, os xenófobos, os racistas, os fanáticos religiosos, aqueles que perpetuam o medo como meio de dominação e poder, os opositores aos gays, os alienados em geral, os nacionalistas que amam incondicionalmente os EUA (Frank chega a dizer Eu odeio este país e Roxy quer morar em um lugar que deteste os EUA, na opinião dela a cidade de Paris). Resumindo, são contrários aos valores transmitidos pela chamada direita, pelos conservadores. Entretanto, utilizam como método de enfrentamento o mesmo instrumento utilizado pela direita extremista que tanto criticam: uma violência nazifascista. Ironicamente podemos defini-los como uma espécie de alienados esclarecidos.

Roxy, ao tentar transparecer sua maturidade, escancara sua fragilidade: uma adolescente tímida e isolada socialmente que sofre com a cultura da banalização imposta pelos demais adolescentes que não a aceitam. Ao questionar sua beleza, nos revela sua baixa autoestima. Por outro lado, seus pais, na cena em que dizem que a irão levar à Disney, demonstram o distanciamento enorme na relação que estabelecem com a filha e a dificuldade em procurar compreender a adolescente que “foge” ao padrão imposto pela mídia. Roxy é diferente dos demais, tanto para o bem como para o mal.

            Frank representa ou quer representar o homem adulto de meia-idade. Neste sentido, vai à contramão de uma sociedade que está cada vez mais infantilizada, onde pais e mães querem ser iguais aos filhos e são verdadeiros capachos de tiranos que eles mesmos criaram, como a protagonista adolescente de um reality show da TV (primeira vítima de Frank) ou de sua própria filha que, apesar da pouca idade, já está totalmente inserida na sociedade consumista. Nesta infantilização exacerbada do mundo adulto sobram críticas a Nabokov, autor de Lolita e ao “queridinho” da crítica, o cineasta Woody Allen. Em sua metralhadora giratória, Frank encontra em personagens cultuados pelos meios intelectuais a permissividade para a pedofilia, sinal mais que evidente de nossa patologia social.

            Nem tudo são críticas, decepções e frustrações. Mesmo que através de um sonho, Frank imagina outra América. Assim, não é por acaso que ele aparece como John F. Kennedy e Roxy como Jackie Kennedy: nos anos 60, mesmo que de forma idealizada, havia uma esperança de mudanças, o movimento pelos direitos civis e, como disse Martin Luther King, havia um sonho. O barulho do tiro que estourou a cabeça de Kennedy é o mesmo que o faz acordar para esta América da segunda década do século XXI, assim definida por Frank:

            “(...) A América se tornou um lugar cruel e corrompido.”

            “(...) Nos tornamos um país de traficantes de ódio e injustiça”.

            “(...) Nós perdemos a nossa bondade. Nós perdemos a nossa alma.”

            O discurso final de Frank, longe do pacifismo de Chaplin em O Grande Ditador, nos aproxima, em vários sentidos do genial cineasta:

            “Meu nome é Frank, mas isso não é importante. O que importa é: quem são vocês?

            A América se tornou um lugar cruel e corrompido. Nós recompensamos o que há de mais superficial, mais estúpido, pior e mais barulhento.

            Não temos mais senso de decência, de vergonha, de certo ou errado.

            As piores qualidades nas pessoas é o que nos chama atenção e atrai.

            Mentir e espalhar o medo é bom. Contanto que se ganhe dinheiro.

            Nos tornamos um país de traficantes de ódio e violência.

            Nós perdemos a nossa bondade. Nós perdemos a nossa alma.

            O que nos tornamos? Pegamos os mais fracos da nossa sociedade, ridicularizamos e rimos deles por puro entretenimento.”

            A questão que fica é exatamente esta: quem somos nós?

            Como espécie de pais satélite dos EUA desde o final da II Guerra e com a Globalização, não somos muito diferentes da sociedade norte-americana criticada no filme. A mesma indústria cultural presente nas terras do Tio Sam é a que se apresenta por aqui e na grande maioria dos países: são os mesmos canais televisivos, os mesmos programas, os mesmos reality shows, só que com nossos próprios “heróis”.

            Nas cenas finais, o cenário de American Superstar, como disse Frank, nos remete ao antigo coliseu romano: os que aplaudem o candidato são os mesmos que em seguida irão vaiá-lo e exigir sua eliminação. Frank e Roxy são os mártires dos “novos tempos” que buscam a redenção não através de orações como os primeiros cristãos, mas, sim, pelo mesmo expediente utilizado pelo opressor: a violência.

            O que deveria nos atingir e chocar não é a espécie de “solução final” colocada em prática por Frank e Roxy, mas sim o que os levou a agir daquela forma, como chegaram àquela situação.

            God Bless America é polêmico por nos colocar diante de um espelho e nos mostrar algo repelente.

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