domingo, 2 de setembro de 2012

O HOMEM ELEFANTE


O HOMEM ELEFANTE
 
 

 



 

O HOMEM ELEFANTE / THE ELEPHANT MAN

Produção: EUA / Inglaterra / 1980

Direção: David Lynch

Elenco: Anthony Hopkins / John Hurt / Anne Bancroft

Duração: 123 min.

 

Sinopse: No século XIX, John Merrick (John Hurt) é um londrino conhecido como Homem Elefante. Apesar de ser tratado como retardado e de virar atração de circo por ter o rosto totalmente deformado, Merrick é muito inteligente e sensível. Quem descobre isso é o Dr. Frederick Treves (Anthony Hopkins), que o leva para um hospital para estudá-lo. Apesar de ter se mostrado brilhante, ele continua sofrendo preconceitos por causa de suas deformidades. / http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/o-homem-elefante/id/8453

 

 

                A resenha desta obra-prima do cinema não irá se alongar na questão patológica deste personagem, tampouco se preocupar com o que é real ou próximo da realidade,_ uma vez que o filme baseia-se em um personagem verídico_ com aquilo que foi deliberadamente modificado na obra de David Linch. Para quem quiser maiores informações, sugiro o excelente artigo de Edélcio de Jesus Sardano, Reflexões em Torno de “O Homem Elefante”. (em http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/85/201-211.pdf).

Pretendo realizar uma abordagem centrada na questão estética do que é belo e feio e tentar compreender um pouco a situação de nosso protagonista no contexto histórico em que viveu.

                As analogias são óbvias: desde o chavão segundo o qual “as aparências enganam”, até a visão deformada que temos a respeito do outro, isto independentemente de classe social, como pode ser observado ao longo do filme.

                A atualidade desta obra é inegável em um momento em que os meios educacionais valorizam e defendem a inclusão de toda criança com qualquer problema de saúde nas escolas e que, ao mesmo tempo, os programas televisivos buscam de forma desenfreada exibir como uma de suas principais atrações um show de aberrações, tais como os freak shows que tanto sucesso faziam no século XIX, tanto na Europa como nos EUA.   

                Lynch procurou na fotografia em preto e branco retratar o clima opressivo da Inglaterra vitoriana no auge de sua Revolução Industrial. As cenas oníricas das personagens, mescladas com chaminés e o violento serviço braçal nas fábricas, assustam e, ao mesmo tempo, nos deixam uma reflexão: estamos em condições de emitir juízos de valor sobre o que é belo e feio? Sobre o que nos aproxima e o que nos gera repulsa? A partir dos planos de cena de Lynch, podemos afirmar que tal reflexão não se prende apenas ao contexto histórico em que se passa a trama, mas está muito presente nas sociedades contemporâneas.

                A classe operária para David Lynch é feia por natureza, no filme nos é apresentada como seres barulhentos, mal educados e maldosos; são os feios, sujos e malvados, de Ettore Scola transferidos para a Inglaterra do final do século XIX. Por outro lado, a burguesia não fica atrás. Apesar de sua aparente boa educação, o desrespeito para com o outro e principalmente com os despossuídos e marginalizados é evidente, mais ainda quando nosso protagonista transforma-se em atração para esta classe social. Assim, o filme não traça uma visão bucólica e vitimizada do pobre e não glorifica os ricos, embora a personagem de Anne Bancroft faça com que nos deixemos seduzir pelos burgueses filantrópicos. Por outro lado, a preocupação da rainha e a intercessão do poder público para com o homem elefante é um convite a refletirmos sobre o assistencialismo ainda hoje fortemente presente nas sociedades, principalmente quando o/os envolvido/s passam a ter destaque na mídia.

                Em sua espetacular obra História da Feiúra, Umberto Eco, citando Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos, constrói um conceito para o que é belo/feio: “(...) no belo, o ser humano se coloca como medida de perfeição, (...) adora nele a si mesmo. (...) No fundo, o homem se espelha nas coisas, considera belo tudo o que lhe devolve a sua imagem. (...) O feio é entendido como sinal e sintoma da degenerescência (...). Cada indício de esgotamento, de peso, de senilidade, de cansaço, toda espécie de falta de liberdade, como a convulsão, como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a forma da dissolução, da decomposição (...) tudo provoca a mesma reação: o juízo de valor ‘feio’. (...). (...) O que odeia aí o ser humano? Não há dúvida: o declínio de seu tipo”. (in obra citada, ed. Record, 2007, pág. 15).

                Na mesma obra, Eco nos apresenta uma enorme quantidade de sinônimos para o que é considerado belo e aquilo que representa o feio:

                “(...) enquanto se considera belo aquilo que é bonito, gracioso, prazenteiro, atraente, agradável, garboso, delicioso, fascinante, harmônico, maravilhoso, delicado, leve, encantador, magnífico, estupendo, excelso, excepcional, fabuloso, legendário, fantástico, mágico, admirável, apreciável, espetacular, esplêndido, sublime, soberbo; é feio aquilo que é repelente, horrendo, asqueroso, desagradável, grotesco, abominável, vomitante, odioso, indecente, imundo, sujo, obsceno, repugnante, assustador, abjeto, monstruoso, horrível, hórrido, horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo, monstruoso, revoltante, repulsivo, desgostante, aflitivo, nauseabundo, fétido, apavorante, ignóbil, desgracioso, desprezível, pesado, indecente, deformado, disforme, desfigurado. (in Obra citada, pág. 18/19).

                Partindo de tais definições, nosso protagonista tem todas as características daquilo que é feio  presentes em sua aparência física. Entretanto aqui nos deparamos com a primeira contradição: ao mesmo tempo ele é inteligente, amável, sensível e educado. Como, então, pode ser considerado feio?

                Na cena da estação de trem quando é acuado pela turba, ele se faz ouvir naquela que é a frase alusiva ao cartaz do filme: “Eu não sou um animal! Eu sou um ser humano! Eu... sou... um homem!

                A fala, a comunicação, este instrumento essencial em nossa evolução é seu cartão de visitas para a sociedade industrial que o discrimina e o repele afastando-o de qualquer possibilidade de inclusão a partir de seu aspecto físico. Esta sua capacidade de interação social acaba, pelo menos parcialmente, em libertá-lo da sua alienação.

                Foi provavelmente a partir da Revolução Industrial que tivemos a construção de conceitos estéticos tal como os concebemos nos dias contemporâneos. Assim, mais do que a exposição de uma imagem, temos a partir de meados do século XIX a exploração desta imagem: o que era considerado feio e sinônimo de repulsa passa a ser também concebido como valor mercadológico. Ao contrário da Idade Média, que repelia e escondia seus leprosos, a sociedade industrial expõe os seus feios através de espetáculos bizarros objetivando o lucro, estudando-os a partir de pesquisas médicas e cientificas,_ pois estamos na época do cientificismo com Darwin e, em breve da psique de Freud e,_ também no alvorecer da mídia que busca nos excessos de toda ordem se firmar perante a opinião pública. Ou seja, é no nascimento desta sociedade industrial que temos a consolidação dos padrões estéticos que continuam presentes em nossos dias.  

                A exploração, a discriminação, a exclusão social presentes no filme O Homem Elefante continuam em nossas sociedades voltadas ao consumo. A construção daquilo que é belo ou feio atingiu seu ápice com o advento do Nazismo, onde os padrões estéticos de uma pretensa beleza/feiúra nos levaram ao genocídio de vários povos. (A este respeito indico o maravilhoso documentário  A Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen, 1992).   

                                 

                Talvez o maior paradoxo do filme seja o fato de que esta mesma sociedade que discrimina e abomina aquilo que é “o declínio do seu tipo”, como disse Nietsche, não consegue enxergar que a industrialização que se consolida como carro chefe do capitalismo está muito distante do conceito de beleza, e, neste sentido, as imagens de Lynch com as fábricas, os sons, o trabalho, a fumaça, a partir de uma assustadora fotografia em preto e branco, insistem em nos mostrar que estamos diante de algo ainda mais horrendo que o Homem Elefante, pois, ao contrário deste, que tinha uma dimensão verdadeiramente humana _ e aqui vale lembrar as cenas em que o protagonista narra Shakespeare e passagens bíblicas, a Revolução Industrial consolidou o que é sinônimo de feio através da exploração e coisificação do homem, espetacularmente retratadas nas obras de Charles Dickens, William Blake, Edgar Allan Poe, etc, que nos mostraram que a Inglaterra vitoriana (a mesma do Homem Elefante) está bem ao nosso alcance, basta para isso esticarmos um pouco nosso pescoço para fora de nossas casas.

4 comentários:

  1. Análise excelente, completa em seu propósito.

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  2. Excelente análise!
    O duro é pensar que a exploração do feio, na atualidade, é mascarada como "caridade"! Os programas de auditório, em sua maioria, nos bombardeiam com tal exploração.

    Janaína

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  3. Este filme foi o que mais me marcou nos meus 50 anos de vida.
    Deveriam passo lo naquelas instituições educacionais onde são tão frequentes o

    Bulimia

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  4. Parabéns pela análise e obrigado por dividir.

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