domingo, 2 de setembro de 2012

FRANCESCO


 

FRANCESCO

 

 


 

FRANCESCO / FRANCESCO

Produção: Itália / 1988

Direção: Liliana Cavani

Elenco: Mickey Rourke / Helena B. Carter

Duração: 150 min.

 

Sinopse: A renomada cineasta italiana Liliana Cavani (O Porteiro da Noite) dirige o astro Mickey Rourke, brilhante no papel de Francesco, e a atriz Helena Bonham Carter (Uma Janela para o Amor). Mais que uma história de vida, Francesco narra, com muita emoção, a jornada de um homem que renunciou aos valores materiais para viver o cristianismo em sua essência.

 

O Francesco de Liliana Cavani não é um personagem idealizado. Ele não canta, não conversa com os animais, não faz nenhum milagre e demonstra estar em transe nos momentos mais difíceis, mas provavelmente talvez esteja muito próximo daquilo que foi o verdadeiro e real Francesco da Idade Média.

            Estamos em um filme europeu e, como tal, o espaço da fantasia é dominado por um realismo quase que documental. Entretanto, o que menos importa é sabermos o que este filme tem de histórico, embora a narrativa esteja centrada no encontro dos mais próximos seguidores do santo e, principalmente na construção dos principais episódios que originaram a Ordem Franciscana, através do amigo cronista Leone. Mas, o que realmente nos interessa é entrar na essência dos sentimentos de Francesco e na revolução que este provocou no mundo de sua época. Nosso protagonista é tão simples naquilo que faz que não necessita de milagres para nos levar ao “divã” diante de nossa mediocridade.

            Um cinema que nos apresentou Pasolini teria uma tendência natural em nos mostrar um Francesco que se aproxima do pensamento marxista, mas Cavani não é panfletária e as ações do santo são tão naturais que, sendo esta ou não sua intenção, a cineasta nos presenteia com um homem histórico acima de classificações ideológicas. O Francesco de Liliana Cavani é apenas e tão somente um homem, mas um homem tão centrado naquilo que pensa, acredita e aplica que só pode ser considerado louco no século XIII e, por que não dizer, um “maluco de pedra” neste início de século XXI.

            Francesco não nasce santo, mas é levado a se tornar um. Algo fascinante é pensar na questão daquilo que nos transforma em seres virtuosos. O que realmente nos leva a não nos sentirmos saciados é justamente esta ausência de virtude que em Francesco se torna transcendental. É diante dela que percebemos neste filme quem de fato somos. Enquanto Francesco é “moldado” por aquilo que realmente é, nós nos estabelecemos justamente por aquilo que nos falta.

            Na história de Francesco várias situações são fascinantes, mas um dos momentos mais radicais por sua complexidade, e até mesmo crueldade, é quando nosso santo, diante de todos os principais representantes do poder constituído e da população de Assis, renega o próprio pai e se despoja das roupas do corpo.

            “Tenho outro Pai”, diz ele diante de um pai biológico estarrecido. Como é possível imaginar uma cena destas em qualquer momento histórico? Seriam de fato os mendigos, antigos hippies e seres marginalizados de todos os tempos e espaços os verdadeiros seguidores do pensamento cristão?

            Como diziam os antigos “amigos” quando o viam, “É o louco do Francesco.” Quem é de fato louco? Qual a linha que nos separa da lógica? Servir ao próximo sem querer nada em troca é algo possível e presente na natureza humana?

            Em vários relatos Cristo também foi confundido como louco, evidentemente que, ao resgatar o Cristianismo em sua essência, Francesco não poderia receber outra denominação a não ser a de louco. Como Simão Bacamarte, em O Alienista de Machado de Assis, classificaria o protagonista de Cavani?

            Neste filme, Francesco ouve o silêncio da natureza, chora diante da cruz do Cristo martirizado e do sofrimento alheio, pede para que o Senhor responda por suas angústias enquanto sofre com os estigmas do Salvador. Por fim, se aproxima de crianças que o auxiliam na construção de sua igreja que aparece lotada sempre em momentos de crise, como, por exemplo, quando ocorre o deslizamento de terra sobre a população pobre. Nas cenas em que o santo aparece auxiliando os despossuídos, estamos muito próximos de uma favela de hoje, ou de um mundo futurista como aquele idealizado no violento Mad Max. Violência, aliás, que permeia toda a sociedade medieval com suas guerras infindáveis.

            Francesco não chama os outros para que o sigam como fez o Cristo, mas os outros passam a segui-lo. Na cena em que um dos seus discípulos doa todos os seus bens, observamos com atenção o sofrimento daquelas pessoas, tanto pobres como até mesmo ricos, em conseguir gratuitamente algum bem, enquanto isso a alegria é daquele que está se desfazendo de tudo que possui. Para nossa mentalidade materialista e competitiva é possível acharmos que somos alegres e felizes quando nos libertamos de nossos bens materiais e nos tornamos tristes e cheios de sofrimento quando obtemos algo? A partir deste raciocínio, podemos imaginar o Cristianismo com a vertente do Franciscanismo como uma simples alegoria. Talvez seja justamente por isso que temos necessidade de criar santos como Francesco. O santo seria justamente aquele ser que realiza aquilo que não temos coragem de fazer. Assim somos absolvidos, pois apenas um ser superior seria capaz de colocar em prática o que escondemos dentro de nós mesmos.

            Diante do papa e dos cardeais, a aprovação da Ordem Franciscana é precedida do seguinte comentário: “Podemos declarar que a vida do Evangelho é impossível?”.

            É claro que não. Ou seja, a Igreja necessita destes “malucos” que nos mostram a todo o momento que um “outro mundo é possível”, onde, nas palavras de Francesco, o objetivo da existência humana está em “amar sem limites e sem julgamento”. Onde a função de seus seguidores seria a de “anunciar a paz, mas primeiro ter a paz em si mesmo.” Entretanto, desde os seus primórdios, a Ordem Franciscana já é contaminada por aqueles que querem um programa, uma regra, que defendem uma hierarquia rígida, mas que, entretanto não aceitam a rigidez do pensamento de Francesco, que responde a todos que “a regra existe: é o Evangelho.” Até mesmo o emissário do Papa, que demonstra ­_ pelo menos no filme _ profundo apreço pelo santo, tenta persuadi-lo de seus ideais: “Você tem que reduzir o seu sonho.” Ou seja, respeitar o limite de quem é humano.

            Francesco sofre tentações, fica nu na neve para “esfriar” a luxúria que sente e assim, quanto mais humano ele nos é apresentado, mais somos cobrados diante da nossa incompetência e fragilidade em ser virtuosos.

            Vendo as cenas dos primeiros discípulos de Francesco, observamos a alegria que se espalha entre todos, o profundo sentimento de harmonia, pureza, lealdade e amor que domina todo o grupo, como se todos tivessem na pobreza, adquirindo uma indescritível  sensação de bem estar, o bem supremo tal como o estágio de Nirvana para os monges budistas.


            Quando assisti a este filme pela primeira vez, já havia tido o privilégio de conhecer pessoalmente a cidade de Assis, rever os caminhos do poverelo di Assisi nas belas imagens de Cavani é como imaginar uma tranquilidade que não nos pertence. Neste sentido, Francesco é um filme perturbador.

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